domingo, fevereiro 02, 2014

Fronteiras

Desde há muito que sinto um imenso fascínio pelas fronteiras. Recordo, como se fosse hoje, a emoção que tive ao atravessar pela primeira vez a fronteira entre Portugal e Espanha, entre Vila Verde da Raia e Feces de Abajo (deixo uma imagem contemporânea do espaço), para ir à festa do Lázaro (nós dizíamos "dos Lázaros") a Verín. Passar para o "outro lado", para o lado do "outro", foi uma experiência que me marcou para sempre.

Ao longo dos anos, atravessei fronteiras muito diversas. Fui interrogado numa fronteira alemã, durante longos minutos que me pareceram horas, no dia em que Ulrike Meinhof foi detida. Senti o incomparável gelo do "checkpoint Charlie" quando Berlim era "a sério". Fiz fila, com compatriotas emigrantes, para tomar forçadamemente um medicamento em Handaye, quando ia "à boleia" de um Portugal onde a cólera era considerado um problema (não obstante ter as vacinas em dia). O meu passaporte foi sujeito a um longo escrutínio quando pretendi entrar em Israel com vários carimbos de anteriores visitas (em trabalho) à Líbia. Anos mais tarde, a coreografia das armas e segurança, na travessia para a faixa de Gaza, deixou-me uma impressão inigualável. Guardo para sempre o ambiente único da fronteira entre a Tanzânia e o Quénia, rodeado de inquisitivos Masai, numa tarde de imenso calor. Passei as "passas do Algarve" para conseguir aceder ao Usebequistão, ido do Quirguistão, com um grupo da OSCE. Nessa mesma qualidade, foi muito curioso ser submetido a um longo interrogatório, quando atravessei a tensa fronteira da Geórgia para a Ossétia do Sul. E fui protagonista de (pequenos, mas memoráveis) incidentes em fronteiras de entrada em países como os Estados Unidos, Gabão, Cambodja ou da antiga União Soviética. Podia escrever por horas, sobre fronteiras atravessadas.

A minha (antiga) profissão não existiria sem fronteiras. Os diplomatas só têm razão de ser porque existem entidades nacionais distintas. As fronteiras são a "encadernação" dos Estados. Sou, por isso, um profissional de fronteiras. Ainda hoje, para não "perder a mão", atravessei a de Barrancos para Ensinasola, agora já sem a "graça" dos pides e dos tricórnios da Guardia Civil.

Por esta ou por outra razão, fiz ontem parte de um painel que, em Moura, discutiu fronteiras, ou melhor, o tema "Moura - das fronteiras locais às fronteiras globais". Foi um grupo de oradores muito diverso, que cobriu vertentes institucionais, culturais, antropológicas, geográficas, económicas e geopolíticas. Foram cerca de duas horas muito interessantes, num exercício pouco comum numa urbe de província, habilmente mobilizada por um município disposto a abalar a rotina dos dias locais. Parabéns, Santiago Macias, e obrigado pelo privilégio que me deu de fazer parte desse belo debate.

14 comentários:

Isabel Seixas disse...

Atravessar a salto também tinha o seu encanto... E descarga de adrenalina...

Anónimo disse...

As fronteiras eram algo de incómodo que também traziam às viagens alguma emoção, às vezes excessiva.
Também me estreei mas idas a Espanha, lá para fins dos anos 40, através de Feces de Abajo, numa curta ida a Verin,enquanto estávamos
"a águas" nas Pedras Salgadas. Mas entrámos e saímos sem problemas e mesmo sem passaporte.
Mais tarde, no regresso a Portugal pelo "Sud Express", em Vilar Formoso, valia-nos a amabilidade do director da Alfândega, Dr. Balcão, conhecido do meu pai, que mandava os seus homens marcar a nossa bagagem com uma cruz em giz, dispensando-a de ser revistada.
Mas não tinhamos infelizmente outro Dr. Balcão em Valença do Minho e aí, numa travessia de automóvel, até um saco de água quente que transportávamos no carro porque a minha mãe necessitava por vezes de o utilizar teve que ser despejado à vista dos guardas, não fosse ele portador clandestino de alguns "anis del mono" ou outra bebida alcoólica espanhola, enquanto as costas do banco de trás do carro era retirada para verem se ali estava escondido mais contrabando.
Curioso é que, na zona das Pedras Salgadas, a fronteira,ou melhor dito, a alfândega, era de algum modo móvel. Várias lojas do lado de fora daquele parque único (como estará ele, Santo Deus?), perto da estação do comboio, vendiam cortes de seda e de outros tecidos de contrabando, perante a aparente indiferença da autoridade policial. Mas não é que acontecia, quando uma família portuguesa regressava de carro das Pedras a caminho de casa, finda a cura de águas, o automóvel ser interceptado na estrada, passados alguns quilómetros, para ser vistoriado e serem apreendidas as compras de procedência injustificada?

