domingo, março 16, 2025

O outro golpe de 16 de Março


O António era um conquistador nato ou, como ele dizia com graça, referindo-se às suas tendências políticas de então, um pouco menos Nato e quase Pacto de Varsóvia. Tinha um sucesso enorme junto do "pequename", uma qualificação machista então em voga no nosso meio.

Tinha andado por Paris, na viragem dos anos 60 para 70, onde estudou sociologia e levou uma vida muito agradável, hóspede da cidade universitária, com um cheque mensal enviado pelo pai, um militar com posto elevado na Marinha. Contava histórias deliciosas da boémia parisiense que frequentara. 

Vestia-se sempre impecavelmente, tinha um MGB que era a inveja de muitos, abancava com noturna regularidade na barra do Gambrinus, onde espalhava a sua imensa simpatia e charme, que nas madrugadas ia testar nuns bares da moda. O facto de ser casado limitava-lhe, naturalmente, o espaço de manobra para as aventuras sentimentais, pelo que necessitava de montar alguns estratagemas por forma a conseguir levá-las cabo. 

Naquele mês de Março de 1974, ambos estávamos a prestar serviço como oficiais milicianos na Escola Prática de Administração Militar (EPAM), na Alameda das Linhas de Torres, no Lumiar. O António dividia o seu quotidiano entre a tropa, a universidade, onde dava aulas, e a noite.

Um dia, o António pediu a minha ajuda para uma “operação”: telefonar à mulher dele, a meio da manhã de uma determinada data, informando-a de que, inesperadamente, tinha ocorrido uma emergência e que ele fora enviado, com outros colegas, para um “exercício militar”, pelo que estaria incomunicável durante 48 horas. Eu devia acrescentar que era apenas um exercício de rotina, pelo que não havia qualquer razão para ela se preocupar. Na lógica de uma velha (ainda que contestável, eu sei!) solidariedade masculina, prontifiquei-me a fazer essa chamada telefónica.

O plano do António era arrancar cedo para a Ericeira, acompanhado de uma bela pequena, impante no seu MGB. Havia já assegurado, antecipadamente, uma folga no serviço, para que tudo corresse sem falhas. No seu caminho para a Ericeira, passou na Alameda das Linhas de Torres e do que diabo se lembrou? De ir atestar o depósito de gasolina na unidade militar, onde o preço era muito mais barato. Esse era um dos privilégios que ninguém deixava de utilizar.

À chegada à EPAM, um complexo situado onde hoje é uma universidade, o António estranhou ao ver que os grandes portões de entrada estavam fechados, contrariamente ao que era habitual. Buzinou, aparecendo pela guarita a cabeça do sargento-de-guarda, o Sacadura, o qual, reconhecendo-o, deixou entrar o carro.

Só que a vida tem destas surpresas: estávamos precisamente no dia 16 de Março de 1974. As tropas fiéis ao general Spínola tinham-se amotinado na noite anterior nas Caldas da Rainha e a EPAM, como todas as unidades militares, estava, desde há horas, de rigorosa prevenção. Como era de regra nestes casos, todos os militares ficavam obrigatoriamente retidos em serviço. A unidade não tinha conseguido contactar o António.

O António já não foi autorizado a abandonar o quartel. Recordo-me da sua fúria e do imenso gozo com que alguns de nós, escassos e discretos conhecedores do esquema que acabara de se esboroar, vimos a pobre e bela amiga do António a ter de sair da EPAM, a pé, com um saco na mão, em busca de um táxi ou de um autocarro. Por mim, livrei-me de ter de dizer uma mentira à mulher do António. Logo naquele dia, em que ele tinha um álibi imbatível. 

O António já se foi desta vida há alguns anos. 

Para os anais da História, deixo apenas aqui registado que, em 16 de março de 1974, não falhou apenas o "golpe" de Spínola...

2 comentários:

ematejoca disse...

Fiquei tão empolgada com a deliciosa história até, contra o meu costume, lhe desejo um domingo em beleza.

Anónimo disse...

¿parece una pelicula de fernando fernan gomez o de jose luis lopez vazquez en los primeros años 70?

O outro golpe de 16 de Março

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