quinta-feira, dezembro 05, 2019

Diplomacia com asas


A propósito da vinda a Lisboa do primeiro-ministro de Israel e do chefe da diplomacia americana, surgiu nas últimas horas por aí alguma expectável urticária política, logo explorada mediaticamente.

Se, em seu lugar, fossem o presidente russo ou o líder venezuelano a pisar o solo português, os tenores desta opereta da indignação seriam outros. Nós conhecemo-los bem a todos...

Quando se não têm responsabilidades de Estado - melhor diria, quando se tem a consciência de que ninguém de bom senso lhas atribuiria - deve ser muito fácil ter, da política externa, tal como da política de defesa, uma visão “angelical”.

Na ótica dos arautos dessa retórica irresponsável, os governos do nosso país talvez devessem manter a firme perspetiva de que Portugal só teria relações diplomáticas, bem como as interlocuções políticas regulares que tal implica, com países cujos líderes e regimes cumprissem os “mínimos”, em matéria de Direitos Humanos e de observância de um comportamento internacional exemplar.

Se acaso seguíssemos os conselhos desses paladinos da “diplomacia com asas”, as trocas comerciais de Portugal cairiam a pique, as empresas portuguesas ficariam afastadas de dezenas de mercados, os nossos cidadãos que (como poucos) andam pelo mundo teriam sérias dificuldades de se estabelecerem e trabalharem, o nosso país, nas organizações multilaterais, deixaria de poder contar com votos essenciais à eleição de seus cidadãos para diversos cargos.

Mas o que é que isso interessa, quando o importante é almofadar as consciências?

Quando não se tem sentido de Estado, perde-se facilmente o sentido do ridículo.

quarta-feira, dezembro 04, 2019

Tratado em Lisboa


Numa sessão organizada no Palácio das Necessidades, por ocasião da passagem do 10° aniversário da entrada em vigor do Tratado que gere a União Europeia, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, foi de opinião de que não tem o menor sentido a ideia, que anda por certas esquinas da Europa, de vir a encetar-se um novo processo de revisão dos tratados europeus. Com a ironia que se lhe conhece, deixou claro que não dizia isso apenas pelo facto de não querer mexer no que se chama Tratado de Lisboa, tanto mais que ele é do Porto...

Concordo, em absoluto, com o ministro e espero que essa venha a ser a posição do governo português, nas instâncias onde isso for abordado. O tratado tem insuficiências, algumas das suas soluções suscitam reticências e incertezas, como, a convite do ministro, tive o ensejo de elencar, na intervenção que, nessa sessão, antecedeu a sua. 

Porém, se olharmos as coisas com objetividade, não foi o Tratado de Lisboa o “culpado” pelos males da Europa, ao longo desta década. Pelo contrário, numa análise cuidada, como aquela que Santos Silva fez às crises que o projeto europeu atravessou nesse tempo, o documento assinado em Lisboa em 2007, e que, dois anos depois, entrou em vigor e tem vindo a regular o funcionamento da União, comportou-se de forma sólida e capaz. 

Como o ministro lembrou, nesse entretanto ocorreu uma crise financeira global quase sem precedentes, seguida de uma crise interna das dívidas soberanas, de um trágico surto de refugiados, cumulado com as pressões migratórias que tiveram impactos políticos internos muito fortes, houve o desafio colocado pelo desrespeito pelas regras do Estado de direito por parte de alguns parceiros, a Europa foi capaz de responder unida ao Brexit e, “last but not least”, do outro lado do Atlântico tem estado alguém que transformou a América, de amigo tradicional, num poder com regulares atitudes adversas. Nesse cenário, a que poderíamos somar a gestão difícil das relações com a “nova” Rússia, da crise da Geórgia à da Ucrânia, não foi o Tratado de Lisboa que “atrapalhou” a funcionalidade da máquina europeia. Bem pelo contrário. Sejamos claros: se há coisa que falta à Europa não é um novo tratado, é vontade política.

A Europa é regularmente atravessada por tropismos reformistas. Faz parte da sua ambição de procurar andar para a frente. Resistir à tentação de entrar numa nova polémica institucional, num tempo de tensões pontuais ainda não resolvidas, é uma atitude de meridiana sensatez.

terça-feira, dezembro 03, 2019

Tratado de Lisboa




A minha colega, embaixadora Ana Paula Zacarias, Secretária de Estado dos Assuntos Europeus, introduziu e comentou as intervenções que o Ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, e eu próprio ontem fizemos, numa reflexão sobre o Tratado de Lisboa, na data comemorativa da entrada em vigor daquele documento.

Quem estiver interessado em ler a minha intervenção pode fazê-lo aqui.

segunda-feira, dezembro 02, 2019

O bife da madrugada


Já são quase quatro da manhã. Estive a preparar um texto que vou apresentar amanhã à tarde, num determinado contexto. A esta hora, missão cumprida (e foi comprida), sei lá bem porquê, deu-me vontade de ir comer um bife. (A Greta só chega na 3ª feira, pelo que ainda dá para uma “pegada carnívora”). O Snob já fechou, o Outro Tempo Bar encerra aos domingos e o Café de S. Bento já está a dormir. Lá longe, o Império jaz sob a IURD, a Portugália está apagada.

Nos anos 60, quando estudava e vivia nos Olivais, ficava às vezes com um amigo a estudar até muito tarde. Se as massas davam para isso, a meio da madrugada, saíamos a pé pelos Olivais adiante e íamos cear uma bifalhada das antigas a um restaurante que ficava aberto 24 horas por dia na bomba de gasolina da Rotunda da Encarnação. Alguém se lembra do lugar? Deixo a imagem.

E pronto! Como, pelos vistos, não há condições para um pecado da carne, vou dormir!

domingo, dezembro 01, 2019

Profissional

Hoje, à saída de um restaurante, expressei a minha insatisfação por um aspeto do serviço. Tinha feito a reserva pelo telefone. Uma hora depois, recebi uma chamada com uma justificação. É bom sentir que ainda há profissionalismo na nossa restauração.

Hoje, feriado


Ximenes Belo


Na tarde cinzenta e húmida de sábado, vinha ajoujado com um saco de livros que o meu amigo Luís Alves me tinha “aviado” na “Ler”, no jardim da Parada, uma das últimas livrarias de Lisboa onde a conversa com o livreiro tem substância e verdadeiramente nos ajuda (“Cardoso quê?”, perguntava-me, há semanas, um analfabeto funcional, numa loja onde se vendem livros, o que é bem diferente de uma livraria, a quem eu inquirira se tinha um exemplar do “O hóspede de Job”).

Vi então o letreiro: “Aloma”. Nunca tinha visitado aquela confeitaria de cujos pastéis de nata me tinham dito maravilhas. Entrei e provei um: não era mau, mas também não fiquei deslumbrado por aí além. Depois, como acontece com o “já agora” que os mestres-de-obras nos sugerem, vi um bolo-rei e cometi a minha anual transgressão anti-republicana: mandei embrulhar. “Traí” assim a “Nacional” e a “Versailles”, e, claro, a “Gomes”, lá por Vila Real. De caminho, também levei uma caixa dos tais pastéis, para testar em casa, com companhia e mais calma.

Estava eu imerso nestes ansiosos pecados da gula, olhando para o lado na esperança de não me cruzar com o meu médico, que sempre me alerta para os excessos nos açúcares, quando vi uma cara que me pareceu conhecida. 

Não sei se lhes acontece o mesmo, mas, a mim, com a idade, tenho um “time-lag” cada vez maior de hesitação no reconhecimento de certos rostos. Vivo, aliás, crescentemente, no pânico de me dirigir, com estranha familiaridade, a pessoas que, afinal, apenas conheço da televisão ou de imagens publicadas. Já me aconteceu por mais de uma vez. Mas não foi este o caso. 

