domingo, março 08, 2015

Festivais


Sou de um tempo em que o festival português da canção e, depois, o da Eurovisão, paravam o país, comigo incluído, bem entendido. Lembro-me bem de uma noite de 1967, no Porto, em que só uma réstea de bom-senso me fez optar por ir para o "galinheiro" do Palácio de Cristal, ver um Portugal-Espanha em hóquei, em vez de assistir, na sala de TV do Centro Universitário, à vitoria de "O vento mudou", de Eduardo Nascimento. No ano seguinte, colaborei com o júri que, em Vila Real ("Aqui vão os votos do júri de Vila Real: canção número 1..."), certificou a escolha de "Verão", de Carlos Mendes.  Em 1969, Simone de Oliveira quase que trasladou para a final da Eurovisão, em Madrid, a "alma" do país, com a "Desfolhada". A dimensão popular da sua recepção em Santa Apolónia derrotou a chegada do Porto de Humberto Delgado, em 1958, e estabeleceu uma fasquia a que Mário Soares não conseguiu estar à altura, quando por aí regressou do exílio, em 1974.

Esse foi também o início do cíclico, angustiado e também muito lusitano tempo das "vitórias morais", da denúncia das sinistras conspirações internacionais contra as nossas inspiradas obras, pela óbvia perfídia dessa Europa a que já havíamos aderido vocalmente "avant la lettre". Tempo que passou a consagrar, com a vitória interna, a saudável presença de José Carlos Ary dos Santos nestas lides musicais. A textos seus se ficaram a dever alguns dos melhores momentos do festival.

A canção vitoriosa em 1974 foi a senha da Revolução de abril, com Paulo de Carvalho a cantar "E depois do adeus". O adeus à ditadura foi, para mim, o início do adeus ao festival. Em 1975, um capitão de Abril (!) representou Portugal na Eurovisão, num escusado pleonasmo político-musical. Seguiram-se dois anos de canções militantes para, finalmente, o nosso país passar a eleger coisas com títulos tão significativos como "Dai-li, dai-li dou", "Sobe, sobe, balão sobe", "Baunilha e Chocolate" ou outros com idêntica profundidade e inspiração lexical. Nuns anos, ainda houve recaídas para o cançonetismo de "mensagem", noutros, há que reconhecer, aconteceram momentos musicais com alguma graça e qualidade. Muito poucos.

A presença da canção portuguesa nos festivais da Eurovisão é, desde o primeiro dia, desde 1964, um dos raros momentos do ano em que a política externa portuguesa é assumida pela generalidade dos telespetadores que ainda ligam ao tema: "vamos a ver se os "nuestros hermanos" votam ou não em nós!"; "ainda estou para saber para que serve a velha Aliança? Os "bifes" deixaram-nos cair"; "espero que os nossos emigrantes ponham a França a nosso favor"; ou "e deixámos nós aqueles tipos entrar para a Europa para agora não nos darem nem um pontinho...". E só registo os comentários publicáveis, claro. João Abel Manta retratou como ninguém, em tempos de ditadura (e, julgo, teve um ridículo processo censório por isso), esse "musicopatriotismo", como a imagem acima atesta.

Há cinco anos, escrevi por aqui o texto que acaba de ler. Há minutos, ao ouvir uma miúda (bem gira, por sinal!) aos berros e desafinada, que parece que nos vai representar à cidade da música, para uma gala da Eurovisão que agora inclui a Austrália (!!!), quase que senti saudades da "Oração" do António Calvário, já há meio século.

5 comentários:

adelinoferreira disse...

"A dimensão popular da sua recepção em Santa Apolónia derrotou a chegada do Porto de Humberto Delgado"
Pudera! No trajecto do Hotel Infante de Sagres até à estação de S.Bento, uma multidão tinha sido corrida à bastonada logo que o general entrou na estação para fazer a viagem.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caramba, Adelino Ferreira! Será que tudo tem de ser levado à letra? A vida é assim tão séria?

Anónimo disse...

Ainda a Simone vai dar nome a algum aeroporto, não?

Bartolomeu disse...

Não sei se é do conhecimento do Senhor Embaixador a redição do "Vento Mudou", uma iniciativa do músico de Cascais, Miguel Ângelo, em parceria com Eduardo Nascimento.
https://www.youtube.com/watch?v=SEmdd6lSuzw
Neste link é possível assistir ao vídeo que usa adereços e figurinos da época.
Sem querer de forma nenhuma voltar "à vaca fria" - não faz o meu género, quero no entanto salientar que este post sim, além das memórias, ou por via delas, fez-me sorrir. Não um sorriso saudosista mas, lacónico porque também foi breve o tempo que decorreu mas profundas as mudanças.

Abraham Chevrollet disse...

Antes a Austrália que Israel!
Mai vale um kanguru bêbado que cem Natanyaus sóbrios...

Antes do Alasca

Parece haver importantes avanços militares russos nos últimos dias na frente ucraniana. Pode ser só uma coincidência, mas o "timing...