terça-feira, março 10, 2015

A Venezuela e a doutrina Monroe revisitada

A situação que se vive na Venezuela deve preocupar-nos a todos. Por lá reside a maior comunidade portuguesa emigrada num só país, cujos interesses económicos e segurança pessoal têm de merecer um atento acompanhamento diplomático da nossa parte, em especial no período de instabilidade político-económica que o país atravessa. Uma comunidade que, sem surpresas, não parece estar muito em sintonia com a linha política que domina o governo da Venezuela, mas a quem a prudência parece dever aconselhar contenção, neutralidade e um comportamento que, tanto quanto possível, não facilite a sua instrumentalização pelas forças político-partidárias que polarizam o debate. Mas, naturalmente, os portugueses e luso-venuzuelanos são livres de tomarem as opções que muito bem entenderem, na plena certeza de que as consequências que delas puderem resultar serão da sua inteira responsabilidade. 

A Venezuela que passou a existir depois da morte de Hugo Chávez acelerou ou sinais de instabilidade já existentes. Nicolás Maduro dá sinais de ser um líder fraco, enveredando por uma permanente fuga em frente, numa deriva que soa a desespero, agora agravado pela queda drástica dos preços do petróleo e pelas consequências que daí resultam para o alimentar de políticas públicas que tinham nessa matéria prima a essencial base financeira. O caminho "bolivariano" pôde manter-se enquanto apoiado em réditos regulares, que permitiam favorecer os "descamisados" e sustentar artificialmente preços e serviços, alimentando a gigantesca máquina estatal.

O presidente Lula, do Brasil, tinha algum "leverage" sobre Chávez e achava-lhe genuinamente alguma graça. Falei com ele algumas vezes sobre a personagem, que ele distinguia de forma muito clara de outros líderes locais, como Morales (da Bolívia) ou Correa (do Equador), e notei que, perdendo por vezes a cabeça com algumas das atitudes do líder venezuelano, tinha por ele alguma afetividade, embora estivesse muito longe de partilhar as suas bizarras e idiosincráticas atitudes. O Brasil foi um importante fator de tentativa de credibilização de Chávez junto de outros parceiros, com um sucesso que o líder venezuelano regularmente se encarregava de arruinar, pela imprevisibilidade das suas reações e atitudes.

Um dia, um importante ministro brasileiro, que acompanhou Lula numa das suas frequentes visitas a Caracas, contou-me uma história significativa que era bem reveladora do pensamento íntimo de Chavez. Numa conversa, Lula fazia notar a Chávez que os ganhos do Brasil, no seu comércio com a Venezuela, eram exponenciais. O Brasil nunca ganhara tanto nos seus negócios no país, numa a balança comercial lhe fora tão favorável. E, no entanto, "com amizade", afirmou que o Brasil não se sentia bem nessa relação tão desequilibrada, em grande parte devida à ausência de um setor produtivo venezuelano que se pudesse desenvolver e criar produtos essenciais à satisfação de setores básicos da sua população, nomeadamente na área alimentar. O Brasil estaria disposto a ajudar nisso, na criação de empresas industriais que pudessem substituir importações e reforçar a produção industrial venezuelana. 

Chavez olhou para Lula, percebeu a genuinidade do gesto e adiantou: "Tens razão! Já tinha pensado nisso e tenho um grupo a estudar a criação de um conjunto de empresas estatais dedicadas a vários setores de produção de produtos essenciais". O presidente brasileiro deu um salto na cadeira: "Eu queria dizer empresas privadas, não empresas estatais!" Foi a vez de Chávez se alarmar: "No, privadas, jamás!" Para logo acrscentar: "Os privados ligam-se logo à reação contra mim!".

No avião de regresso a Brasília, Lula comentou com os seus ministros e colaboradores: "Este Chavéz é incorrigível. Dificilmente não acabará mal, por muita ajuda que lhe dermos".