Era o bispo Ximenes Belo. Com a popularidade posterior que Xanana Gusmão e Ramos Horta vieram a ter em Portugal, muitos já não se lembrarão de que aquele religioso timorense foi, durante bastante tempo, a cara de um Timor sofrido, que nos entrava em casa pela televisão, com um sorriso simultaneamente simpático e magoado, com um discurso nem sempre “politicamente correto”, nesses anos em que o pragmatismo da diplomacia da Santa Sé, titulado por um papa que se chamava João Paulo II, que algum mundo viria depois a incensar e, dizem-me, a “santificar”, assumiu atitudes - sei que muita gente não vai gostar de ler isto, porque há verdades que são duras - que oscilaram entre o cinismo, a “realpolitik” e o puro oportunismo amoral. E mais não digo! 

Dei um abraço a dom Ximenes Belo. Recordei o tempo, no segundo semestre de 1999 (caramba, já lá vão 20 anos!), em que, durante dois dias, em Genebra, me havia juntado a ele e a Ramos Horta - precisamente as duas figuras que haviam sido distinguidas, em 1996, com o prémio Nobel da Paz.

Eu havia sido obrigado a abandonar uma tarefa que estava a fazer em Nova Iorque, no âmbito de uma Assembleia Geral da ONU, para ir destacado, como membro do governo, ajudar a procurar garantir a condenação da Indonésia na Comissão dos Direitos do Homem (era assim que se dizia, antes de passar a ser “Direitos Humanos”) das Nações Unidas, depois da violência que se desencadeara no território, na sequência do referendo que consagrou a vontade de independência dos timorenses. A Indonésia continuava numa posição muito relutante, pelo que forçar o seu isolamento político, no plano internacional, continuava a ser essencial. 

O governo de Jacarta havia mobilizado todos os seus recursos e influências para derrotar a moção que queríamos ver aprovada. O trabalho de sensibilização de várias delegações em Genebra, muito bem conduzido pelo nosso embaixador Mendonça e Moura, seria apoiado por nós os três, nas horas que antecederam a votação, numa ronda intensa de contactos. 

Na memória ficou-me a recordação, quase caricata, de ir, com o nosso embaixador, bater à porta da residência do representante diplomático de um país lusófono africano, que necessitava de algum “estímulo” para estar presente, na manhã seguinte, naquele importante sufrágio. Lá apareceu...

O dia do voto foi dramático. A Comissão era presidida pela irlandesa Ann Anderson, que, uma década mais tarde, vim a ter como minha colega como embaixadora em Paris. Outra irlandesa, Mary Robinson, era, à época, Alta-Comissária das Nações Unidas para o setor. Sem fazer a barba nem tomar banho, saí do avião, depois do voo transatlântico, e fui, diretamente do aeroporto, visitá-la imediatamente após a minha chegada à Suíça. Articulei depois com o bispo Belo e com Ramos Horta o teor dos nossos discursos. E tivemos sucesso: a Indonésia sofreu uma esmagadora derrota e saiu condenada dessa votação.

No dia seguinte, Ximenes Belo, Ramos Horta e eu regressámos a Lisboa de “Falcon”. Só me recordo de que a conversa foi, quase toda, sobre futebol português... Depois de um tinto do Douro (seleção minha, por assumido enviezamento regionalista!) e um prato de queijos lusos bem escolhidos pela nossa Força Aérea, cada um de nós dormiu o resto da viagem até chegar a Figo Maduro.

Gostei muito de reencontrar o bispo Ximenes Belo nesta tarde de ontem, em Campo de Ourique. E tudo por causa de um pastel de nata...

sábado, novembro 30, 2019

Wilson


A Netflix passou um novo ciclo da serie “The Crown”, de que acabo de ver, há horas, o último episódio. Nele se mostra o momento em que Harold Wison, em 1976, deixa o cargo de primeiro-ministro, pelo facto de ter tido os primeiros sinais da doença de Alzheimer. 

Num outro episódio, foi revelada a paranóia conservadora, em torno da primeira eleição do trabalhista Wilson, pelo facto de sobre ele ter recaído a suspeição de que fosse um espião soviético, rumor a que Isabel II teria sido, por algum tempo, muito sensível. Mais tarde, viria a ficar mais do que confirmado de que tudo não passava de um sórdido boato. Há vária e muito interessante bibliografia sobre isso, que se liga a esse curioso mundo de sombras que foi a espionagem no Reino Unido no pós-guerra.

Harold Wilson foi uma personalidade muito interessante da vida política britânica, com dois mandatos em Downing Street que não deixaram de ter episódios controversos, por coincidirem com tempos muito turbulentos da vida política do Reino Unido. No entanto, e para surpresa de quase toda a gente, Wilson e a rainha acabariam por vir a ter um excelente e inesperado bom relacionamento pessoal.

Quando, nos anos 90, fui colocado na nossa embaixada em Londres, Wilson tinha já desaparecido há muito da vida pública. A sua última imagem pública que conhecia era uma fotografia de Isabel II com os seus antigos primeiros-ministros ainda vivos (que agora verifico ser de 1985), no tempo de Margareth Thatcher, onde, entre outros, ele e um muito frágil Harold McMillan figuram.

Na receção anual que Isabel II nesse tempo oferecia em Buckingham ao corpo diplomático (não faço ideia se essa prática se mantém), depois de uma breve e muito formal conversa da soberana com representantes de cada missão diplomática (cerimónia que, no entanto, demorava um tempo interminável, dada o elevado número de missões), e a anteceder um baile (é verdade, havia um baile!) que se prolongava pela noite, era servido um buffet. 

Estive presente em quatro dessas receções, que nos permitiam “passarinhar” por alguns salões do palácio, satisfazendo a nossa curiosidade sobre aquele espaço e a imensidão de quadros que enchem as paredes.

Num desses anos, enfarpelado com a minha casaca e as poucas condecorações que à época tinha, por altura do buffet, fui levantar o meu prato e aproximei-me da mesa das vitualhas (que recordo nunca terem sido excessivamente apelativas). A certo ponto, na fila para a mesa, senti um prato firmar-se nas minhas costas, como se alguém quisesse apressar-me. Imagino que com cara de poucos amigos, voltei-me e dei de frente com um velho e trôpego cavalheiro, que alguém conduzia pelo braço e que, claramente, se desequilibrara sobre mim. 

Era Harold Wilson! Tremia um pouco das mãos, olhava em frente com ar ausente e, muito estranhamente, ninguém cuidava em recolher a comida por ele. Afastei-me de imediato, deixei-o naturalmente avançar, ficando com a sensação de que estava extremamente débil. Devo dizer que até aos dias de hoje me marcou vivamente aquele meu “encontro” com alguém que fazia parte da grande história britânica e que, à época, eu nem sequer tinha ideia de que ainda fosse vivo. Wilson viria a morrer em 1995, apenas com 81 anos.

sexta-feira, novembro 29, 2019

Três dicas

Quando por aqui coloquei, há semanas, algumas despretensiosas notas sobre restaurantes da minha estimação, recebi algumas sugestões que entendi dever seguir. Tal como o Augusto Gil diz na “Balada da Neve”, fui ver...


Fui ver, por sugestão de Catarina Portas, o novo “Pap’Açorda”, no andar cimeiro do Mercado da Ribeira, em Lisboa. Como não acho desamasiada graça ao “conceito” do Mercado, porque a minha ideia de restaurantes não é bem aquilo (sou um conservador, eu sei!), ainda não tinha visitado o sucessor do “Pap’Açorda” do Bairro Alto. Erro meu! O novo restaurante é um belo espaço, com um serviço muito profissional, uma lista bem construída e uma carta de vinhos acertada. As mesas do corredor são um pouco “solitárias” e frias, mas é a geografia do espaço que a tal obriga. Tive pouca sorte no prato que escolhi, por razões que a pessoa que me serviu considerou atendíveis. Mas tudo o resto estava excelente e, decididamente, vou voltar. Obrigado pela dica, Catarina Portas.


