quarta-feira, março 18, 2015

Memorabilia diplomática (IX) - Uma profissão improvável

 
Era um homem encantador, que conheci num "Dez de junho", poucos dias após chegar ao meu primeiro posto, em Oslo, em 1979. Estaria na casa dos cinquenta, com um ar um pouco mais velho, porque a vida dura que o trouxera emigrado para a Noruega, onde labutava numa fábrica, não ajudava a conservar a frescura. Tinha vindo da Beira, de onde conservara a maneira de falar própria, com muitos "ches" à mistura. Viera com a sua mulher, há mais de vinte anos e o seu português, embora fluente, ressentia-se já disso. Dois filhos tinham-lhe nascido nas terras nórdicas. Nas visitas que, por vezes, me fazia na embaixada, quando por lá passava para renovar o passaporte ou tratar de qualquer outro documento, falava-me com orgulho do excelente percurso académico da prole.
 
Um dia, já no período final da minha estada no posto, convidou-nos para ir almoçar à sua casa, num fim de semana. Era um moderno apartamento numa zona fora de Oslo, mobilado e decorado ao gosto de quem trouxera a saudade do Portugal rural agarrada à pele. Notava-se que a vida de operário especializado lhe tinha garantido proventos para uma existência relativamente desafogada, a qual, claro, lhe havia dado oportunidade de construir a casa na aldeia beirã, para a qual regressaria no final da aventura norueguesa. Estava muito grato à Noruega: a ele e à mulher, dera-lhes trabalho e bom salário, usufruíam do Estado social, tinham uma boa pensão à sua espera, educara-lhes os filhos.
 
O almoço, que era um gesto bem amável de despedida, era também sobre isso. Um dos rapazes acabara, com excelente nota, o curso de Relações Internacionais, na universidade de Oslo. Com dupla nacionalidade, por consenso familiar, tinha intenção de ingressar na carreira diplomática portuguesa. Não sabiam por onde começar para concretizar o sonho do rapaz e, por isso, pediam a minha ajuda.
 
Era um miúdo tímido, com ar vivo. Ainda à mesa, perguntei-lhe pela composição do curso, para perceber se se coadunava com as nossas exigências. Quando falou - e era a primeira vez que o ouvia - caí das nuvens! O licenciado com mérito na universidade norueguesa tinha, em português, uma fala hesitante, articulava muito mal as frases, sofria de uma imensa pobreza vocabular. Ele era, simultaneamente, um norueguês educado, seguramente bem fluente, e um português que nem sequer tinha o ritmo discursivo, já de si muito pobre, dos seus pais. Copiava-lhes o sotaque, num registo caricatural, que redundava numa sonoridade bizarra. Só um ou dois anos de "imersão total" na sociedade portuguesa, com alguém que o ajudasse a adquirir uma cultura linguística suficiente, permitiria que viesse a obter as bases mínimas para poder apresentar-se ao concurso para diplomata em Portugal. E, mesmo assim...
 
Eu não sabia o que havia de dizer àqueles pais que tinham o sonho de ver o seu filho como meu futuro colega. Perguntei-lhes qual o plano de vida que tinham para ele. A confiança era imensa: apenas queriam saber os requisitos para o concurso. O rapaz haveria de se preparar, lá em Oslo, para um dia ir fazer as provas a Lisboa. Embaraçado, dei conta da imensa exigência do exame, do facto de serem centenas ou para cima de um milhar de candidatos para um admissão de uma dezena ou um pouco mais, das temáticas de História portuguesa que era fundamental dominar. Disse-lhes que havia candidatos que passavam meses consecutivos a estudar os temas para as provas, frequentando a biblioteca das Necessidades. E que a esmagadora maioria não era admitida. Os meus avisos não desanimavam o meu amigo, embora eu pudesse detetar no filho alguma perplexidade.
 
Dias depois, enviei-lhes o regulamento do concurso, agradecendo-lhes a simpatia do almoço. Parti da Noruega para Angola, algumas semanas depois. Nenhuma das caras de jovens colegas com os quais me cruzei, nos anos seguintes, nos claustros e corredores do palácio das Necessidades, era o filho daquele meu amigo português da Noruega.      

13 comentários:

Filomena Taborda disse...