Chavéz "se calló" para sempre. Lula saiu de cena (por ora?). Na Venezuela, subiu Maduro, um subproduto da memória chavista. No Brasil, Lula, o tal que, segundo a tradição, "elege um poste", conseguiu eleger Dilma Rouseff e foi uma âncora indispensável à sua recondução. A aliança entre o Brasil e a Venezuela já teve dias melhores, com ambas as economias, em parte por razões diferentes, a atravessarem dificuldades. Em Caracas, nos dias que correm, as atenções devem agora estar voltada para o "big brother" do Norte. É que Washington, de quando em vez, lembra-se da "doutina Monroe", em especial quando as coisas lhe começam a correr mal noutras geografias e quando, para efeitos internos, tem de "compensar" os novos gestos face a Cuba. É tudo tão óbvio, não é?

7 comentários:

Luís Lavoura disse...

Uma comunidade [portuguesa] que, sem surpresas, não parece estar muito em sintonia com a linha política que domina o governo da Venezuela

Eu o que pergunto é por que é que essa comunidade, se não está em sintonia com a linha política governamental, e estando a situação económica do país em clara deterioração, não se pisga dali para fora.

Admira-me como é que Portugal não está ainda a enfrentar um maciço retorno de emigrantes na Venezuela. Eles são tantos que, se decidissem voltar para Portugal, fariam o mesmo efeito (provavelmente, ao fim de alguns anos, benéfico) dos refugiados de 1975.

Joaquim de Freitas disse...

Muito bem visto. Creio que o que segue nos indica qual vai ser o caminho que os EUA vão seguir num futuro muito próximo.
" Os Estados Unidos não encorajam nem as revoltas no Venezuela, nem procuram minar a sua economia ou o seu governo... O departamento do Tesouro e o departamento do Estado observam evidentemente a situação de perto e estudam os meios disponíveis que poderiam ser utilizados para uma melhor orientação do governo venezuelano na direcção que nós pensamos que ela deve ser. "

Josh Earnest, porta-voz da Casa Branca em 20 de Fevereiro 2015.

Não sei como traduzir em Português, mas em Francês há uma frase que diz tudo: "Ce que parler veut dire". Ou, " à bon entendeur, salut !"

Os media internacionais há já muito tempo que preparam a opinião pùblica internacional ao golpe final dos EUA. As críticas ao sucessor de Chavez são tantas (e algumas certamente justas) que o que se prepara passará quase como inevitável. Um pouco como os frasquitos de Colin Powell na ONU para justificar a invasão do Iraque!

A empresa de destabilização permanente organizada pela oposição recebe a ajuda dos missionários habituais da Embaixada dos EUA, do RU e do Canadá. Sem dúvida , é um movimento que vai continuar.

Compreende-se a solicitude dos Americanos. A Venezuela é o quinto exportador de petróleo mundial e possui as maiores reservas provadas de petróleo do mundo. A Venezuela é mais rica em petróleo que a Arábia Saudita, segundo a OPEP. 297 biliões de baris valem a pena de se interessar.
A presença da 4° frota americana ao largo da Venezuela não é para o turismo!

Como muito bem escreve, a América Latina, infelizmente desde o Rio Grande até à Patagónia, foi sempre pensada pelos EUA como o seu jardim privativo. Monroe, que grande visão imperialista.

Bartolomeu disse...

Os tipos têm é umas camisolas munta giras. Até aposto que foram compradas aos ciganos da feira de Carcavelos.

Anónimo disse...

O paranoico do Freitas - como não podia deixar de ser! -, saltou completamente por cima do texto (uma crítica à palhaçada venezuelana), para se fizar na sua obsessão antiamericana. Trate-se homem!!!

adelinoferreira disse...

"A Venezuela é uma ameaça à segurança dos EUA"😀
O Maduro, começou a vender petróleo em qualquer moeda, logo fez disparar o alarme vermelho.Esta gente não percebe que o petróleo tem que ser transaccionado só em dólares.

Anónimo disse...

Langley escuta. Lusodescendente

patricio branco disse...

terrivel a situação nesse país, completo desrespeito pelos ddhh, corrupção como nunca ali se viu, narcotrafico quase oficializado, apoio a grupos terroristas (farc, eta, ausencia dramatica dos produtos de consumo mais básicos, desde alimentação, a higiene, ou para a saúde, um discurso populista que já não se usa, e ainda por cima, para desespero do governo, a aproximação de cuba aos eua

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...