Fiquei intrigado com uma sugestão, na Amadora (!), dada por Pedro Pestana Bastos: o “Colunas”. Mas lá fui. À primeira vista, o espaço não impressiona, longe disso. É aquele modelo um pouco “standard” de restaurante de bairro, com madeiras e mesas incaraterísticas. Depois, olhando a lista e a carta de vinhos, percebe-se logo que estamos num mundo bastante sério de restauração competente, com uma lista de caça soberba. O serviço é de uma atenção cuidada, com a filha dos proprietários a dar-nos uma qualificada “lição” de enologia, com um profissionalismo raro. Não saí nada arrependido dessa incursão nessa Amadora bem “profissional”, embora, outra vez por azar meu, a minha opção de prato não tivesse sido a melhor. Em tudo quanto as outras pessoas pediram, foi magnífico. Vou regressar em breve ao “Colunas”.


Finalmente, há dias um desvio na A6 para ir a Évora experimentar o “Momentos“, que Miguel Bastos Araújo me tinha sugerido. Bela escolha! Uma “ardoise” imaginativa com boas sugestões, de que experimentámos o suficiente para percebermos que há por ali mão de mestre, que acabámos por conhecer pessoalmente, pessoa com experiência internacional que, não apenas é relevante para a mão culinária que tudo dirige, mas que igualmente introduz um cosmopolitismo no ambiente, que é um verdadeiro valor acrescentado para a terceira cidade gastronómica do país. Tirando o facto da temperatura dos pratos principais um pouco estar abaixo do desejável (a noite estava fria, reconheça-se), tudo o resto pareceu à altura da recomendação recebida.

Três belas dicas! Muito obrigado!

quinta-feira, novembro 28, 2019

A fraude dos “melhores”

Não sei a maioria das pessoas já se deu conta de que, na verdade, o surgimento constante, na internet, do nome de países ou de cidades ou de praias ou de muitas outras e variadas coisas, ditas ”as dez melhores” ou algo parecido, elaboradas sem a menor base de suporte científico ou estatístico, não passa de uma imensa fraude, em que a nossa comunicação social venalmente participa, apenas para obter ”clickbaits“, isto é, para suscitar a abertura de links como forma de aumentar artificialmente o número de visitas a esses “sites”, que possam depois ser mostrados aos anunciantes.

quarta-feira, novembro 27, 2019

Confiança na Europa


“Só mais Europa pode salvar as coisas!”. A exclamação que, há horas, ouvi a um amigo, reportava-se ao modo de ultrapassar o imenso magma de dúvidas que hoje se projeta nas sociedades europeias, cujos cidadãos vivem sob diferentes mas cumulativas agendas de medos e de incertezas. 

Nessa perspetiva, que é agravada por um cenário internacional turbulento, em cuja direção a União Europeia dá a imagem de ter hoje pouco a dizer, unicamente uma solução coletiva, inovadora e agregadora, poderá salvar o continente de se converter num “arquipélago” de projetos de egoísmo identitário. 

Ao ouvir o meu amigo, fiquei preocupado comigo mesmo: é que, há uns anos, eu teria reiterado de imediato, e com plena convicção, aquela mesma ideia. Nos dias de correm, embora concordando em que essa seria a solução ideal, começo a interrogar-me sobre se ainda vamos a tempo, através de mais integração, de “segurar as pontas” de um projeto cuja robustez vive sob fortes tensões que, dia após dia, o descredibilizam aos olhos dos cidadãos. 

É que, para muitos, a Europa parece ter deixado de ser a solução de um melhor futuro para passar a ser o bode expiatório de tudo o que corre mal no presente. Por isso, conseguir um consenso mobilizador, no seio de uma diversidade de vontades que chegam a ser contraditórias, é um milagre que não parece fácil de acontecer.

A conversa com aquele amigo passava-se em Varsóvia, onde estou em trabalho por estes dias.

A Polónia, que historicamente olha de viés a Alemanha e não confia de todo na Rússia, investiu no projeto da Europa comunitária toda a esperança para um destino que, além de ajudar ao seu desenvolvimento, apagasse, de vez, os demónios da guerra que tantas vezes a destroçou. Moscovo, já não sendo a capital da União Soviética, continua a ser a sede de muitos receios, que uma liderança errática do outro lado do Atlântico não ajuda a diluir. É que a NATO, para quem vive por estas bandas da Europa, é apenas um heterónimo dos EUA. E, sem eles, nenhuma segurança europeia tem o menor significado ou pode ser levada a sério.

Mais do que a grande maioria do seus parceiros do grande alargamento, a Polónia é hoje, curiosamente, um país onde a confiança na União Europeia se mantém bastante forte na opinião pública. E isto não deixa de ser interessante, em especial se se constatar que o percurso europeu da Polónia não tem sido, nos últimos anos, isento de escolhos. Talvez porque tenham percebido que a Europa ainda continua a ser, apesar de tudo, o outro nome da sua liberdade.

terça-feira, novembro 26, 2019

Oportunidade

Na passada semana, na minha coluna no “Jornal de Notícias”, falei da deputada do Livre e daquilo que pensava ser nefasto numa parte da sua agenda política. Recebi uma (já esperada) revoada de críticas, sendo mesmo acusado de racismo e de anti-feminismo, em várias áreas das redes sociais. Aparentemente, e não obstante eu ter defendido a senhora, aquando do surgimento da bandeira da Guiné-Bissau na noite da sua eleição, o facto de se tratar de uma mulher negra e de esquerda deveria ter-me inibido de criticar as suas posições. E houve mesmo quem se interrogasse sobre a oportunidade daquele meu artigo. Neste último caso, mas só neste, reconheço que tinham plena razão: eu devia ter esperado uma semana mais para ter motivos para escrever sobre ela...

segunda-feira, novembro 25, 2019

Onde?


Na alvorada de hoje, acordei estremunhado, com o toque do despertador. Quis abrir a luz e tateei sem sucesso, durante quase um minuto, na mesa de cabeceira. Por fim, lá consegui encontrar o interruptor. E calar o maldito relógio, que eu tinha prudentemente deixado à distância e que é daqueles que vão subindo de tom à medida que nos vamos atrasando em desligá-lo. É que, numa semana, em quatro atividades completamente diversas, dormi em quatro quartos diferentes de hotel, em outras tantas cidades. E se a “geografia” de todas as camas pode ser parecida, o sítio exato onde se acende e apaga a luz é, em cada um deles, um renovado enigma, que o estado de sonolência ao despertar não ajuda a decifrar.

Há uns anos, em tarefas em nome da pátria, a minha vida era uma romaria constante de hotéis. Cheguei a andar semanas fora de Portugal, a mudar de quarto quase todos os dias. Ficava normalmente em hotéis, muito raras vezes no quarto de hóspedes das nossas embaixadas. O cansaço acumulado, nesse tempo, tornou-se de tal forma endémico que, chegado aos quartos, caía “como uma pedra” na cama, apenas com o despertador a ajudar-me (agora uso sempre dois, para evitar que um desligar distraído de um deles me arruine a agenda) ao início do dia seguinte.

