António Alves Martins
As ordens, nessa manhã de há precisamente 40 anos, tinham sido claras: os portões da unidade ficavam fechados e ninguém entrava sem uma autorização, dada caso a caso. A surpresa foi, assim, muito grande quando vimos o comandante da unidade, em passo lento mas firme, arrastando o corpo pesado, a subir a ladeira que levava à parada onde nos encontrávamos. O sargento de guarda ao portão ter-se-á amedrontado com a aparição da sua figura e, perante um berro hierárquico, lá o teria deixado entrar.
Ao ver surgir o comandante, o capitão do quadro que assumira as funções de oficial de dia, desde as primeiras horas do golpe, ficou lívido.
- Ora bolas! E agora, o que é que fazemos? - voltando-se para o António Alves Martins e para mim, que o acompanhávamos na parada.
Não deixava de ter a sua graça: nós, meros aspirantes a oficial miliciano, a aconselhar um profissional que era o responsável máximo de uma unidade militar amotinada.
Entretanto, o comandante ia-se aproximando, tínhamos poucos segundos para reagir.
- Prenda-o de imediato, mal ele chegar ao pé de nós - disse-lhe eu, em tom baixo, delegando comodamente a minha coragem.
Ainda era muito cedo, nesse dia 25 de Abril, não fazíamos a mais leve ideia de como estava a situação pelo país, não sabíamos mesmo se não seríamos das poucas unidades amotinadas.
- Você está doido, então eu ia lá prender o homem!. Pela disposição do capitão, eu e o António percebemos que as coisas não iam ser nada fáceis.
O comandante aproximou-se de nós e estacou, aí a dois metros. Trocámos as continências da praxe, com o António, dado que tinha a boina displicentemente no ombro, a fazer um mero aceno com a cabeça.
- O que é que você está aí a fazer de oficial de dia?, lançou o comandante, em voz bem alta, ao vê-lo com a braçadeira encarnada da função. Não era o "Ramos" que estava de serviço? E o que é que andam os cadetes a fazer pela parada? Porque é que a instrução ainda não começou?.
Eram aí oito e meia da manhã e, desde as oito, os soldados cadetes deveriam, em condições normais, estar a ter aulas. O capitão, sempre ladeado por nós os dois, estava, manifestamente, sem saber o que fazer, com o quarteto já sob os olhares gerais.
- Ó meu comandante, é que houve uma revolução…, titubeou o capitão, em tom baixo, como que a desculpar-se. Não explicou que o oficial de dia, que ele substituíra, havia sido detido nessa madrugada e estava fechado numa sala.
O comandante, sempre ignorando-nos olimpicamente, olhou o capitão nos olhos e atirou-lhe, com voz forte e bem audível à volta:
- Qual revolução, qual carapuça! Você está-se é a meter numa alhada que ainda lhe vai arruinar a carreira! Ouça bem o que lhe digo!.
O momento começava a ser de impasse. O comandante olhava já em redor, num ar de desafio, consciente de que recuperara algum terreno, mas também sem soluções óbvias para retomar a autoridade. Não havia mais militares do quadro à vista, alguns tinham ido para a missão externa que a unidade tivera a seu cargo, outros ter-se-ão prudentemente esgueirado, para evitar a incomodidade deste confronto com o comando legal. O capitão quase que empalidecia de crescente angústia.
É então que o António, com o ar blasé de quem já estava a perder paciência, lança um providencial:
- Ó meu capitão, vamos lá acabar com isto!.
O comandante olhou então finalmente para o António e para mim, dois meros aspirantes, com uma fácies de extremo desprezo, como se só então tivesse acordado para a nossa presença em cena.
Aproveitei a boleia da indisciplina, aberta pelo António, e fiz das tripas coração:
- Ó meu coronel, e se fôssemos andando para o seu gabinete?.
O coronel olhou-me, com uma raiva incontida:
- Coronel? Então já não sou comandante?.
A crescente nervoseira deu-me um rasgo, com uma ponta de sádica ironia:
- Não, não é, ainda não percebeu? E a conversa já vai muito longa, não acha, meu capitão?.
Mas o capitão continuava abúlico. O impasse ameaçava prosseguir.
- Então você deixa-se comandar por dois aspirantes?! - lançou o coronel, numa desesperada tentativa de puxar pelo orgulho do pobre oficial.
Mas o vento já tinha claramente mudado e achei que tinha de aproveitar a minha inesperada onda de coragem, até porque, no fundo, já pouco tinha a perder:
- O meu coronel quer fazer o favor de nos acompanhar até ao seu gabinete? É que, se não for a bem, tem que ir a mal e era muito mais simpático que tudo isto se passasse sem chatices.
Confesso que me espantei com a minha própria firmeza mas, pronto!, o que disse estava dito. O António sorria, deliciado. O capitão não reagiu, para meu sossego. O coronel entendeu então, talvez pela primeira vez, a irreversibilidade da situação. A sua voz baixou para um limiar de resignada humilhação:
- Então eu estou preso, é isso?, disse, num tom muito menos arrogante.
- Mais ou menos. Vamos andando, então - cortei, rápido, dando o capitão por adquirido, mas sem fazer a mais pequena ideia se ele queria ou não prender o coronel.
Nesse segundo, dei-me conta que, se tudo acabasse por correr mal, o meu futuro iria ser complicado. E lá fomos para o gabinete do comando. Duas horas depois, mandámos um carro levar o coronel de volta a casa.
Só o voltei a ver, anos mais tarde, ao entrar no Café Nicola. Recordo o olhar gélido que me lançou, com porte ainda altivo, barriga saliente, muito na reserva. Já com toda a liberdade, pedi uma bica.