Estávamos em Agosto de 1979. Era a primeira vez que eu assumia, interinamente, a chefia da Embaixada em Oslo. Tinha pouco mais de três meses de experiência no exterior e as férias do embaixador a isso obrigavam.
À época, o "sangue na guelra" e a inexperiência levaram-me a ser tentado a trabalhar nesse mês de substituição do embaixador como se tivesse sido ungido como "embaixador substituto". Daí que fosse afetado, sem o saber, pela "síndroma de Agosto" - esse "chico-espertismo" que faz com que os "encarregados de negócios" mais jovens, aproveitando as férias dos chefes de missão, se ponham em pontas de pés perante Lisboa, enviando correspondência em abundância, mostrando-se à tutela. Esquecendo que, nesse mês de Agosto, o Palácio das Necessidades está também deserto e quase ninguém os lê. Quase...
Assim, e a propósito de uma qualquer notícia surgida na imprensa, preparei um longo telegrama (nome que damos às comunicações urgentes, com distribuição prioritária - ao tempo enviadas por telex), creio que de quatro páginas, sobre a questão das dissidências entre a então URSS e a Noruega, a propósito da exploração de recursos do arquipélago de Svalbard. O tema era altamente especioso, implicava contextualização histórico-jurídica, pelo que era de muito duvidoso interesse para o MNE, para mais num tempo em que a nossa diplomacia tinha uma agenda de preocupações algo limitada. Gastar com o assunto quatro páginas, numa comunicação telegráfica, tipo de correspondência que devia ser guardada para coisas urgentes, era, manifestamente, revelação de imaturidade.
Imagino que, logo que enviado o texto, depois do que deve ter sido uma sua cuidadosa elaboração, ter-me-ei sentido satisfeito comigo mesmo. De facto, eu acabara de apresentar a Lisboa uma densa exposição sobre uma problemática importante para a política externa norueguesa. Não detetara, nos arquivos, que a Embaixada se tivesse dedicado com profundidade ao tema. Lisboa iria apreciar, pela certa.
Ora não foi bem assim. Dois dias depois, recebo um telegrama do MNE que dizia mais ou menos isto: "Telegrama nº tal não se justifica. Vossa Senhoria poderia perfeitamente ter informado sobre o assunto por ofício". (O "ofício", no jargão da casa, é um texto que segue semanalmente na mala diplomática, pelo correio). Na linha seguinte estava o pior, a assinatura desta "rabecada": "Ministro". (Noto que o "Vossa Senhoria" é a fórmula consagrada que o Ministério sempre utiliza para se dirigir a quem não tem estatuto de embaixador).
Alguém receber um telegrama assinado pelo próprio ministro dos Negócios Estrangeiros é uma coisa que rarissimamente acontece na nossa profissão. E, com uma mensagem tão seca e negativa, a excecionalidade tornava-se trágica. Posso imaginar como me devo ter sentido, pensando estar em face do início do fim da minha carreira. O meu ritmo de "produção" telegráfica deve ter levado, a partir daí, um corte substancial, resumindo-me ao essencial, para evitar atiçar ainda mais as iras lisboetas. No regresso de férias, o embaixador, em tom de algum desagrado, deixou cair que "ouvira nos corredores" a história do meu telegrama e da resposta do ministro. Não fora, de facto, uma brilhante estreia como "encarregado de negócios".
Mas não houve mais consequências e tudo acabou apenas por ser uma bela lição. Aprendi que, nas chefias interinas, os substitutos devem ser discretos e proceder exatamente da forma como imaginam que os substituídos gostariam que as coisas se passassem na sua ausência. Nem mais, nem menos. Foi o que passei a fazer a partir de então.