Um dia, vai para mais de vinte anos, despertei num desses lugares, lá consegui acender a luz mas não reconheci minimamente o local onde estava. Sentia-me excecionalmente arrasado e tinha a certeza de ter dormido muito pouco tempo. Olhei em volta: não era um quarto de hotel, era de uma casa. Devia ser de uma embaixada. Mas, por mais que puxasse pela cabeça, não conseguia lembrar-me de rigorosamente mais nada. Tinha a vaga ideia de ter havido um jantar na véspera, com bastante gente, mas que diabo de cidade seria aquela? Concentrei-me, fechei os olhos, a tentar situar-me, mas dei conta do risco que corria: se ficasse na cama mais um minuto que fosse, nesse estado semi-acordado de reflexão, era bem capaz de voltar a adormecer. 

Levantei-me e fui a uma janela. Chovia. Era uma rua comum, podia ser nórdica ou báltica, tinha também aquele cinzento indiferenciado das cidades do centro da Europa. Pensei, armado em esperto: vou ver a minha agenda! Mas logo concluí: de que é que me ia valer a agenda, se eu fazia lá ideia sequer do dia em que estava? Abri então a porta do quarto e olhei o corredor: o embaixador, um colega e velho amigo, passava ao fundo. “Olá, bom dia!”. Pronto! Lá me “encontrei”!

Não, hoje de manhã não aconteceu nada disso, sabia bem que estava em Varsóvia. Só não sabia onde era a luz...

25 de novembro

Compreendo quem saúda, no dia 25 de novembro, a criação de condições de estabilidade político-militar para Portugal vir a ter um regime democrático. 

Não tenho o menor respeito político por quem usa o 25 de novembro para disfarçar a derrota histórica que teve no dia 25 de abril.

25 de Abril, sempre!


domingo, novembro 24, 2019

Flores


Sou do tempo em que a Rua das Flores, no Porto, era um segredo discreto, partilhado por alguns sabedores. Tinha, claro, as ourivesarias, os alfarrábios do “Chaminé da Mota”, uma igreja belíssima mas escondida, a “Heróica”, uma papelaria de um casal idoso onde eu, por décadas, encomendei uns cadernos de bolso de capa preta que a “Moleskine” acabaria por “copiar”, e pouco mais.

Por ali perto, ia-se, ao final de tarde, à “Adega do Olho”, que costumava ter um presunto com que só a “Badalhoca”, que na altura operava apenas em Ramalde, era capaz de rivalizar.

Um dia, no extremo da rua oposto à estação de São Bento, ao Largo de São Domingos deu-lhe para entrar na moda. Três mesas recomendavam-se por lá: o LSD (nome “tirado” de Largo de São Domingos, nada de confusões!) para petiscos, o Traça (que, para meu gosto, já teve dias mais gloriosos) e o DOP, do agora “bi-estrelado” Rui Paula, casa sobre a qual, há dez anos (quando eu assinava “Augusto Maria de Saa” em crónicas gastronómicas na “Sábado”), escrevi um texto que ainda hoje é exatamente o que penso. Ah! E havia a “Araújo e Sobrinho”, imbatível em papéis, pincéis e lápis, hoje convertida em albergue de luxo.

Nos dias de hoje, a rua das Flores está transformada num “must” do Porto, com a turistada a fotografar tudo, com paletes de espanhóis a comerem coisas inenarráveis na parafernália de alegados restaurantes e “portwine” bares que enxameiam a artéria, onde proliferam ainda lojas com “recuerdos” turísticos de discutível qualidade e de indiscutível desinteresse.

Fui hoje “almoçar” (uso as aspas de propósito, porque se aquilo era almoço, vou ali e já venho!) a uma antiga bela ourivesaria, que se serve uma espécie de comida, num espaço lindíssimo. Hoje, fui lá três vezes: a primeira, a única e a última...

Depois, acabei a beber um café e um Jameson num fantástico hotel que o Porto Bay aqui instalou, para honra da qualidade da sua cadeia hoteleira e para benefício desta que é a mais bonita rua do Porto. Deixo aqui a imagem, para lhes abrir o apetite.

Nostalgia operária


Pertenço a uma outra escola de memória: um líder operário, no “bom tempo”, tinha o aspeto que hoje tem Philippe Martinez, secretário-geral da CGT francesa. 

Isto sim, é que é uma cara de agitador sindical como deve ser...

Livre?

Na nova polémica que envolve a deputada do Livre no parlamento apenas tenho uma dúvida (mas que é imensa): então a representante de um partido como o Livre hesita, sequer um instante, sobre qual deverá ser o sentido do seu voto numa questão que é tão óbvia para qualquer partido de esquerda?

Velha e relha

Gosto muito da definição que por aí anda de uma nova (embora velha e relha nas ideias) força política: o Chega dos queques.

O sorriso da política


Há dias, vi por aí surgir a crítica mais patética à nova ministra do Trabalho, Ana Mendes Godinho: é acusada de sorrir! Para um qualquer comentador, o sorriso da governante era natural quando ela se ocupava do radiante turismo, mas é agora inadequado à sóbria gravidade do tema trabalho.

Há um país de sobrolho carregado que teima em confundir um “carão” com seriedade. Ora o sorriso, na cara de uma mulher, torna a política mais bonita.

sábado, novembro 23, 2019

Muito obrigado, Jorge Jesus


O sucesso hoje obtido por Jorge Jesus na Libertadores, a somar ao que inevitavelmente aí virá no Brasileirão, representa uma grande vitória na carreira de um qualificado técnico de futebol português, agora por terras brasileiras. Jorge Jesus garantiu mesmo um lugar na história do futebol daquele país.

Porém, para quem conhece “o Portugal” que existe no Brasil, o “nosso” espaço naquela grande nação, este êxito de um treinador português representa muito mais do que isso. Sei que não preciso de dizer mais nada, deixando aqui apenas um imenso e solidário abraço aos muitos amigos portugueses e luso-descendentes, que entendem como ninguém o que quero significar com este meu muito sincero agradecimento a Jorge Jesus!

Madalena Fischer


As primeiras mulheres admitidas na carreira diplomática portuguesa entraram no Ministério dos Negócios Estrangeiros em agosto de 1975, no mesmo concurso público em que eu próprio ingressei. Tinha sido o ministro dos Negócios Estrangeiros Mário Soares quem, meses antes, havia feito alterar a retrógrada lei da ditadura que determinava que apenas os homens pudessem ser diplomatas.

Dinah Azevedo Neves foi a mais bem classificada mulher de quantos ingressaram naquele concurso, pelo que pode ser considerada a primeira mulher na história da carreira diplomática portuguesa.

Maria do Carmo Allegro Magalhães viria a ser a primeira funcionária diplomática a assumir funções como chefe de uma missão diplomática, com credenciais de embaixadora, na embaixada portuguesa na Namíbia. Depois dela, muitas outras mulheres viriam a dirigir embaixadas e missões multilaterais.

Anos mais tarde, a embaixadora Ana Martinho seria a primeira mulher a desempenhar funções de secretária-geral nas Necessidades, o mais elevado lugar da hierarquia formal do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

Nos dias de hoje, Ana Paula Zacarias é secretária de Estado dos Assuntos Europeus, depois de, há já bastantes anos, a diplomata Manuela Franco ter tido funções similares num outro governo.

Agora, foi anunciado que Madalena Carvalho Fischer, atual embaixadora no Cairo, irá assumir o cargo mais importante na direção político-diplomática das Necessidades, como diretora-geral de Política Externa. Nunca uma mulher tinha, até hoje, ascendido a essas funções.

A história da presença feminina nos quadros diplomáticos portugueses, nas últimas décadas, reflete um percurso de inegável sucesso, com o surgimento de funcionárias altamente qualificadas a ocuparem lugares destacados, quer em Portugal, quer na rede diplomática e consular exterior, muito contribuindo para o prestígio da imagem de Portugal no mundo.

A nomeação de Madalena Fischer, uma qualificada profissional, com um perfil muito consensual na carreira diplomática portuguesa, é assim uma excelente notícia.

