quinta-feira, janeiro 23, 2014

Luis Gaspar da Silva

Foto de Alexandre Almeida
 
Foi uma tarde de verão de 1975, no gabinete do Nuno Brederode Santos, então diretor do gabinete de Estudos do MNE. Eu ainda não entrara na carreira, mas estava admitido, depois do concurso feito. Andava já pelos corredores da casa, pela mão de António Franco. Estávamos uns quantos à conversa. Entrou na sala Luís Gaspar da Silva, diplomata, socialista, grande, com um imenso vozeirão.

(O 4° governo provisório, que o PS e o PPD tinham abandonado, estava no seu estertor. Vasco Gonçalves fazia convites para o 5° governo, falhada que fora a hipótese do chamado "governo Fabião", uma construção melo-antunista que nunca chegaria a ver a luz do dia, por oposição da "esquerda militar" (leia-se, os oficiais próximos do PCP). Os socialistas estavam furiosos com o "companheiro Vasco", que, não sem alguma razão, consideravam um dos principais culpados da radicalização que o país atravessava. Os militares que eram considerados como próximos dos socialistas, o "grupo dos nove", tinham acabado de tornar público um "documento" que consagrava uma importante rutura dentro do Movimento das Forças Armadas. Os dias iam complicados, nesse "Verão quente".)

Gaspar olhou os circunstantes e, não me conhecendo, disse alto, apontando-me: "este tipo é de confiança?" Os sorrisos ou alguma palavra do Nuno Brederode ou do António Franco tê-lo-ão sossegado. (Na realidade, eu não era totalmente "de confiança". Não sendo um "gonçalvista", também não me revia então na linha dos "nove", mas os meus amigos sabiam-me discreto). Contou que um outro diplomata, então diretor-geral, Magalhães Cruz, tido como simpatizante de esquerda, havia recusado o posto de MNE. Julgo que era essa a aposta dos socialistas: nenhum diplomata aceitar ser ministro nas Necessidades, num governo Vasco Gonçalves. Isso iria acontecer. O lugar acabou por ser ocupado por Mário Ruivo. E, curiosamente, eu iria ser indicado para o seu gabinete, só não tendo tomado posse porque, breves semanas depois, o 5º governo "caiu".

Foi esse o dia em que conheci Luís Gaspar da Silva, que me disseram que morreu hoje.

Nunca fui seu íntimo, mas mantinha com Gaspar - era assim que a casa o conhecia - uma relação muito cordial, com ele a insistir que nos tratássemos por tu e eu sempre a recusar deixar de chamar-lhe "senhor embaixador". Fomo-nos encontrando pelas várias cidades onde a sua carreira diplomática e política (foi secretário de Estado da Cooperação num governo socialista) o levou.

Dele já contei duas histórias neste blogue. Que hoje deixam de ser anónimas.

A primeira é a da sua fantástica apresentação de credenciais como embaixador no Nepal, por ele próprio relatada numa divertida noite, em minha casa, em Luanda. Pode ser lida aqui.

A segunda historieta é também um "must" das Necessidades. Nela contei o resultado de um dos famosos amplexos que Gaspar dava aos amigos, em gestos de afetividade física que ficaram na memória da casa.

Conta-se um outro episódio no dia do funeral de Agostinho Neto, em 1979, em Luanda. Gaspar acompanhava Ramalho Eanes. Esperava-os Lúcio Lara, o nº 2 formal do regime. Gaspar e Lara tinham convivido, nos tempos da universidade, em Coimbra. Forte da sua velha relação, Gaspar abriu os amplos braços para dar um abraço "dos seus" ao antigo amigo. Porém, por esses dias, as relações luso-angolanas não estavam (uma vez mais...) no melhor momento. Aceitar o gesto de Gaspar seria, para Lara, ser visto numa coreografia afetiva que poderia dar lugar a especulações. Disse-me quem viu que a cena foi de antologia. O nosso diplomata, com a sua imensa corpulência, tentou forçar um amplexo. O franzino Lara resistiu quanto pôde, mantendo  o seu antigo colega da "Via Latina", a revista coimbrã onde ambos haviam rimado líricas, à conveniente distância, não apenas física mas também política.

