Ver Keir Starmer e Emmanuel Macron a assumir um assinalável protagonismo, na atual crise de segurança ocidental, quando os sabemos a ambos extremamente debilitados nos respetivos cenários internos, mostra que a vida política é uma caixa de surpresas.
E deixa demonstrado que as fronteiras de uma rutura tão importante como foi o Brexit são subitamente diluídas quando "valores mais altos se alevantam", fazendo vir a jogo, mão-na-mão, os dois poderes nucleares europeus que um dia a América ajudou a cooptar para o Conselho de Segurança da ONU.
Quando muitos acusam, com óbvia razão, Donald Trump de abandonar o terreno multilateral e optar por um diálogo entre poderes, é uma ironia constatar que a Europa, nesta crise, se comportou exatamente da mesma forma: Macron impôs o Eliseu a Bruxelas e foi a Washington com ares de chefe de turma. A Europa dos 27 podia esperar ou, como diria De Gaulle, "l'intendence suit".
Aliás, na sua tumba em Colombey-les-Deux-Églises, Charles de Gaulle deve sentir-se vingado, ele que sempre achou que a excessiva dependência dos Estados Unidos reduziria a Europa a um poder vassalo de Washington.
Já agora, convém lembrar que o gaullismo, na ordem internacional, não era só isso, era também a sabedoria de um atempado sentido de relacionamento crítico com Moscovo.
Um sentimento que a Europa e a América do pós-Guerra Fria que nela se apoiou não souberam ou não conseguiram construir, assim contribuindo para o encasulamento autoritário e para o tropismo expansionista em que decantou o ressentimento russo.
Aqui chegados, e tendo a débito a patética cena na Sala Oval, que fazer, como diria o clássico?
Em poucas semanas, a NATO ficou entre parêntesis. Era um guarda-chuva de segurança que se baseava na previsibilidade da reação americana à ameaça das fronteiras dos aliados que sob ele se acolhiam. Todo o afã demonstrado pela Finlândia e pela Suécia para aderirem tinha como objetivo poderem partilhar essa apólice de seguro.
Com a chegada de Trump, o automatismo da atitude dos EUA desapareceu. Macron teve razão antes do tempo, quando um dia disse que a organização estava em "morte cerebral". Está, pelo menos, em "coma induzido". Por esse lado, e até ver, sabemos com o que (não) podemos contar.
A Europa - e por Europa, cada vez mais, deve entender-se a União e a NATO europeias, salvo escassíssimos reticentes como Orbán - sente-se por sua conta e risco. E está a fazer rapidamente as contas aos riscos que aí vêm.
Já se percebeu que uma Euro-NATO seria uma construção a prazo e que, na tarefa imediata a que se propôs - defender esta Ucrânia -, só poderia confrontar a Rússia tendo Washington ao seu lado. E foi-lhe dito por Trump que não terá.
A fuga em frente europeia consiste em apoiar Zelensky, a todo o custo - "até ao fim", havendo leituras cínicas da expressão. E aqui pode entrar numa inevitável contradição com Trump, que já se cansou do presidente ucraniano - como um dia um seu antecessor de cansou de Yanukóvytch.
Do que nas últimas horas chega de Washington, relativamente à liderança ucraniana, fica a ideia de que não veria com maus olhos a substituição de Zelensky. Experiência não falta aos americanos para este tipo de operações e Maiden lá está para o que der e vier.
O que se passou entre Trump e Zelensky, à vista de todos nós, não facilitou a vida à Europa. Trump sabe que, em grande parte, se deve ao conforto político europeu o facto de o líder ucraniano manter um maximalismo de objetivos. Por isso mesmo, a sua irritação com o "desplante" de Zelensky é também um ralhete para quantos apoiam a sua recusa de aceitar uma solução "realista".
Trump entende que a Ucrânia já perdeu a guerra e que ela, no fundo, terá nascido da sua ambição de integrar a NATO. Ainda não foi ao ponto de comprar o argumento de que a expansão da NATO a Leste esteve na origem última desta tensão, mas já não anda longe disso. No essencial, Trump absolve a Rússia nesta guerra.
Ele parece pensar que, se Kiev vier a ceder às ambições territoriais de Moscovo, isso apaziguará a Rússia e permitirá a preservação da independência do país, com um estatuto neutral, uma espécie de protetorado europeu, cuja reconstrução competirá naturalmente aos europeus pagar.
Ao contrário de Zelensky, que quer garantias visíveis de segurança para o caso de ter de ser forçado a ceder solo à Rússia (e o subsolo aos Estados Unidos), Trump acha que a palavra de Putin lhe basta, porque entende - e este é o ponto essencial - que a Rússia só teme os EUA. E que, se Putin lhe prometer algo, ficará preso a esse compromisso para não ter de vir a afrontar o poder americano.
No tocante à Europa, Trump também "confia" em Putin e não parece ser minimamente sensível à doutrina, que hoje faz caminho nos corredores do medo europeu, de que a Rússia é uma ameaça iminente. Mas deixa intuir que, se a Europa persiste nesse temor e quer continuar a dispor do chapéu nuclear americano, deve contribuir bem mais para o "burden sharing" e dotar-se de melhor equipamento militar, dos EUA claro. Só lhe falta dizer: "comprem americano" e não assumam posturas comerciais agressivas quanto a Washington.
Trump não dura sempre, pensarão alguns. Pois não. Pode vir aí J.D. Vance. Gostam mais?
(Artigo publicado a convite do "Público")
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