Há cerca de dois anos, contei esta historieta no meu blogue. Hoje, pelas razões que facilmente compreenderão, lembrei-me dela:
"Mário Soares não tinha por hábito pernoitar nas embaixadas, preferindo quase sempre os hotéis. Apenas em Brasília, numa das vezes que por lá passou, o convenci a dar-me o gosto de ali ficar. Mas foram bastantes as noites, em vários países, em que com ele fiquei à conversa pela noite dentro. Nessas ocasiões, eu aproveitava para saciar a minha curiosidade em torno das suas inesgotáveis memórias, sempre marcadas por um rigor dos factos, datas e nomes. Muito aprendi então sobre a história da oposição democrática à ditadura e os bastidores da política doméstica no pós-1974.
Naquela noite, eu juntara à sua volta, num jantar, o antigo presidente da República, José Sarney, e o então vice-presidente, José Alencar. Sarney era um velho conhecido de Mário Soares, que as voltas da política tornara, à época, um leal aliado de Lula, e Alencar era um querido amigo pessoal meu, que achei que Soares gostaria de conhecer melhor.
O jantar começou muito bem, com a bonomia e as histórias mineiras do vice-presidente a deliciarem o nosso antigo presidente. Este tinha vindo, na véspera, da Venezuela, onde entrevistara o presidente Hugo Chávez para um programa televisivo. Estava visivelmente entusiasmado com o líder venezuelano, sentimento que eu sabia muito longe de partilhado pelos dois convivas brasileiros. Alencar mostrava-se mais parcimonioso nestas reservas do que José Sarney, que, tempos mais tarde, acabaria por assumir no Senado brasileiro uma oposição forte à entrada da Venezuela para o Mercosul.
A certo passo do repasto, com a conversa quase sempre em torno da figura de Chávez, comecei a notar que o diálogo entre Soares e Sarney se estava a tornar um tanto tenso. Entre outras discordâncias, Sarney explicava a Soares que havia setores brasileiros muito preocupados com as aquisições de material militar que Chavez tinha recentemente feito, e procurava chamar em apoio das suas teses o vice-presidente da República, José Alencar, que, até meses antes, tinha acumulado o cargo com o de ministro da Defesa. Este, porém, por não querer distanciar-se da atitude nada crítica de Lula face a Chávez, mantinha-se discreto.
Soares, contudo, acreditava piamente na boa vontade de Hugo Chávez, creditava-o de boas intenções e de um real interesse em manter um relacionamento positivo com o Brasil. Num determinado momento, voltando-se para Sarney, disse-lhe: "Ó José Sarney! Eu conheço muito melhor o Chavez do que você! E, por isso, posso assegurar-lhe que nunca uma arma venezuelana que ele controle se voltará contra um interesse do Brasil".
Sarney fechou aquela cara de brasileiro que, do bigode ao cabelo negro com brilhantina, refletia uma imagem caricatural do brasileiro da sua idade a que o mundo dos anos 50 e 60 se habituara, e, longe de convencido, voltando-se para Soares, disse-lhe: "Ó Mário! Nem você nem eu já temos idade para acreditar nessas coisas! Não seja ingénuo!".
Mário Soares não gostou, retorquiu firme, mas com procurada elegância. Eu fiz um sinal a Alencar para me ajudar a amenizar a conversa. Isso foi conseguido, sem dificuldade, mas pode dizer-se que aquele que seria o último encontro entre os dois antigos presidentes não acabou em ambiente de grande euforia."
Chávez já morreu há muito e por lá está agora Maduro. Alencar e Soares também já desapareceram. Olhando as coisas à luz dos riscos potenciais nos dias que correm, com a escalada entre os dois países, em que só se pode esperar que o bom-senso prevaleça, lembrei-me das preocupações de Sarney.