Defreitas disse...

A fronteira física pode ser materializada por uma linha e separar dois mundos. Mas nem sempre separa os espíritos. Mas também pode ser o contrário.
A verdadeira fronteira está na nossa capacidade de estar em adesão ou em resistência em relação ao que se produz nas nossas vidas.
O que varia duma pessoa à outra, é a maneira como ela acolhe o real, e as escolhas que faz em função do acolhimento que escolheu de ter, deste real.

Conheço pessoas que antes mesmo de passarem a fronteira física com o passaporte na mão, já decidiram na mente que tipo de sociedade vão encontrar.

Permita Senhor Embaixador que conte também a minha historia. Um dia, em viagem nas Everglades, na Florida, aluguei um barco ou " hydroglisseur", com hélice na retaguarda e fundo plano, adaptado à navegação nestes pântanos, pilotado pelo proprietário, um Índio Seminola. Os Índios Seminolas, das Everglades, como os Índios Navajos, de Monument Valley, têm a exclusividade da exploração turística nestes sítios turísticos..

A visita da aldeia Seminola passou-se num silêncio absoluto. Nem uma só palavra. No fim, de regresso à terra firme dos Estados Unidos (!) , nem mesmo um "Thank You"! Como o preço esteva indicado no local do embarque, paguei , e mais nada.

Soube depois, que a tribo Seminola , a única na federação, nunca se rendeu, quando foi assediada, escondendo-se nos pântanos, infestados de aligatores, e está ainda "oficialmente" em guerra contra o governo dos Estados Unidos, desde os tempos da colonização. Por isso, nunca falam aos "estrangeiros" brancos, assimilados aos "Yankees"!

A fronteira do espírito é mais forte que a fronteira física.

Anónimo disse...

Há tempos, pelo acaso dos encontros, falei com um amigo precisamente sobre a sua primeira experiencia da travessia da fronteira espanhola. Foi para os lados de Melgaço, a tal travessia com passaporte de Coelho que muitos emigrantes experimentaram nos anos 60. Este meu amigo nem marcos fronteiriços encontrou, disse-me, mas recorda perfeitamente o "Zunir" de balas que não eram de borracha e que tentavam atingi-lo quando já galgava a Floresta do lado de Espanha...
José Barros

Defreitas disse...

Complemento:


Em Moura, o Senhor Embaixador deve ter pensado no termo "fazer fronteira" , que tinha há uns séculos atrás uma significação unicamente militar : "fazer frente" ao inimigo, linha de batalha defensiva.

Pena foi que o termo fronteira tivesse sido interpretado pelos espanhóis strictu senso, isto é como zona de movimento, em vez de "boundary" . E como este termo ou o equivalente não existe em Português, lá perdemos Olivença ! Com os Ingleses nao se teria passado assim !

patricio branco disse...

