quarta-feira, julho 22, 2020

Rir no fim


Poucas pessoas desprezaram mais as instituições europeias do que Margareth Thatcher. A antiga primeira-ministra britânica olhava o projeto que tinha Bruxelas por eixo como uma perfídia institucional destinada a sabotar as soberanias nacionais, em proveito de uma burocracia que a si mesmo se tinha por iluminada, ao serviço de um objetivo centralista, fruto de um conluio de potências que, no fim do dia, eram adversas dos interesses britânicos. Via isso como uma espécie de “socialismo pelas portas traseiras”, como alguns por cá também ecoaram.

O Reino Unido, que historicamente começara por recusar a integração europeia, rendera-se, com íntima relutância, a ter de dele fazer parte, pelas desvantagens que resultavam da sua ausência. Fugiu, depois, a todos os compromissos que pôde evitar. Até um dia. Thatcher teria rejubilado, se tivesse assistido ao Brexit.

Lembrei-me ontem dela. As cinzas não riem, mas dei-me ao luxo de imaginar algumas gargalhadas a saírem do sítio onde as de Thatcher repousam, no Royal Hospital, em Chelsea. Mas teria ela razão para rir?

Ao assistir à feroz barganha das últimas horas, em especial à multiplicação dos “cheques” para compensação de alguns parceiros que mais avessos se tinham mostrado ao compromisso, lembrei-me do célebre “I want my money back!” (Quero o meu dinheiro de volta!), que sintetizava a sua postura reivindicativa dentro da Europa.

O processo financeiro europeu embrulhou-se ontem num modelo da maior complexidade, com algumas incoerências, induzindo dúvidas sobre a racionalidade de algumas soluções.

Mas isso importa para alguma coisa? Ontem, a Europa foi capaz, com todos esses defeitos processuais, de levar à prática exatamente aquilo para que foi criada: resolver os problemas dos cidadãos.

Há uns meses, falar da mutualização da dívida era um tabu. O tabu desfez-se. Por anos, era inviável a criação de “novos recursos”, isto é, novas fontes de financiamento orçamental. Agora, são inevitáveis.

A Europa é lenta no processo, hesitante nas decisões, complexa nos mecanismos. É defeito? Talvez seja, mas é um defeito democrático. Quem se senta à roda daquela mesa tem um mandato a cumprir. Uns foram votados para serem avaros, com a solidariedade no fundo das prioridades. Outros clamam por compensações pela abertura dos seus mercados, arrostando com a imagem de pedinchões. Cada um tem a sua legitimidade. Discutem e resolvem.

Thatcher pode ter-se rido, ontem. Mas, na Europa, ri melhor quem ri no fim.

11 comentários:

Anónimo disse...

Faltou referir aqueles que tiveram mais que tempo de se adaptarem à abertura de mercados e preferiram esbanjar o dinheiro em corrupção e má gestão de recursos. "Compensações pela abertura de mercados" é um eufemismo demasiadamente doce.

Anónimo disse...

Acha sinceramente que com a nossa porverbial ineficiência, os problemas dos cidadãos vão ser resolvidos? Que, com a massa que aí vem, vamos deixar a cauda da Europa? Servirá ela para melhorar a nossa vida ou para perpetuar o PS e a sua entourage no poder? Inclino-me mais para a segunda hipótese.

Jaime Santos disse...

Os britânicos tiveram uma posição central na construção do Mercado Único (mas não perceberam ou aceitaram que a UE era muito mais do que ele). As reivindicações de Thatcher nunca foram muito mais do que 'posturing' para alcançar acordos melhores para o seu País e agradar à imprensa tablóide.

Agora que o RU o abandona para assinar acordos comerciais não se sabe bem com quem, mas seguramente em posição de fraqueza, acha sinceramente que Thatcher se estaria a rir?

Thatcher defendeu a permanência do RU na então CEE, no primeiro referendo nos anos 70, organizado pelo Governo de Harold Wilson.