Muitos parabéns, Madalena! Os faraós vão sentir saudades suas...

sexta-feira, novembro 22, 2019

A “Piauí” na “Sarita”

Não sabe o que é a “Piauí”? É pena! É, de longe, a melhor revista brasileira da atualidade.

Não sabe o que é a “Sarita”? É pena! É o “lugar” onde, em Portalegre, ali perto do Rossio, se compra a imprensa que interessa. A prova provada é que, há minutos, encontrei por lá, à venda, a “Piauí”. Não comprei, apenas porque sou assinante e generoso: deixei o exemplar para quem quiser adquiri-lo.

quinta-feira, novembro 21, 2019


Estrelas


Não sou muito dado ao cultivo regular dos restaurantes de cozinha contemporânea, como quem faz o favor de me ler já se deve ter dado conta. A minha “praia” mais corrente são outras “freguesias” culinárias.

Mas reconheço, sem o menor esforço, que o refinamento da arte gastronómica atinge, em alguns desses locais de “fine dining”, formas superlativas de qualidade sensorial, superiores requintes de paladar, pela junção criativa de sabores, que correspondem a anos de trabalho e pesquisa, a uma aprendizagem feita com quem apurou a sensibilidade a níveis elevados de cultura culinária. Fico, muitas vezes, deslumbrado com aquilo que me chega ao prato, admirando imenso o trabalho desses artífices do gosto. Conheço muitos, admiro bastantes.

Rejubilo sempre, por essa razão, com a atribuição de mais estrelas Michelin aos chefes portugueses que se dedicam, dia e noite, a um esforço de constante aperfeiçoamento, apurando a oferta, qualificando o serviço de mesa, ajudando a que Portugal se torne num destino de quantos apreciam essa gastronomia requintada, a qual, naturalmente, tem de ser paga a um preço que se liga à qualidade dos produtos escolhidos, ao excecional tempo de confeção, ao conjunto da “produção” essencial para aquilo que apuradamente nos chega à mesa. O país e o seu turismo devem-lhes muito e, mais do que isso, devem agradecer-lhes o que têm feito pela nossa imagem de mesas acolhedoras.

Dito isto, vou-lhes contar um segredo. Às vezes, em alguns desses restaurantes em Portugal, fecho os olhos e pergunto a mim mesmo: se eu não soubesse onde estou, conseguiria perceber, pelo que estou a comer, onde de facto estou?

Irrita-me imenso a “oferta” (oferta é uma ironia, porque se paga uma “conta calada”) de alguns chefes (eu nunca escrevo “chefs”) de cozinha que por aí andam, portugueses ou não, que parece que, mais do que tudo, cuidam em “disfarçar” a geografia onde operam, “fingindo” que abancamos no Noma ou no Ambroisie. 

Ora eu, quando quiser (e se tiver dinheiro e pachorra), vou ao Noma ou ao Ambroisie. Mas o que eu quero, aqui e agora, é sentir que estou a comer, em Portugal, coisas com superior qualidade, com produtos que sei serem nossos, tributários da “memória” culinária portuguesa, tratada esta, embora de forma sofisticada - com espumas, reduções ou outras artes - por quem profundamente respeita a nossa história gastronómica.

É por todo este conjunto cumulativo de razões que ontem, ao ver anunciado que Rui Paula, um chefe cozinheiro com uma imensa genuinidade portuguesa - que conheço desde o Cepa Torta ao DOC, do DOP a Vidago, do Tivoli à Casa de Chá da Boa Nova - obteve, pelo seu dedicado, determinado e competente trabalho neste seu último espaço, a sua segunda estrela Michelin. O meu amigo José Quitério, às vezes, tem de concordar que os pneus nem sempre se enganam.

Um forte abraço, meu caro Rui Paula!

quarta-feira, novembro 20, 2019

O mal de Joacine


Ninguém suspeitaria, há uns meses, que a eleição de Joacine Katar Moreira para o parlamento português pudesse dar origem a uma controvérsia como aquela que entretanto se gerou em seu torno. Acho, aliás, que a questão da gaguez da deputada foi, neste contexto, um mero fator de diversão para algo mais essencial.

Joacine Katar Moreira é negra, feminista e, com frequência, tem deixado claro que pretende vir a utilizar aquela tribuna para abordar, numa perspetiva radical, algumas temáticas menos consensuais, tal como para fazer uma leitura, muito marcada pela sua experiência pessoal, sobre o fenómeno da exclusão rácica em Portugal, com as decorrências que daí advêm para a revisitação do colonialismo português e das suas sequelas contemporâneas. Recordo, a propósito, como o surgimento de uma bandeira da Guiné-Bissau, na noite da sua eleição, logo provocou uma patética histeria nacionalista e xenófoba, atitude contra a qual, aliás, me insurgi publicamente.

Mas, afinal, perguntar-se-á o leitor, a que propósito vem o título deste artigo? Qual é o “mal” de Joacine? Vou ser muito claro: temo que o radicalismo recorrente do discurso da deputada, a sistemática colagem do sensível tema racial a uma postura confrontacional e divisiva, que por muita gente, mesmo aquela que se considera moderada, pode vir a ser lida como estimuladora de um anti-portuguesismo no seio das comunidades imigradas de outras etnias, acabe por ser um adubo fácil para a doença que é o nacionalismo primário, cuja face política ela encontrará do outro lado do hemiciclo onde se senta. 

Ao olhar as redes sociais e alguma imprensa, noto que a postura de Joacine Katar Moreira deu azo à emergência de algum racismo alarve que vivia escondido em certas catacumbas da nossa sociedade, até aqui travado na sua expressão pública por um mínimo de vergonha, o que já era um considerável ganho civilizacional. Vejo, contudo, que alguns iluminados entendem que o “outing” desse primarismo miserável acaba, no fundo, por ser clarificador e separador das águas. A mim, que não me apetece viver num Portugal transformado num “ringue” de tensões sociais e de ódios, de “vendettas” históricas e de ajustes de contas intelectuais com o passado, isso parece-me péssimo. 

Joacine Katar Moreira, hoje deputada com toda a legitimidade, tem, é claro, o direito de pensar de forma diferente. Espero, com sinceridade, que, a prazo, não venha a arrepender-se por poder vir a ser a responsável por ter soltado por aí alguns perigosos demónios.

terça-feira, novembro 19, 2019

José Mário Branco


Não deviam faltar muitos anos para o 25 de abril. No programa “Página Um”, da Rádio Renascença, ouvi um dia José Manuel Nunes apresentar o primeiro trabalho editado por um compositor e cantor português, que não estava presente no estúdio e de quem eu nunca tinha ouvido falar. 

Tratava-se do primeiro disco de José Mário Branco. Foi então referido, com toda a naturalidade, que o autor não podia estar ali em estúdio, pelo facto de viver no estrangeiro. O verdadeiro motivo foi discretamente iludido: ele estava exilado em Paris.

Lembro-me, como se fosse hoje, da interessante peça instrumental “Gare de Austerlitz”, com que o disco abria: era um som ambiente, com ruídos de multidão e de comboios, que depois se iam enchendo progressivamente de música. Austerlitz era o nome da estação onde, em Paris, desembarcavam todos os portugueses que iam em busca de uma nova vida. Ou da liberdade.

Desde esse dia e até hoje, segui com algum cuidado o percurso de José Mário Branco, do trabalho que fez no exílio com Sérgio Godinho até às belas derivas que, como compositor, com Manuela de Freitas como letrista, empreendeu pela área do fado, de que Camané acabaria por ser um grande beneficiário. Pelo meio, nos anos 80, tivemos direito ao chocante “FMI”, um disco que me recordo de ter levado comigo para Angola e de ter ali o ouvido com amigos, em “alto berros”, que era como aquela peça de indignação radical merecia ser escutada.

