Na cave do Palácio de S. Clemente, residência do Cônsul-Geral português no Rio de Janeiro, jaziam (ainda jazerão?) algumas centenas de volumes e muita outra papelada, muitas vezes em exemplares repetidos, de divulgação e propaganda turística e política do regime derrubado em 25 de abril. No meio de tudo aquilo, que sempre fez o meu encanto de "rato de biblioteca", encontrei um dia alguns exemplares de uma fotografia oficial do antigo presidente, Américo Tomaz. Levei uma dessas fotos comigo, para Brasília.
Um dia, foi lá jantar a casa um amigo brasileiro, homem muito conservador, conhecido pela sua profunda devoção ao defunto "Estado Novo" e que sempre falava do 25 de abril como "essa funesta data". Resolvi, assim. pregar-lhe uma "partida".
Na base da fotografia do "venerando chefe do Estado" (como reverentemente era tratado pela comunicação social da época) inscrevi a seguinte dedicatória manuscrita: "Ao meu bom amigo Francisco Seixas da Costa, com grande estima e muita amizade do Américo Tomaz". Coloquei a foto numa moldura, sobre uma outra foto dedicada que tinha lá por casa - as residências de alguns diplomatas costumam ser vastos "museus" desse tipo de objetos, prática a que sou muito avesso - e deixei-a num lugar bem à vista.
Na base da fotografia do "venerando chefe do Estado" (como reverentemente era tratado pela comunicação social da época) inscrevi a seguinte dedicatória manuscrita: "Ao meu bom amigo Francisco Seixas da Costa, com grande estima e muita amizade do Américo Tomaz". Coloquei a foto numa moldura, sobre uma outra foto dedicada que tinha lá por casa - as residências de alguns diplomatas costumam ser vastos "museus" desse tipo de objetos, prática a que sou muito avesso - e deixei-a num lugar bem à vista.
No termo do jantar, o meu amigo passeou-se pelo escritório e, num instante, vi-o debruçado sobre a moldura, que estava displicentemente pousada numa estante. Ficou silencioso. Ele sabia das minhas ideias políticas, embora também não desconhecesse que tenho amizades em setores ideológicos muito distintos e até fortemente contrastantes. Mas imagino que, para ele, o facto de eu ter tido Américo Tomaz entre os meus amigos talvez fosse um tanto demais... Com os diabos! Se eu até "estivera implicado" no 25 de abril, como ele dizia!
Não tendo excessiva confiança comigo, esse amigo manteve-se calado sobre o assunto, durante uma boa meia-hora. A certo passo, "roído" de visível curiosidade, perguntou-me, como que por acaso: "Você conhecia bem o presidente Tomaz?" Dei uma resposta vaga, do género: "Relativamente... Fomos apresentados um dia". Passaram uns instantes, não resistiu: "Olhe! É interessante que, mesmo não o conhecendo bem, ele tenha escrito uma dedicatória como aquela", apontando para a moldura. "Foi, de facto, uma atitude simpática da parte dele". E mudei de conversa.
O meu interlocutor continuava cada vez mais perplexo. E, uns minutos depois, não desarmou: "Em que data é que o presidente Tomaz lhe dedicou a fotografia?". Não me contive: "Foi no dia 25 de abril. Foi para comemorar..." Só aí ele começou a perceber a patranha.
Lembrei-me desta história hoje, dia em que começo a sentir fortes saudades de Américo Tomaz. Não do presidente que abril derrubou e fez embarcar para o Brasil, mas do meu excelente motorista, também Américo Tomaz de seu nome, que desde hoje deixei de ter ao meu serviço, por eu próprio ter deixado de ser diretor executivo do Centro Norte-Sul. Desse sim, já tenho saudades.
13 comentários:
E não haverá hipótese de o levar consigo para a "privada"? Ganha-se tão mal no Estado. Ele aceitaria certamente de bom grado, até porque o sentimento que tem por ele é correspondido, tanto quanto sei.
E tudo o vento levou ....
Mas não posso deixar de pensar que , ao ver o estado em que nos encontramos, as revoluções têm por resultado a médio prazo uma simples deslocação de servidão. A grande diferença é a liberdade... e a esperança, único bem daqueles que têm cada vez menos de tudo.