Johnson na retórica, mas não nos instrumentos, é muito mais um discípulo de Wilson do que de Thatcher, se bem que as boas intenções de Wilson de desenvolvimento do RU no calor branco da tecnologia, nunca passaram disso.

Thatcher devolveu o RU à sua posição de centro comercial e financeiro, ela era afinal a filha de um merceeiro, Johnson sonha com uma nova revolução industrial...

Mas andar a mudar de modelo económico de 40 em 40 anos é capaz de ser má ideia... Quem tem razão é a Alemanha, que mantém a sua fidelidade ao ordo-liberalismo...

Perante isto, volto a perguntar, onde estaria a razão para Thatcher, se fosse viva, rir?

Anónimo disse...

No RU, o ex-maior contribuinte líquido, há quem respire de alívio. "Short-sightedness"?.
Na UE, sempre sem a indispensável uniformização fiscal, há quem deite foguetes. Miopia?.

Anónimo disse...

Gráfico com os países da UE e a sua contribuição para o orçamento comunitário (dados de 2018)

https://cdn.statcdn.com/Infographic/images/normal/18794.jpeg

Anónimo disse...

Designar a Alemanha como "contribuinte líquido" nesta UE, é uma liberdade poética.
Se a Alemanha fosse na verdade o "maior contribuinte líquido" (!) de esta União Europeia, esta já teria desaparecido há muitos anos. Imaginemos o Sr. Wolfgang Schäuble a contribuir.... :-)

Anónimo disse...

Tem "22 de julho de 2020 às 16:43" toda a razão. A Alemanha não é um contribuinte líquido mas sim pastoso já que entra com a pasta qua alimenta muita gente, entre as quais, provavelmente, o cavalheiro.

Anónimo disse...

O projecto europeu é cada vez mais um projecto falhado.
É tudo uma questão de tempo. Não há coincidência de ideias e ideais entre o Norte da Europa e o Sul.
Espero ainda assistir um dia a cada um por si, ou seja, pelo fim da U.E e por junto do EUR.
É pena? É. Mas, o projecto idealizado há décadas nada tem a ver com o que é a U.E de hoje. Impera o Neoliberalismo, mesmo que algo envergonhado. E não é de agora.

Anónimo disse...

Sim, ajudam-se finalmente o que é bom.
Na minha família votamos sempre todos de forma diferente mas gostava que soubesse que a percentagem dos nossos votos que calharam ao Brexit foram também baseados na forma horrenda com a qual a Troika governou Portugal.
Certos relatos de empregados de escolas portuguesas que conhecemos nos verões em Portugal de alunos esfomeados logo de manhã à espera que as cantinas abrissem para tomarem o pequeno almoço tambem contribuiram para que um ou outro membro da família tenha feito um balanço sui generis antes do referendo para o Brexit.
Acho que o Brexit, que pode ou não vir a prejudicar o RU, acabou por indiretamente ajudar a a UE que não se atreveu a não chegar a um acordo nesta pandemia.
Não acho piada à miséria alheia e espero que tanto os europeus como os habitantes do RU singrem da melhor forma possível sem Thatchers.

Anónimo disse...

Ninguém fez tanto mal ao capitalismo são do que a Thatcher, a mais republicana e anti conservadora PM do Partido dela. Mas lá que os burocratas de Bruxelas se julgam auto iluminados posso garantir que julgam.
Fernando Neves

Anónimo disse...

Caro Embaixador. O problema é que isto nâo é o fim. A procissão UE ainda está no adro.
Com um Brexit radical -se não reformarem já o Sr. Barnier- juntou-se à procissão um novo andor:
A dívida comum, para complementar a moeda comum. O prenúncio do desastre comum?.
Quando a confraria dos "sovínas", os donos dos festejos, começarem a selecionar os andores é que vai ser o fim, para alguns.
Ps. A tempestade erdogãnica não vai ajudar nada aos festejos.

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