Eu devia ter desconfiado. O preço daquela viagem à União Soviética, por duas semanas, uma delas passada na praia de Ialta, com visitas a Moscovo e Leninegrado (era assim que, nesse ano de 1980, São Petersburgo ainda se chamava), era surpreendentemente barato.
Naquele Verão, as nossas finanças familiares tinham batido quase no fundo. Oslo, onde vivíamos, era uma cidade caríssima, eu ganhava ela-por-ela para as despesas e o que sobrava para férias era muito pouco. Passeávamos uma noite pelas montras das agências de viagens quando surgiu esse ensejo de ir ao outro lado da “cortina de ferro”. Repito, por um preço muito simpático.
No ano anterior, de carro, tínhamos cruzado a RDA, a Checoslováquia e a Hungria, sempre em hotéis baratos, com gastos contidos. Agora, a hipótese de ir a três cidades interessantes do “sol da terra”, como os comunistas de fora chamavam à União Soviética, era apelativa. O mundo do chamado “socialismo real” nunca havia sido a minha “praia” política e a viagem no ano anterior tinha confirmado plenamente muitas das minhas perceções negativas sobre aquelas sociedades. Mas a URSS, não obstante isso, continuava a ser um destino histórico. E aquela era uma bela oportunidade de o conhecer.
No dia aprazado, lá estávamos no aeroporto, para o voo da Aeroflot que nos levaria ao primeiro destino, a Leninegrado. Estranhámos encontrar um grupo de gente relativamente idosa, comparativamente connosco, então com pouco mais de 30 anos. Eram pessoas que viemos a constatar serem oriundas de zonas rurais ou de cidades distantes da capital, que quase nada compreendiam de inglês, a nossa língua veicular no país. E nós que não falávamos quase nada de norueguês! Só a guia, uma jovem divertida, e um homem um pouco mais velho do que nós, que viajava sozinho, com ar bastante urbano, tinham um razoável inglês. Pensámos logo: vão ser o nosso apoio no grupo!
Chegados a Leninegrado, a primeira surpresa: quase todos os nossos companheiros de viagem, para os quais, dada a incomunicabilidade linguística, só nos limitávamos a sorrir, colocaram na lapela um emblema com a efígie dourada de Lenine. Curioso! Aquilo prometia!
Fomos para o hotel e logo na primeira refeição, ficámos numa mesa com a guia e com o tal viajante solitário. Notei que este se mostrava curioso com a nossa presença no grupo. O que tinha levado um diplomata português e a sua mulher a virem naquela viagem? Lá fui respondendo, sem dar grandes detalhes, e, a certa altura, perguntei eu: por que coincidência quase toda aquela gente tinha colocado na lapela a imagem de Lenine? A cara do nosso interlocutor iluminou-se com um sorriso, respondendo-me com uma pergunta: “Sabe de quem é a agência que organiza esta viagem?”. Ao meu desconhecimento, ele respondeu: “De gente do Partido Comunista Norueguês”.
Caímos das núvens! Ali estava eu, jovem diplomata de um país da NATO, no meio da Guerra Fria, numa excursão dos comunistas noruegueses à sua “pátria” ideológica. Confesso que fiquei um pouco preocupado. É que, em Portugal, viviam-se os dias da Aliança Democrática, com o anti-comunismo bem à solta.
Os comunistas noruegueses eram então uma organização sem expressão política minimamente significativa. A memória da guerra havia criado, em alguma gente da Noruega desse tempo, um sentimento de gratidão residual à União Soviética, expresso mesmo em alguns monumentos comemorativos. O posterior conflito leste-oeste acabaria por diluir grande parte dessa lembrança, salvo para alguns nostálgicos. Parte deles ali ia connosco...
Com os dias a passarem, aquela minha preocupação foi-se desvanecendo. É que o solitário companheiro das nossas refeições acabou por revelar que era, nada mais nada menos, do que um agente dos serviços secretos noruegueses, “infiltrado” na viagem, e que, talvez por isso, já visitara a União Soviética por mais de uma vez. Detestava aquele país, mas falava russo...
Quando, duas semanas mais tarde, regressámos a Oslo, tendo estabelecido entretanto uma excelente relação com o “espião” e com a guia, que chegámos depois a convidar para casa, eu tinha a certeza de que, no seu relatório, ele atestaria a nossa “inocência” na escolha da viagem e dos nossos “fellow-travellers”, desta vez no verdadeiro sentido. Mas, pelo sim pelo não, não deixei de mencionar aos meus colegas do “Utenriksdepartementet”, o MNE norueguês, a minha incursão soviética, em tão insólita companhia.