terça-feira, fevereiro 04, 2014

Praxes

É da praxe não falar na reestruturação da dívida, um eufemismo que se utiliza para referir o seu não pagamento parcial. Assumir que parte da dívida dos Estados nunca será paga afecta o mito de que ela é comparável ao endividamento dos particulares.

Há uns tempos, um antigo político explicou que a generalidade dos Estados tem uma dívida recorrente, que procura “reciclar” através de novos empréstimos, a custos tão baixos quanto possível. Caiu-lhe logo “o Carmo e a Trindade” em cima, sendo “irresponsável” o mais doce qualificativo com que foi mimoseado. Há dias, um banqueiro na moda disse precisamente o mesmo. Um respeitoso silêncio dos cemitérios abateu-se sobre as suas declarações. A mesma verdade tem um valor relativo, proporcional às emoções e ódios com que é embrulhada.

O estado a que a nossa dívida pública chegou, nos últimos anos, não autoriza nenhuma vestal a ficar escandalizada se se afirmar que uma parte dessa dívida não tem condições objectivas para poder ser paga. A “reciclagem” que tem vindo a ser feita, nos altos e baixos do mercado, conduziu a que a taxa média dos nossos empréstimos se situe hoje não longe dos 4%.

Nestas condições, é por demais evidente que a cumulação de um processo de substancial amortização da nossa dívida com o respectivo serviço, em taxas próximas das actuais, é implausível, dado o crescimento e a inflação expectáveis. A menos que um perdão parcial venha a ser admitido, associado a uma renegociação de taxas e maturidades, Portugal ficará esmagado por um peso financeiro incomportável. E os primeiros a não beneficiarem dessa situação seriam os nossos credores externos, que não tirariam vantagens de uma economia asfixiada. Eles sabem isso bem. É, contudo, desejável que o assunto só surja à discussão num quadro europeu bastante mais sereno e estável. Mas deixemo-nos de ilusões: cedo ou tarde ele emergirá, dependendo o “timing” do modo como os mercados vierem a ler o grau de abertura do BCE para apoiar as economias europeias sujeitas a uma maior pressão.

É a Europa, com as flutuações dos seus humores financeiros, que todas as manhãs dita o destino dos nossos “spreads”. Por isso, constitui uma perfeita mistificação, que só frutifica numa opinião pública tão intoxicada como a portuguesa, a ideia que está a ser preparada de que resultará de uma nossa livre opção a escolha entre um programa cautelar ou uma saída “à irlandesa”. É evidente que será apenas o modo como o mercado vier entretanto a comportar-se face às nossas necessidades de dívida (ou ao tratamento da mesma no mercado secundário) que ditará a solução a adoptar (como, aliás, aconteceu já no caso irlandês). Estar a criar a ilusão de que a alternativa releva da sabedoria de uma oportuna decisão nacional pode legitimar que se pergunte então a razão pela qual o “regresso aos mercados” não teve lugar na tão propalada data de 23 de Setembro de 2013. Não nos praxem, por favor! 

 Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

3 comentários:

jj.amarante disse...

Também me admirei com o uso milenar do argumento "ad hominem", uma falácia conhecida como tal há tanto tempo: http://imagenscomtexto.blogspot.pt/2014/02/argumentum-ad-hominem.html.

Mas pelo título do seu artigo podemos concluir que os portugueses estão agora, (quase) todos eles, a ser praxados, mostrando-lhes quem manda na UE?

Defreitas disse...

O que me admira é a "maestria" dos feiticeiros da politica e da finança portugueses, que conseguiram até agora manter-se no poder sem grandes demonstrações de força da parte daqueles que, se quisessem unir-se, podiam pôr um travão brutal à degenerescência da Nação.

Ah, , o ajustamento das despesas e das receitas ! Como soa bem de tão lógico que parece. Como se o capitalismo fosse isso. Como se não tivesse sido ele que inventou o crédito fácil para "alargar" o mercado. Como se no mundo inteiro o consumo não fosse superior à renda. São os mesmos que agora que a coisa deu para torto, carregam no pedal da austeridade para "sair da crise"! E "tant pis" se a pobreza explode com este "medicamento". Mas o que é certo é que os abastados da finança, eles, saem ainda mais ricos da crise.

E os Portugueses, como sempre, vão acreditar que até vale a pena aceitar a escravatura que lhes prometem, porque o resultado vem já ao dobrar da esquina... Os resultados até aparecem já! Não os vêm na distribuição vergonhosa dos parcos rendimentos da economia, onde a classe média a todos os níveis constata que estes tomam o caminho do capital e das oligarquias, na baixa da demografia e no êxodo maciço para o estrangeiro dos filhos da Nação?

A Europa actual , organizada como ela é, com um sistema económico falido, uma moeda mortal para as economias mais fracas, não tem nada a oferecer senão o empobrecimento das populações.

Os lacaios bem remunerados que oficiam em Bruxelas e Frankfurt podem dizer o contrário, o que é lógico, mas são os coveiros dum sonho que se transformou num pesadelo.

Anónimo disse...

A divida do Estado como sabe é diferente da dívida dos particulares.

o Estado, os governos foram gastando o que tinham afectado vindo das contribuições para pagar as despesas com o próprio Estado e os empréstimos faroónicos em "obras" não reprodutivas não necessárias com "luxos" excessivos (parque escolar, SCUTS, etc,etc. uma festa.

Aliás ,desde 25 de Abril de 75 O País viveu sempre acima das suas possibilidades,embalados ou pelo paraíso latino-comunista ou pelos "amigos" sociais democratas.

Enquanto as torneiras correram ("amigos" e depois UE), estava tudo OK.
Como NUNCA existiram almoços grátis, podem "andar á volta com a canga da nora", porque a "água" do poço custa a subir, só se o "poço" for alimentado pelo "suor" do trabalho honesto dos portugueses (sem padrinhos & compadres).

Se não fosse tão triste,é assistir ao que se está a passar nas "colmeias" dos partido, para mais um lambuzar do mel europeu.

Já não falando na corrida para ser Abelha Raínha!

Autêntico bananal!!!

Alexandre







Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...