Exmo sr Embaixador ,depois do que disse da dificuldade imposta para ingressar na carreira diplomática ,fiquei estupefacta ao ler isto :

http://marchadovapor.blogspot.pt/2015/03/diplomata-impetuosa-forca-entrada-em.html

Matias disse...

Memórias preciosas.
Obrigado por partilhá-las.

domingos disse...

Não deixa de ser uma história triste.

patricio branco disse...

esperava, enquanto lia, que tivesse visto nos corredores do mne o jovem luso-norueguês interessado em concursar, que seria esse o desfecho

Bartolomeu disse...

Apesar de tantos requisitos e exigências para ingressar na carreira, alguns diplomatas (encartados) têm dado "barracadas" monumentais. Exemplo disso tem sido o atual Ministro...

Francisco Seixas da Costa disse...

O Bartolomeu acaba de dar-nos a informação preciosa de que o doutor Rui Machete é "diplomata". Vou dizer-lhe...

Francisco Seixas da Costa disse...

O Bartolomeu acaba de dar-nos a informação preciosa de que o doutor Rui Machete é "diplomata". Vou dizer-lhe...

Anónimo disse...

Falar Português para quê???Não percebo, porque, subservientemente, passo o tempo a ouvir os nossos diplomatas a falar Inglês e a usar termos do país de Sua Majestade e não do país que os envia a representá-lo e lhes paga. Já é tempo de acabar com esta hipocrisia linguística. Gostava que os diplomatas portugueses, na embaixadas e consulados, já que são território português (creio!!!!), só falassem a língua de Camões, que até andou por longes terras. Ao que a gente chegou!!!

Bartolomeu disse...

Não se faça desentendido, nem de falso ingénuo, Senhor Seixas. Sabemos perfeitamente que a formação académica do Ministro, é na área jurídica e que as barracadas têm sido na área diplomática interna e externa, talvez por deter uma pasta para aqual não possui habilitações...

Anónimo disse...

Mas é possível que haja uma pessoa que escreve em blogues que não saiba a diferença entre um diplomata de carreira, que tem de fazer um concurso público papa aceder à sua profissão, e um cidadão que exerce esporádicas funções políticas no MNE?
Dito isto , muitos filhos de diplomatas portugueses, que por definição fazem o seu percurso escolar em línguas estrangeiras, chumbam o concurso pela sua insuficiência em Português.
Fernando Neves

C.Costa disse...

Senhor Embaixador,
Como Professora no curso de Relações Internacionais de uma instituição que tem fornecido ao MNE numerosos candidatos, bem sucedidos,à carreira diplomática, o ISCSP, posso atestar a qualidade dos nossos alunos. Mas não me parece que a mesma tenha exclusivamente a ver com o domínio da língua materna, que é, obviamente essencial. Tem, e muito, a ver com a formação multidisciplinar que lhes é proporcionada, nas áreas da ciência política, relações internacionais, geopolítica, economia, antropologia. Essa formação integrada, que é a mais difícil de adquirir e dominar, é que constitui o principal ingrediente de sucesso. Ao que sei, as universidades europeias mais relevantes na área, incluindo a de Oslo, primam também por esse tipo de formação. Assim, suspeito que o jovem em causa, se tivesse entretanto resolvido as dificuldades linguísticas, poderia, de facto, ter vindo a desempenhar um papel relevante na nossa diplomacia, a semelhança dos colegas formados em escolas portuguesas.Mas talvez tenha seguido os conselhos de algumas altas entidades políticas portuguesas, de contribuir para a prosperidade de outros territórios..Parece que por cá já temos demasiados recursos qualificados..
Cumprimentos
C.Costa

Unknown disse...

Como é que um rapaz tinha a intenção de ingressar na carreira diplomática portuguesa e só após a conclusão do curso na Noruega é que se preocupa em saber quais as bases mínimas para poder apresentar-se ao concurso para diplomata em Portugal?
Interessante, não?

Unknown disse...

É bizarro que um rapaz pretenda ingressar na carreira diplomática portuguesa, mas só depois de terminar o curso de Relações Internacionais, na universidade de Oslo, é que se preocupe em saber afinal quais as bases mínimas para poder apresentar-se ao concurso para diplomata em Portugal.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...