Gaspar da Silva convidou-me um dia para ser seu nº 2 em Paris, lugar que, por razões que não vêm para o caso, não pude aceitar. E seria aqui em Paris, onde casualmente estou hoje e ele foi embaixador durante vários anos, precisamente na mesma sala onde agora escrevo esta memória, ao correr da tecla, que dele guardo a última imagem, em abril de 1988, na noite de uma eleição presidencial francesa. Estava toda a gente à volta da televisão. Vicente Jorge Silva estava na sala, de visita. Homem de certezas, Gaspar adiantava-nos percentagens "seguras", de fonte "limpa", credibilizando-as com a frase: "deu-mas o meu 'américas' ", aparentemente um contacto fiel que tinha na embaixada americana em Paris. Não faço ideia se acertou.

Por coincidência, e ao que me recordo, poderá ter sido essa a última vez que o vi. Há mais de um quarto de século. Trocámos cartas anos mais tarde, mas nunca mais nos encontrámos. Deixo aqui os meus sinceros sentimentos à sua família.

11 comentários:

Anónimo disse...

O Embaixador Gaspar da Silva convidou-me para almoçar quando entrei para a carreira, gesto que não esqueço. Costumava todos os anos trocar um cartão de votos de Bom Natal, o que não sucedeu no ano passado. Boa pessoa que nos vai fazer falta com o seu imenso carisma.

Anónimo disse...

"Panteôes", cada um escolhe o que quer, lido por aí:

Mulher no leito, a morrer:

Só peço que realizes a
minha última vontade...

Marido:Tudo o que quizeres, minha querida !

Mulher: Quero ser enterrada no Panteâo.

Marido: Mas o Panteâo é só para pessoas ilustres...

Mulher, furiosa!!!?:

E então? Fui rainha do Baile de Finalistas dois anoa seguidos !

Alexandre

Anónimo disse...

Conheci o “velho” Gaspar da Silva e tenho excelentes recordações dele. Profissionais e pessoais. Constou-me que estava a passar mal, ultimamente, de uma daquelas doenças incuráveis.
Tenho pena, sinceramente, que tenha partido. Deixou, para uma certa geração de diplomatas uma boa e amiga recordação. Foi um excelente profissional, mas, acima de tudo, um Bom ser humano. Um coração grande!
Deixou “raízes” na Carreira, na pessoa de seu filho, Luís Gaspar da Silva – uma simpatia de rapaz, um profissional competentíssimo, recentemente regressado das N.U, a quem auguro um bom e muito merecido futuro no MNE.
a)Rilvas

Mônica disse...

Francisco.
Voce viu que também fiquei com saudades de voce?
Mas já passou!
Ter amigos é a melhor coisa que existe!
E dizer adeus é muito dificil!
com carinho de sempre Monica

João de Deus disse...

Teria certamente gostado, Senhor Embaixador, de o ter como seu "chefe". Duplamente honrado fui no que respeita ao Embaixador Gaspar da Silva. Foi quem assinou a minha certidão de nascimento no CG em Paris, em 1976 e, vinte anos volvidos, meu professor no ISCSP. Os dois factos conjugados valeram-me, aliás, diante de toda a turma, um desses célebres "amplexos" (na forma derivada de um valente mas amigo "chapadão" entre pescoço e nuca) quando ele descobriu. Mais do que a matéria dada, ficou o exemplo de grande humanismo. A proximidade com os alunos granjeou-lhe carinho de todos, e todos ficámos aterrados no dia em que tanto tempo perdeu em repetidas desculpas por não poder dar-nos aquela aula porque, naquele mesmo instante... a sua casa ardia. Uma força de carácter tão "vigorosa" quanto os seus abraços. Faz muita falta a Portugal, como exemplo à "casa" mas, acima de tudo, claro, à família a quem me permito fazer uso do seu blog para também enviar sentidas condolências.

Anónimo disse...

Conheci o Senhor Embaixador Luís desde pequeno. Ainda não tinha 18 anos visitei-o em Paris e, anos mais tarde, em Roma. Como amigo, sinto falta da sua presença, sabedoria e convívio. Ainda pequeno, algumas noites passei a ouvi-lo falar sobre os mais diversos temas politicos. Sempre defendeu o interesse de Portugal lá fora, com enorme valentia. Perdi um grande amigo e Portugal um grande Homem...
Mário João

Manuel Leonardo disse...

