Na tarde cinzenta e húmida de sábado, vinha ajoujado com um saco de livros que o meu amigo Luís Alves me tinha “aviado” na “Ler”, no jardim da Parada, uma das últimas livrarias de Lisboa onde a conversa com o livreiro tem substância e verdadeiramente nos ajuda (“Cardoso quê?”, perguntava-me, há semanas, um analfabeto funcional, numa loja onde se vendem livros, o que é bem diferente de uma livraria, a quem eu inquirira se tinha um exemplar do “O hóspede de Job”).
Vi então o letreiro: “Aloma”. Nunca tinha visitado aquela confeitaria de cujos pastéis de nata me tinham dito maravilhas. Entrei e provei um: não era mau, mas também não fiquei deslumbrado por aí além. Depois, como acontece com o “já agora” que os mestres-de-obras nos sugerem, vi um bolo-rei e cometi a minha anual transgressão anti-republicana: mandei embrulhar. “Traí” assim a “Nacional” e a “Versailles”, e, claro, a “Gomes”, lá por Vila Real. De caminho, também levei uma caixa dos tais pastéis, para testar em casa, com companhia e mais calma.
Estava eu imerso nestes ansiosos pecados da gula, olhando para o lado na esperança de não me cruzar com o meu médico, que sempre me alerta para os excessos nos açúcares, quando vi uma cara que me pareceu conhecida.
Não sei se lhes acontece o mesmo, mas, a mim, com a idade, tenho um “time-lag” cada vez maior de hesitação no reconhecimento de certos rostos. Vivo, aliás, crescentemente, no pânico de me dirigir, com estranha familiaridade, a pessoas que, afinal, apenas conheço da televisão ou de imagens publicadas. Já me aconteceu por mais de uma vez. Mas não foi este o caso.
Era o bispo Ximenes Belo. Com a popularidade posterior que Xanana Gusmão e Ramos Horta vieram a ter em Portugal, muitos já não se lembrarão de que aquele religioso timorense foi, durante bastante tempo, a cara de um Timor sofrido, que nos entrava em casa pela televisão, com um sorriso simultaneamente simpático e magoado, com um discurso nem sempre “politicamente correto”, nesses anos em que o pragmatismo da diplomacia da Santa Sé, titulado por um papa que se chamava João Paulo II, que algum mundo viria depois a incensar e, dizem-me, a “santificar”, assumiu atitudes - sei que muita gente não vai gostar de ler isto, porque há verdades que são duras - que oscilaram entre o cinismo, a “realpolitik” e o puro oportunismo amoral. E mais não digo!
Dei um abraço a dom Ximenes Belo. Recordei o tempo, no segundo semestre de 1999 (caramba, já lá vão 20 anos!), em que, durante dois dias, em Genebra, me havia juntado a ele e a Ramos Horta - precisamente as duas figuras que haviam sido distinguidas, em 1996, com o prémio Nobel da Paz.
Eu havia sido obrigado a abandonar uma tarefa que estava a fazer em Nova Iorque, no âmbito de uma Assembleia Geral da ONU, para ir destacado, como membro do governo, ajudar a procurar garantir a condenação da Indonésia na Comissão dos Direitos do Homem (era assim que se dizia, antes de passar a ser “Direitos Humanos”) das Nações Unidas, depois da violência que se desencadeara no território, na sequência do referendo que consagrou a vontade de independência dos timorenses. A Indonésia continuava numa posição muito relutante, pelo que forçar o seu isolamento político, no plano internacional, continuava a ser essencial.
O governo de Jacarta havia mobilizado todos os seus recursos e influências para derrotar a moção que queríamos ver aprovada. O trabalho de sensibilização de várias delegações em Genebra, muito bem conduzido pelo nosso embaixador Mendonça e Moura, seria apoiado por nós os três, nas horas que antecederam a votação, numa ronda intensa de contactos.
Na memória ficou-me a recordação, quase caricata, de ir, com o nosso embaixador, bater à porta da residência do representante diplomático de um país lusófono africano, que necessitava de algum “estímulo” para estar presente, na manhã seguinte, naquele importante sufrágio. Lá apareceu...
O dia do voto foi dramático. A Comissão era presidida pela irlandesa Ann Anderson, que, uma década mais tarde, vim a ter como minha colega como embaixadora em Paris. Outra irlandesa, Mary Robinson, era, à época, Alta-Comissária das Nações Unidas para o setor. Sem fazer a barba nem tomar banho, saí do avião, depois do voo transatlântico, e fui, diretamente do aeroporto, visitá-la imediatamente após a minha chegada à Suíça. Articulei depois com o bispo Belo e com Ramos Horta o teor dos nossos discursos. E tivemos sucesso: a Indonésia sofreu uma esmagadora derrota e saiu condenada dessa votação.
No dia seguinte, Ximenes Belo, Ramos Horta e eu regressámos a Lisboa de “Falcon”. Só me recordo de que a conversa foi, quase toda, sobre futebol português... Depois de um tinto do Douro (seleção minha, por assumido enviezamento regionalista!) e um prato de queijos lusos bem escolhidos pela nossa Força Aérea, cada um de nós dormiu o resto da viagem até chegar a Figo Maduro.
Gostei muito de reencontrar o bispo Ximenes Belo nesta tarde de ontem, em Campo de Ourique. E tudo por causa de um pastel de nata...