Barack Obama chamou um dia “potência regional” à Rússia, uma expressão cujo impacto deve ter medido bem, porque, ao contrário do seu sucessor, ele conhece o peso das palavras. O antigo presidente queria significar que, não obstante se tratar de um poder nuclear, com forças convencionais nada desprezíveis, a potência sucessora da União Soviética sofre, nos tempos que correm, de fortes constrangimentos económicos e tecnológicos, que a colocam muito longe dos anos áureos em que se afirmava como um poder geopolítico global, concorrencial com os Estados Unidos, com uma forte capacidade de proselitismo, atração e influência. Acresce ainda, no caso da Rússia, ser atravessada por uma tendência demográfica trágica, que não parece facilmente reversível e pode ter consequências muito sérias no futuro do país.
A expressão de Obama, que encerrava uma inegável verdade, esconde, contudo, uma ironia: para “potência regional”, a nova Rússia de Vladimir Putin mostra uma vitalidade muito apreciável, uma capacidade de ser estrategicamente relevante no seu “near abroad” e mesmo, por vezes, de ir um pouco mais além, como se tem visto em alguns arroubos na Venezuela.
Não cabe aqui analisar o poder do “czar” desta nova Rússia, que dirige com mão forte e evidente apoio popular um país que continua a sentir-se muito maltratado pela História recente, que considera que os seus imediatos antecessores foram incapazes de negociar um final mais honroso para a clamorosa derrota sofrida na Guerra Fria.
O alargamento das fronteiras da NATO até uma escassa distância de Moscovo, bem como de uma União Europeia que integra hoje países que olham para a Rússia quase como um Estado inimigo, deu a Putin um argumento para testar as “linhas vermelhas” do mundo ocidental. A travagem da deriva ocidentalizante na Geórgia, a resposta firme ao “golpe de Estado” que a Europa e os EUA estimularam em Kiev, garantindo a retomada da Crimeia e o hábil “congelamento” do conflito no Donbass, suscitam hoje em alguns a dúvida sobre se o líder russo pode ser tentado a ir mais longe. Em particular nos Estados bálticos, essa questão está bem viva.
Se os vizinhos da Rússia tivessem votado nas eleições americanas, Hillary Clinton estaria hoje na Casa Branca. A disposição confrontacional face a Moscovo demonstrada pela antiga chefe da diplomacia de Obama era objeto de reverência e confiança em vários países que desconfiam da Rússia. Embora a bravata inicial de Trump face ao futuro da NATO tivesse tido uma forte regressão, a certeza no empenhamento absoluto de Washington no automatismo do tratado que leva o seu nome enfraqueceu bastante desde então. Para isso contribuiu ainda o mistério, que só a História um dia esclarecerá, sobre o que há de concreto na cumplicidade de Trump com Putin.
É dessa bizarra parceria que deriva a nova importância que Moscovo ganhou no Médio Oriente. Os erráticos movimentos dos americanos naquela região, a partir da confusa retirada do Iraque, concederam por ali à Rússia um papel nunca antes igualado, passando de quase simbólicos pontos de apoio militar a uma presença “on the ground“, com uma capacidade de interlocução fortíssima, sendo ela hoje o suporte e o garante do poder de Assad na Síria e um fator de ponderação incontornável para os americanos, em quaisquer movimentações de natureza militar que possam vir a pensar contra o Irão. Além disso, Moscovo, que sempre manteve um “jogo de sombras” nunca bem explicitado com Israel, conseguiu, depois de alguns equívocos, estranhamente ultrapassados, gizar uma relação operativa e funcional com a Turquia, que dia a dia se revela mais um “joker” dentro da NATO, onde aliás, também se encontra o seu adversário histórico, a Grécia ... com o qual a Rússia tem uma parceria privilegiada!
Tenho para mim que Barack Obama, quando chamou “potência regional” à Rússia não estava necessariamente a pensar no Médio Oriente, onde ela hoje distribui algumas cartas que usa como importantes trunfos no seu jogo de retoma de poder.