Ao vivo, creio só ter visto José Mário Branco uma única vez, num espetáculo no CCB, já há muitos anos. Sempre o achei muito melhor compositor do que intérprete, embora ele soubesse tirar bom partido melódico daquela sua voz rouca e grave.

José Mário Branco morreu. Era de uma geração, a que também pertenço, que está agora de saída, embora com legítimo orgulho do legado que deixa.

Recordo-o aqui com uma canção divertida, de ritmo de marcha alegre, ancorada na geografia de Lisboa, que diz bastante mais do que aquilo que parece dizer: “ “Qual é a tua, ó meu?”. 

O clássico chunga “Tira a mão da popeline!”, que surge dito a meio da música, ficou ali consagrado para sempre.

segunda-feira, novembro 18, 2019

Cliente da “segunda série”


Não me passa hoje pela cabeça (já me passou um dia, mas arrependi-me vivamente) almoçar ou jantar no Alfa Pendular, entre Lisboa e Porto ou vice-versa (agora, vou no vice-versa). A qualidade do produto trazido ao lugar não me agrada minimamente, e isto é apenas um piedoso “understatement”.

Nos tempos do velho Foguete, o comboio prateado que fazia este trajeto creio que quase no dobro do tempo, havia uma carruagem restaurante, com mesas próprias com pequenos candeeiros, onde se tomavam as refeições. 

Marcavam-se estas no início da viagem, havendo dois turnos de serviço. Quando as refeições estavam prontas para serem servidas, surgia pelas coxias um empregado que tocava uma pequena sineta, ao mesmo tempo que ia anunciando em voz bem alta: “Primeira série!”. Uma hora e tal mais tarde, lá surgia a “segunda série!”. E, a essas chamadas, os comensais que haviam reservado iam para a carruagem restaurante.

Fui sempre um cliente da “segunda série”, porque esta permitia mantermo-nos à mesa por mais tempo, beber mais do que um café, nesses anos em que ainda tínhamos fígado para fechar a refeição com uma dose de aguardente velha (em balão aquecido, o que era feito, a nosso pedido, à falta de lamparina, com um pano embebido em água quente). Lembro-me também que, escolhendo a tal “segunda série”, só saíamos da mesa já por Vila Franca ou por Espinho, dependendo do sentido do comboio. E que belas conversas tive por aquelas mesas, de que agora não consegui arranjar uma imagem decente para ilustrar este post!

Como a comida vinha em travessas (na antiga tradição portuguesa de serviço à mesa), os empregados da Wagons-Lits serviam individualmente cada cliente. Ora a estabilidade do comboio era então muito periclitante, pelo que eles faziam uma cuidada coreografia para não provocarem “desastres” irrecuperáveis na roupa dos utentes. 

A “segunda série” tinha, aliás, um pormenor “técnico”, nas idas para o Porto. Havia um ponto do percurso para Norte, creio que ali pela Pampilhosa, onde um qualquer intrincado de linhas fazia o comboio abanar mais furiosamente. Víamos então os funcionários pararem o serviço e aguentarem-se no corredor, por uns instantes, com as travessas na mão, num equilíbrio hesitante, até que tudo acalmasse. Era um momento aguardado com sorrisos pelos “connaisseurs”. Sempre admirei aqueles hábeis “jongleurs” da restauração ferroviária, de que agora me lembrei, nestas horas com pouco aqui para fazer, neste Alfa sem alma nem wifi decente.

Tinham mais graça aquelas viagens antigas? Provavelmente não. Nós é que olhávamos com outros olhos aquele “cosmopolitismo” de trazer por casa, a versão lusa do “Expresso do Oriente” a que então tínhamos direito. Ah! E éramos mais novos...

Isto deve ser da idade!

Há cada vez mais coisas sobre as quais tenho dúvidas: sobre a atitude a tomar face à sem-abrigo que tentou matar o filho, sobre a autorização ou não do traje da desportista muçulmana, sobre se, afinal, o aeroporto deve ser ou não no Montijo, sobre se se deve proibir ou não a exploração de lítio, etc, etc.

Quando vejo tanta gente com tantas e tão profundas certezas sobre tudo e sobre todos, dou comigo a pensar: isto deve ser da idade...

Quem sabe, sabe!

Um Governo que (não) governa, uma oposição que não se opõe, e um país que anda ao sabor de conveniências, da resposta a interesses de curto prazo, eleitoralistas, sem a avaliação das consequências”.

Quem escreve isto hoje é o jornal online Eco. Podia ter sido o Observador. Ou outra folha similar.

Houve eleições, apenas há semanas. O país teve toda a liberdade para escolher - e escolheu. Quem ganhou, em total liberdade, teve a ingenuidade de pensar que tinha legitimidade política para governar, sob o escrutínio parlamentar que a Constituição prevê. 

Mas o Eco, cuja representatividade opinativa não sabemos onde nasce (esperando nós que não radique nos interesses económicos que o financiam), descarta, com a arrogância de uma “boutade”, essa decisão livre dos cidadãos, desqualifica de uma penada o sentido da sua escolha, apouca mesmo a ação da oposição da qual não gosta. 

Não sobra nada em Portugal? Sobra, nem tudo está perdido! Sobra a voz sábia e definitiva do Eco!

Os cidadãos votantes, para o Eco, são um bando de palermas, uns inconscientes. O Eco, que passou semanas a promover a Iniciativa Liberal, a quem o descuido do país só conferiu um deputado, é que sabe como melhor se defenderiam os interesses da pátria.

Afinal, tudo é tão simples, em política: para as coisas seguirem no melhor dos mundos, bastaria seguir o que dizem o Eco, o Observador e outras folhas. Afinal, para que é necessário esse gesto vão que é votar?

O sorriso matinal


“Bom dia, senhor Costa, são sete e meia”. Aquela voz feminina, que me despertou pelo telefone, à hora pedida, no Hotel Intercontinental, no Luxemburgo, em março de 1986, ficou-me para sempre na memória.

Naquela que era a minha primeira visita em trabalho por ali, bem no início da nossa aventura europeia, dei-me assim conta da sensação diferente que era estar como português no Luxemburgo.

A senhora, telefonista do hotel, terá pressentido, pelo meu nome, que estava a acordar um compatriota. E era muito confortável sentir aquela expressão de proximidade, no lugar do mundo onde a nossa comunidade é mais significativa, em relação à população total do país.

Desde então, nas muitas viagens que fiz ao Luxemburgo, “tropecei” com portugueses um pouco por todo o lado. Quantas vezes, em restaurantes, ouvi de empregados, depois de um “então o que é que vai ser?”, em voz baixa e cúmplice, “não peça o cerf“ ou “as moules hoje não estão muito boas”. E, pelos corredores do “Le Royal”, que, por anos, passou a ser o meu “albergue” no centro da cidade, era bem simpático trocar os bons-dias com as senhoras da limpeza que, entre si, falavam português pelos corredores.

Ontem à tarde, ao ver a bancada do Luxemburgo-Portugal pejada de bandeiras e cachecóis verdes e vermelhos, fiquei a pensar no prazer que os nossos compatriotas devem ter tido ao verem a nossa seleção ganhar, precisamente ali, o passaporte de acesso ao Europeu de futebol.

É que hoje, ao entrarem nos empregos e olharem os seus colegas de trabalho, tenho a certeza de que os portugueses do Luxemburgo afivelarão um sorriso matinal (e, vá lá!, compreensivelmente um pouco sobranceiro) muito especial...

Leituras



Um amigo mandou-me esta fotografia tirada numa estante do Parlamento Europeu. Que boas leituras eles têm por lá!

domingo, novembro 17, 2019

20 anos do euro


A convite do governador do Banco de Portugal, tive muito gosto, na passada sexta-feira, em ser o moderador de um interessante debate entre Wolfgang Munchäu, do Financial Times, Paul De Grauwe, da London School of Economics, e Carlos Moedas, comissário europeu cessante. Com essa conversa, culminou um dia dedicado a uma conferência comemorativa dos 20 anos do euro, com a presença de vários especialistas portugueses e estrangeiros.

