Cheguei à conclusão de que há uma idade na vida em que nos podemos dar ao luxo de ter dúvidas. Cada vez mais, passado para mim um tempo que já foi de certezas quase absolutas - e felizes devem ser quantos as conservam -, olho para os factos tentando medi-los pelo seu valor próprio. E, muitas vezes, verifico que isso não corresponde àquilo que se poderia qualificar como uma linearidade de inabalável coerência, à luz de matrizes ideológicas pré-determinadas. Mas, certo ou errado (e não tenho a pretensão de estar nem uma coisa nem outra), procuro ser coerente com aquilo que intimamente penso.
Vem isto a propósito da questão das faturas, em especial dos seus anunciados leilões de prémios.
Nenhum governo fez mais do que o atual para abalar a profunda solidariedade que, em toda a minha vida, sempre alimentei para com o Estado, que erigi intimamente como o intérprete de um interesse coletivo com que entendo dever estar tendencialmente solidário, desde que dirigido com legitimidade democrática. Também é verdade que nunca como nos últimos anos tinha assistido ao espetáculo de ver o Estado dirigido por quem tanto o diaboliza e espera conseguir poder desmantelar de forma irreversível, antes do país lhe dar, nas urnas, o devido destino.
Nào obstante esta minha conjuntural atitude face ao Estado, em razão da sua tutela conjuntural, uma lógica de equidade leva-me a ter de exigir que todos sejam tratados da mesma forma quando uma lei tributária - por mais injusta que possa ser - nos é imposta. Como qualquer cidadão normal, não gosto de pagar impostos, mas, se tenho de fazê-lo, espero que todos procedam de forma idêntica. E que ninguém seja poupado ao seu dever cívico.
Já no passado aqui referi a questão de "passar fatura", em especial nos estabelecimentos comerciais. Vivi em vários países e não me recordo de algum ter chegado ao "modelo" que foi criado entre nós. Em parte nenhuma do mundo vi perguntar a alguém se quer "factura", se pretende uma "fatura simplificada" ou ouvir uma pessoa, pateticamente, ter de debitar ao vendedor o seu número de contribuinte. Posso ter estado desatento, mas não recordo nada igual.
Dito isto, eu hoje exijo sempre fatura numa compra comercial. Desde um simples café a uma aquisição de livros ou gasolina. Lamento muito o encargo que o fisco hoje representa para profissionais do comércio que têm uma vida difícil, mas não tenho o direito de ser eu a escolher aqueles a quem "ajudo" a fugir à legalidade que é respeitada pelo outros. Mas porque assim procedo, e porque entendo que todos assim deveriam proceder, a coerência obriga-me a apoiar medidas que estimulem a que outros procedam da mesma forma. E se uma sociedade como a portuguesa não tem, imbuído em si mesma, o espírito de solidariedade cívica que leva a que a todos se empenhem numa igualdade de direitos e deveres, acho perfeitamente normal que possa haver estímulos para que muito mais cidadãos sejam levados a adotar essa linha de comportamento, mesmo que, infelizmente, isso tenha de ser feito por uma via menos curial, como é a dos bizarros sorteios.
(Quase que apostaria em como muitos que acabaram de ler este texto vão estar de acordo com parte do que nele escrevi e em desacordo com a outra parte, embora não necessariamente pela mesma ordem.)