das fronteiras globais até às locais, pois aí cabe tudo, o ponto geografico onde se coloca o marco, hoje com transmissor de gps, a estrada que atravessa dum lado para o outro, ou ponte, a propósiyo, nunca percebi porque se chama saramago a ponte na fronteira do caia, não quero dizer se está adequado ou não o nome com que a registaram, mas porquê esse, mas continuando, que e uma dronteira global? interessante esse coloquio e lá se disse certamente o que é a global, que pode ser muitas outras coisas,já não terá que ver com a linha que separa dois paises delimitando cada um, mas com outros conceitos, quais as fronteiras globais de portugal?
hoje atravessar uma fronteira na nossa europa perdeu toda a magia, encanto, é coisa que não provoca respeito, nem se sente, fora da ue ainda se pode esperar uns minutos, parar o carro, pedir para carimbarem o passaporte, as unicas fronteiras não controladas há 30 ou 40 anos neste continente eram as de s. marino, monaco, santa sé, lichstenstein, uma vez dormi dentro do carro numa fronteira espanha-portugal, cheguri depois do fecho, deviam ser uns minutos depois da 1/2 noite e fechara, na espanhola ainda passei, foi esperar até às 6ou 7, mas era verão, não havia nada a fazer, era mesmo esperar, não havia favores ali.
o euro é outra zona sem fronteiras entre vários países, ao principio achava pratico, de facto é, mas sinto algo de artificial nisso agora, sinto uma certa admiração pelos britanicos ou suissos com as suas notas próprias, são simbolos, no € numa das faces das moedas ainda é permitido um motivo nacional, mas nas notas já não, tambem devia ser, o aqueduto das aguas livres ou a torre de belem numa das faces, ou a cabeça de camões, etc.
pois que exista sempre algo de fronteiriço, é o meu desejo, não é por aí que as coisas vão pior, nem vão melhor com a supressão completa, etc etc

Guilherme Sanches disse...

Por uma daquelas razões que a razão desconhece, amanheci a trautear uma cançoneta dos nossos 15 anos, da qual há décadas não me lembrava, e que era assim:

O circo desceu à cidade
Numa tarde de imenso calor
Trazia focas e ursos
E até um grande domador
Mas - a - principal atração
Era o rapaz do trapézio voador
Que num salto de grande emoção
Se estatela com todo o fragor.

E curiosamente deparo aqui de novo, entre a Tanzânia e o Quénia, com uma tarde de imenso calor.

Ironicamente, numa manhã fria e chuvosa, em que o DN traz à primeira página a notícia da doação dos teus livros à Biblioteca de Vila Real.
É bom ter amigos assim.
Um abraço

Anónimo disse...

Sr. Embaixador, conte-nos as suas histórias mais engraçadas de passagens de fronteiras.

Anónimo disse...

Tenho uma memória de infância que - às tantas -, é falsa: pagar-se uma taxa para sair do país.

Alguém partilha esta recordação?

Anónimo disse...

"sem a "graça" dos pides e dos tricórnios da Guardia Civil. "

"Pides" como STASI etc, etc, sempre o mesmo do mesmo !!!!!!

Alexandre

Anónimo disse...

As fronteiras hoje em dia na Europa são mais intelectuais do que terrestres. A mim parece-me bem.

Anónimo disse...

Freitas is alive!...

Portugalredecouvertes disse...

Também tenho uma história verdadeira de passagem da fronteira entre Espanha e Portugal, ali pelas Beiras, uma fronteira muito pequenina porque estávamos meio perdidos sem conseguir encontrar a estrada para Badajoz, seria perto da meia noite. Os guardas ainda nos levantaram a barreira e disseram-nos que tínhamos de carimbar os passaportes umas metros mais à frente. O meu pai continuou sem conseguir ver alguma coisa que se parecesse com uma alfândega,
Mas mais à frente, diante dos faróis do carro surgiu uma comitiva de guardas de espingardas ou metralhadoras a apontar para nós e com lâmpadas seriam de petróleo? a fazer grandes sinais para nos mandar parar! Foi difícil explicar que não tínhamos visto a alfândega, claro que voltamos para trás e fomos informados que a área tinha sido cercada porque um carro de matricula estrangeira tinha entrado em Portugal a grande velocidade?! sem carimbar passaportes!

Anónimo disse...

As fronteiras continuam infelizmente, cada vez mais, na Europa a serem terrestres com a forte resistência do Reino Unido à criação de um verdadeiro Mercado único e com a sua não adesão a Schengen. Por cá, por Portugal, tudo como dantes, quartel-general em Abrantes com a funesta experiência dos vistos gold que damos tratamento privilegiado aos ricos e obrigamos os comuns dos mortais a delongas e pesadas rotinas administrativas no Serviço de Estrangeiros. A nossa oposição está sempre a dormir e é provável que venha primeiro a terreiro o Parlamento Europeu esclarecer que história sórdida é esta dos vistos dourados que nos coloca apenas na companhia de países duvidosos em matéria de vistos como a Letónia e Malta. Razão tem Henrique Monteiro para sugerir que os cidadãos da CPLP se não tiverem a vida facilitada em matéria de vistos no interior do espaço lusófono estaremos mal, como temos estado até aqui.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...