No debate, suscitei a questão do estatuto do euro como instrumento de poder europeu. Foi interessante perceber, em alguns dos meus interlocutores, a ideia de que a moeda única, tendo sido um inegável sucesso, poderá, contudo, ter ficado aquém das mais optimistas expetativas suscitadas aquando do seu lançamento, em especial no tocante à partilha de “mercado” com o dólar, que permanece líder incontestado como moeda de referência.

Interessante foi ouvir, falando da assistência, o antigo presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, ser de opinião que um maior “êxito” do euro poderia ter criado pressões difíceis de comportar, numa eurozona sem poder político suficientemente forte. As atuais debilidades dessa eurozona, por incompletamento da União Bancária, foram referidas por alguns intervenientes, tal como, neste contexto, alguma falta de sintonia entre Paris e Berlim, circunstância que torna difíceis alguns avanços tidos por essenciais para o reforço do euro.

Falou-se bastante da China, da pluralidade de perspetivas dentro da UE sobre o relacionamento com Beijing, dos EUA e das suas dissonâncias com as posições europeias, do pós-Brexit e das dúvidas sobre se a atitude comum europeia na atitude face a Londres tem condições para de se manter, no processo negocial que irá estruturar o futuro relacionamento.

Muito mais foi discutido, nesta hora e meia de debate, que incluiu perguntas da assistência, e que encerrou esta excelente iniciativa do Banco de Portugal.

Alf pendular


Viajei hoje no Alfa Pendular, a caminho do Porto, e vejam com quem me cruzei na carruagem! Parece que entrou no Entroncamento!

II Encontro de Cascais



Foi uma bela jornada aquela que, este fim de semana, tivemos no II Encontro de Cascais, organizado pelo jornal “Expresso” e pela Câmara de Cascais. 

Democracia, sustentabilidade, saúde e educação estiveram este ano em análise, com cada tema a ser introduzido por dois especialistas, a que se seguiu um alargado e animado debate. 

Ao jantar, o “plat de résistance” foi uma intervenção, bem substantiva, feita pelo presidente da República.

sábado, novembro 16, 2019

Gente de direita

Um grupo de algumas dezenas de pessoas, que, politicamente, se assumem de direita, acaba de publicar uma coletânea de textos.

Nesse grupo, que vai de uma direita radical, com velhas simpatias pela ditadura, a pessoas com um perfil reconhecidamente democrático, encontro mesmo alguns amigos pessoais e figuras por quem tenho consideração e estima. Por outros, não.

Não adquiri ainda o livro e não deixarei de o ler, no meu eterno gosto masoquista de me “ilustrar” com aquilo com que sei ir divergir em absoluto.

Com sinceridade, acho que é bastante saudável assistir a este “outing” descomplexado da direita portuguesa, que, pelo menos desta vez, optou por não se esconder atrás do eufemismo tíbio do “centro-direita”.

Pena é, no entanto, que esta direita encadernada não se tenha ainda conseguido libertar do fantasma da esquerda, essa sua eterna e traumática ”bête noire”, que acaba mesmo por figurar, em linguagem acrimoniosamente agressiva, na citação do prefácio que surge na capa do livro. 

Coisa que, estou seguro, nunca aconteceria num livro escrito por pessoas de esquerda, a quem dificilmente passaria pela cabeça falarem da direita na capa de um seu livro. Quem acaso tiver um exemplo contrário, faça favor de o mostrar.

Aqui fica essa citação: “Essa é precisamente a riqueza da direita, onde a liberdade e a ousadia sempre prevaleceram sobre a procura de ortodoxias e a arregimentação sectária que vigoraram à esquerda”.

A direita portuguesa mostra, assim, que ainda não consegue afirmar uma identidade por si própria, necessitando de fazer o contraponto com a esquerda para sublinhar a sua matriz. É pena! Mas não há que perder a esperança: com o tempo, talvez lá chegue... 

Também foi para dar direito de cidade a uma direita democrática, desde que tenha a coragem de exorcizar sem ambiguidades a ditadura que, em Portugal, lhe manchou o nome, que se fez o 25 de abril...

Da água


Ao ouvir hoje, num debate, Catarina Albuquerque, uma especialista portuguesa que se tem destacado mundo multilateral que se ocupa da questão vital da água, falar-nos, com o seu convincente entusiasmo, da tragédia - porque é de uma tragédia que se trata - que envolve a gestão global desse recurso escasso, lembrei-me de um episódio passado comigo há cerca de 15 anos. 

Foi numa travessia do Usebequistão, na Ásia Central, numa carrinha da OSCE. O calor exterior, nessa viagem pelas montanhas, era imenso e nós ali íamos, bem instalados, muito confortáveis, numa espécie de “oásis” em movimento.

Era uma estrada de montanha, sem localidades visíveis, com uns casebres à distância, de quando em quando. Em um ou dois locais do percurso, reparei que havia umas crianças que nos estendiam garrafas de água, que traziam na mão. Por curiosidade, perguntei à funcionária local da organização, que nos acompanhava, se elas estavam a vender água. 

A jovem, funcionária local da OSCE, riu-se: “Não. Eles estão a pedir água a quem passa. São mandadas pelos pais, das casas lá em baixo, para pedirem um pouco de água para beberem, em especial nesta altura de grande calor”.

Fiquei siderado com a revelação. As pessoas que me acompanhavam, quatro embaixadores junto da OSCE em Viena, ficaram incomodados pela firme recusa do motorista e da guia de voltarmos atrás, para darmos aos miúdos algumas garrafas das muitas que, bem geladas, nos abasteciam a carrinha. Isso atrasaria o nosso programa, disseram-nos. Verdade seja que não íamos resolver nada de essencial, apenas apaziguar a nossa consciência. Mas sempre seria melhor do que não fazer nada.

Não existe ainda entre nós uma consciência da importância política do tema da água, que é central nas questões de sustentabilidade com que o mundo se confronta. E que isto é já, nos dias de hoje, um problema já com um potencial de conflito muito sério em certas regiões do mundo.

sexta-feira, novembro 15, 2019

Da gravidade


Cruzei-me ontem com ele, na FNAC do Chiado. Falámos uns instantes. Está bastante mais velho (estamos todos) mas, essencialmente, está muito mais “grave”. Era, no passado, um companheirão, um pacholas, sempre com uma graça na ponta da língua, um sorriso aberto à vida e aos amigos que encontrava. Ontem, quando o vi à distância, quase o não reconheci, pareceu-me outro: sério, “cara de caso”, ar patibular, como se lhe tivesse morrido alguém. Na conversa breve, abriu-se um pouco, mas foi sorriso de pouca dura. Logo depois da despedida, lá o vi, de novo, façanhudo. Parecia “importante”! E foi-se, com o mesmo ar de quem ia “contra o vento”. Será isto natural?

Será a idade que torna as pessoas mais fechadas de cara? Há uns anos, comentei isto com uma amiga, em Vila Real, ambos sentados na esplanada da Gomes, vendo passar pessoas da terra, quase todos com esse fácies cerrado, com uma espécie de “gravitas” adotada como estilo. Ela dizia-me: “Os homens de Vila Real, para “crescerem” no seu estatuto perante os outros, parece que têm necessidade de ter “ar de maus”, para serem levados a sério. Repara que quando eles abrem o guarda-vento para entrarem na Gomes, enfrentando aquela plateia de olhares que sobre eles converge, é um pouco o estatuto que pretendem afirmar que transparece do modo como afivelam o rosto”.