Defreitas! Parabéns! ;)
Mais do que arquivo morto de publicações do "antigamente", as caves de São Clemente serviam de depósito da Livraria Camões, já que era exíguo o espaço daquela tão simpática loja da Avenida Rio Branco, dirigida com paixão pelo José Manuel Estrela e extinta sem dó nem piedade por critérios economicistas que não sabem olhar senão para cifras, indiferentes aos interesses culturais e de afirmação de um País além-fronteiras.
O Américo Tomaz, o que foi derrubado em 25 de Abril, tinha uma vantagem sobre os "poderosos" de agora. Embora não tenha saudades dele reconheço-lhe, muito francamente, a sua frontalidade e falta de demagogia. Nunca lhe ouvi dizer que era um democrata. Assumia o que era. Um seguidor daquela politica férrea de Salazar sem complexos.
José Barros
Oh Senhor Embaixador,
No dia de hoje estava à espera de ler um post de indignação na passagem do 106º aniversário do bárbaro assassinio do Chefe de Estado e do seu Filho.
Afinal havia outro... ah ah ah ah .
Vivo e feliz !
Espero que se sinta com garra para ainda se aventurar com novos projetos.
Enfim !... Vai poder assistir a todos os jogos de futebol da seleção nacional portuguesa em direto "com toda a tranquilidade". Há valente !...
C.Falcao
O Senhor Embaixador não respondeu à lamentação inserida num comentário dum adepto da monarquia, que acha que a data do regicídio devia ter sido assinalada por um "post" efeméride. Eu teria antes celebrado o 31 de Janeiro no Porto!
Mas melhor ainda, talvez o 30 de Janeiro de 1574: Morte de Damião de Góis, uma das figuras mais proeminentes do Humanismo português, vítima da monarquia e da Inquisição.
Incumbido, em 1558, de escrever a Crónica do Felicíssimo Rei D. Manuel, que faltava no conjunto dedicado aos reis de Portugal, as críticas que teceu na sua historiografia erudita e ensaística a questões como a expulsão dos judeus, a matança dos cristãos-novos e a expansão portuguesa e as referências desfavoráveis que fez a tantos protagonistas do drama, que foi o reinado do Príncipe Perfeito, acabaram por ferir susceptibilidades e instaurar-lhe um processo inquisitorial pelo Santo Ofício. Sem a protecção do cardeal-regente, foi preso, no dia 4 de Abril de 1571. Damião de Góis entrou para o cárcere já condenado e os Inquisidores apenas tiveram de se preocupar em encontrar o maior número possível de testemunhas que o denunciassem.
A Inquisição tinha por missão uma tarefa que é uma autêntica impossibilidade: fazer prova da crença das pessoas. Ora, o pensamento é livre por natureza, embora na altura se dissesse que o pensamento não era livre em matéria de religião. Era uma instituição perversa por natureza.
Em 16 de Dezembro de 1572, deu Damião de Góis entrada no Mosteiro da Batalha para cumprir a sua pena – prisão perpétua. É possível que, passado não muito tempo, a pena lhe tenha sido perdoada, porque ele acabou por falecer na sua casa em Alenquer em 30 de Janeiro de 1574, ignorando-se a causa da morte.
Perdão, Margarida !
Ora, ora, Defreitas! - somos como somos e tentarmos moldarmo-nos às ideias alheias pode ser uma violência. Seja feliz. A vida é breve. Saúde! :)
Em tempo: sem esquecer que, com um nadinha de tolerância, talvez aprendamos alguma coisa.
Desconhecia o que escreveu sobre Damião de Góis. Como desconheço tanto sobre tudo, aliás.
Bom domingo e melhor semana (o tempo vai mauzinho...)
Obrigado Margarida. Os mesmo votos para si. Bom domingo também. Eu passei o meu a 2800 m. de altitude, ao sol, nos Alpes, fazendo um pouco de ski para desenferrujar as pernas!
Escreveu sobre a tolerância!
Ao almoço, à mesa, dois vizinhos vindos de Teerão. Da minoria Sunita. Não ousei perguntar-lhes como conseguiam viver num oceano de Xiitas. Falamos de Persépolis ( a cidade dos Persas , como o nome indica), construída por Darius e destruída por Alexandre o Grande! Porque é que o Macedónio foi destruir a bela cidade Persa? Que de mundos destruídos pela intolerância dos homens.
Estamos hoje tão mal servidos, que até nos leva a ter saudades de Américo Thomaz!
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