Conheci Vasco Gonçalves pessoalmente por intermédio do tal promovido a Almirante que não quis aceitar essa promoção oficial , de seu nome Comandante Silvano Ribeiro no Verão quente de 1975.
Estava de ferias já havia algum tempo em Portugal mas não assisti a' Revolução e se me permitem vou lançar uma opinião polémica para alguns
Nunca considerei comunistas o Sr. Comandante Silvano Ribeiro ou Vasco Gonçalves .
Silvano Ribeiro que foi o Oficial da Marinha que mais me cativou pela sua Honestidade e fidelidade às causas Nobres desde a Greve dos Pescadores de Peniche , nos finais dos anos de 50 princípios de 60 ate ao fim da sua Vida.
Vasco Gonçalves nos poucos anos que o conheci mostrou-me que na minha opinião nunca foi um comunista mas sim um Homem que queria o melhor para os portugueses e Portugal .
Regressado a Vancouver pouco tempo depois enviei-lhe um telegrama via Marconi que tinha um escritório no Centro da Cidade junto ao celebre Relógio a Vapor que apita e deita vapor, um dos pontos principais turísticos da Cidade , para a Assembleia da Republica no qual ia uma pequena mensagem :


A Sua Excia
Vasco Gonçalves
Primeiro Ministro de Portugal
Assembleia da Republica Portuguesa
Lisboa
Portugal Excia para Bem dos Portugueses e de Portugal

Demita-se por favor

Assinatura
Manuel Joaquim Leonardo
Peniche Vancouver Canada



Por casualidade algumas semanas depois Sua Excia demitiu-se.


P.S.


O meu medo era que a sua permanência por mais tempo como Primeiro Ministro pudesse culminar com uma verdadeira Revolução para mal de Portugal .


Alguém Vivo, se Lembra ?
Alguém tomou conhecimento ?
Muitos me deram a saber que a mensagem chegou às suas mãos , poucos a comentaram .

O meu testemunho nas Historias da minha já' longa Vida .

Manuel Joaquim Leonardo
Peniche Vancouver Canada 23 de Janeiro de 2014 fielamigodepeniche.blogspot.com

patricio branco disse...

uma bela homenagem esta, sem duvida...

Pedro Cordeiro disse...

Lindíssimo texto, senhor Embaixador Seixas da Costa, que me permiti linkar no obituário que escrevi para o Expresso sobre Luís Gaspar da Silva. Parabéns e obrigado.
O Luís era amigo, como irmão, do meu Avô (eram de idades próximas e andaram juntos na política), pelo que tive o prazer da sua amizade desde que nasci. Das festas de família a um jantar muito especial em Paris, era eu miúdo, até inúmeros almoços a dois na Assembleia da República, na FIL velha ou no Candizé ao lado de casa dele, foi um Homem que me marcou muito. Vi-o pela última vez há mês e picos e tinha combinado ir vê-lo ontem ao hospital. É sempre assim.
Escrevo acabado de chegar da missa de corpo presente, com a emoção à flor da pele. À tristeza sobrepõe-se, porém, uma enorme gratidão por ter podido ser seu amigo, reforçada quando leio testemunhos como o seu, senhor Embaixador, e o dos que aqui têm comentado.

Bem haja e, como dizia o Luís, até sempre.

Pedro Catanho de Menezes Cordeiro

Anónimo disse...

Umas semanas antes, faleceu igualmente o embaixador Sequeira Serpa (doença prolongada, ao que parece, também). Bom colega.
a) Claustros

Anónimo disse...

Nos meus vinte anos como conselheiro cultural em Brasília e em Madrid, a minha Mulher e eu demos muitas dezenas de jantares (e também de almoços e de recepções) em nossa casa.
Mas não nos lembramos de nenhum mais animado do que o que oferecemos em Brasília ao Embaixador Luís Gaspar da Silva, então Secretário de Estado, acompanhado do futuro Embaixador José Manuel Duarte de Jesus, seu chefe de gabinete.
Por "culpa" de Sua Excelência e da sua conversa franca e envolvente e da sua enorme afabilidade, o jantar prolongou-se pela noite fora, muito para além do que seria previsível, para encanto dos restantes convidados (uns 20 ou 26, conforme tivessem sido 4 ou 5 mesas de 6 pessoas, naquelas chamadas "varandas" das casas do Lago Sul). Foi de facto um grande sucesso, confirmado pelo consumo de 14 garrafas de vinho tinto (além do branco, aperitivos digestivos, etc.,), marca nunca atingida em nossa casa em idênticas refeições! Por isso nunca me esqueci desse "record".
Não obstante os dotes culinários da minha Mulher e a qualidade dos vinhos servidos, fiquei a dever ao Embaixador Gaspar da Silva a maior parte desse "êxito social e diplomático" e o amabilíssimo e cordialíssimo telegrama que, no regresso a Lisboa, enviou em agradecimento do jantar. Senti, nos termos da sua mensagem, o mesmo calor e afectuosidade dos seus inesquecíveis abraços.
Paz à sua alma.
Mário Quartin Graça

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...