Estivesse por ali o Steinbroken, o diplomata finlandês de “Os Maias”, do Eça, e diria, aplicando a um desses “cromos” de Vila Real o que dizia sobre os eventos do mundo: “C’est grave, excessivement grave!” E acrescentaria, como toda a razão: “Et pourtant, où va-t-il?” E na realidade, o mais longe que esse tipo de homem vai, lá por Vila Real, é ao Cabo da Bila (com “b”, claro)...

Testei isto com outra pessoa e a explicação foi outra: “É quase sempre apenas timidez. O “carão” é uma simples defesa. O estatuto de “homem na cidade” (como o disco de Carlos do Carmo), em especial na província e ainda mais nas pequenas localidades, implica uma coreografia própria no esgar. Um ar de brincalhão, mesmo um leve sorriso, fragilizá-lo-ia, abriria caminho a não ser tomado a sério, daria ideias aos outros para o abordarem com comentários leves e jocosos, lidos como excesso ou exploração de confiança”.

Um velho embaixador que em tempos conheci, e que era obsessivamente preocupado com a exegese dos sinais que regulam os registos de comportamento mútuo, tinha uma tese bizarra (e, para mim, ridícula): temos de estar sempre “acima” do nosso interlocutor. Porquê? Porque as relações sociais são, por regra, desequilibradas. Assim, ele passava o tempo a usar uma expressão anglo-saxónica que traduzia essa sua ideia: “if you are not one point up, you are one point down”. A cara de mauzão fará parte desse estilo?

As coisas com que algumas pessoas se preocupam!

O destino das Américas

Se há coisa que a História cada vez mais nos ensina é que temos ser muito prudentes ao ler os seus sinais. Prudentes e modestos, em especial na tentativa de dela tirar ilações para o futuro.

Há uma dezena de anos, muitos de nós olhávamos para a América Latina como uma geografia política que seguia um curso relativamente linear, embora diverso dentro de si e com alguns identificáveis riscos de percurso. 

Sabíamos e sabemos que os Estados Unidos nunca prescindiram de ter um “droit de regard” sobre um sub-continente que consideraram, na aplicação da (sua) “doutrina Monroe”, como uma zona de legítima influência direta, parte do seu perímetro de segurança próxima. O fator cubano, inserido no contexto da Guerra Fria, deu-lhes um alibi fácil para poderem continuar a apoiar e a gerar, na região, alguns títeres autoritários e, em caso de evidente desvio dos seus interesses, intervirem e recolocarem as coisas nos eixos favoráveis ao “mundo livre”, mesmo que para tal fosse necessário reforçar alguns ditadores. A “liberdade” do seu mundo, de que os EUA sempre se arrogam como lídimos intérpretes, vale sempre o condicionamento da liberdade de outros. A frase de Roosevelt para qualificar um dos ditadores que interessavam a Washington ficou na História da “realpolitik” mais cínica: “He is a son-of-a-bitch, but he is our son-of-a-bitch”.

O mundo ocidental, em geral, viveu sempre confortável com a ideia de que a América era, em princípio, um “assunto” dos americanos (do Norte). Com o fim da Guerra Fria, embora com a política interna dos EUA a determinar a continuação da quarentena a Cuba, os americanos descortinaram um novo alibi para manterem a sua intervenção na região: a luta contra o tráfico de droga. Era um problema real, que rapidamente se converteu num pretexto para facilitar intervenção nos assuntos internos de alguns parceiros, com a América Central como alvo mais óbvio.

Mas, um pouco por todo o sub-continente, o tempo das ditaduras militares, que a polarização Leste-Oeste adubara, parecia estar a ser sucedido por regimes cada vez mais democráticos, embora alguns com alguma dose de autoritarismo, muitos ainda com processos de guerrilha militarizada cujo efeito a comunidade internacional procurava atenuar por mediações pacificadoras. A Europa, agora com uma ambição política a orientar-lhe uma atitude externa comum, começou a tentar mostrar-se relevante no diálogo com os países latino-americanos e com as suas novas estruturas intergovernamentais. Era um proselitismo democrático que, de certo modo, cobria um interesse de presença económica, ajudando esses Estados a sair do exclusivismo da relação intra-americana, a que atores de outras geografias (China, Turquia, etc.) igualmente ajudavam.

Os modelos tendencialmente democráticos que iam surgindo um pouco por toda a América Latina, alguns marcados por artificialismo institucional, que só a esperança podia fazer crer que teriam sustentabilidade temporal, não parecia, contudo, conseguir atacar uma realidade que, em lugar de se atenuar, se ia mesmo agravando: as clivagens sociais e económicas, em parte disfarçadas por surtos conjunturais de crescimento que absorviam alguns dos seus efeitos, nomeadamente de natureza política. Noutros contextos, como aconteceu nos modelos “bolivarianos”, essa abertura cedo teve derivas de populismo, às vezes com o sublinhar dos direitos das comunidades indígenas como pretexto de base.

Uma coisa ficou – e está a tornar-se – muito evidente. Talvez com exceção da Colômbia e da Costa Rica, em quase nenhum dos restantes casos, embora diferentes entre si, se nota estar a sedimentar-se um espírito de reconciliação nacional que nos permita afirmar, com alguma certeza, que a legitimidade das instituições será capaz de sustentar as tensões sociais internas existentes, preservando esses Estados de convulsões potencialmente perigosas. Os exemplos recentes do Chile e do Brasil, que há meia dúzia de anos pareciam encaminhados num rumo de estabilidade e progresso, mostram-nos a inesperada debilidade de alguns modeloS e, regressando ao que disse no início do texto, a necessidade de sermos modestos na certeza das nossas análises.

quinta-feira, novembro 14, 2019

Cilindrada diplomática


Era um homem simpático, já idoso, o motorista local daquela nossa embaixada, bem fora da Europa. Esforçava-se por falar português, mas com escasso sucesso. Dizia o básico.

Um dia, o novo embaixador, para alimentar conversa durante uma viagem, perguntou-lhe com quantos dos seus antecessores ele tinha trabalhado. Tinham sido vários e o motorista lembrava-se bem do nome de todos.

Por uma qualquer razão, veio à baila o automóvel pessoal do primeiro daqueles embaixadores: “Ah! Carro muito bom! Cadillac! Graaaande!”. Esse Cadillac tinha impressionado fortemente o homem.

Mas não se ficou por aí. Sem ser perguntado, resolveu continuar: “Depois, vem embaixador “Silva”. Lincoln! Carro graaaande!”. E prosseguiu: “E embaixador “Santos”. Mercedes! Graaaande!”. Os automóveis de grande porte dos seus embaixadores tinham-no marcado.

E o homem parou as evocações automobilísticas, sem, curiosamente, mencionar a viatura do imediato antecessor do seu atual chefe. Este, intrigado, perguntou: “E o Embaixador “Pinto”? Que carro tinha?“.

Nova pausa do motorista que, com uma entoação de voz bem menos entusiástica, finalmente disse: “Embaixador “Pinto”. Mercedes!” Fez um silêncio de alguns segundos e acrescentou: “... mas ‘piquinino’!”. E riu!

O embaixador, no banco de trás, estava divertido com aquele elenco de colegas e automóveis. E decidiu espicaçá-lo, lembrando-se do seu próprio carro: “E agora?”. O homem, lá à frente, tinha embatucado. Mas ele insistiu: “E agora? Diga lá!”

O velho motorista percebeu que não podia escapar e, sem se voltar para trás, em voz mais baixa, saída de entre os dentes bem brancos, a contrastar com a sua cara, usando um tom “declinante” que não iludia o que lhe ia na alma, lá comentou, imagina-se que com algum sorriso: “Agora? Agora é só Toyotta, embaixador...”

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...