Nunca percebi (para se ser percebido, no Brasil, tem de se dizer “entendi”) a geografia do Rio de Janeiro. A imbatível beleza daquela cidade tem a ver precisamente com a bizarria do seu desenho urbano, que é, também ela, uma das razões que explicam muitos dos seus problemas sociais. Quando, nas muitas idas por lá, me coube em sorte ter de me deslocar a um lugar fora dos sítios mais comuns e conhecidos, senti-me quase sempre perdido. E, porque frequentemente distraído num “bom papo” com quem me transportava, rapidamente perdia as referências mínimas de orientação. Hoje, continuo a conhecer muito mal o Rio.
Por isso, não consigo dizer, nem aproximadamente, o local da cidade onde ficava o estúdio de televisão onde, há bem mais de uma década, fui para uma conversa noturna sobre a língua portuguesa e o Acordo Ortográfico, com o linguista Evanildo Bechara e, imaginem!, Fáfá de Belém.
Foi o Araújo, o excelente potiguar (nascido no Rio Grande do Norte) que é (ou era) o motorista do nosso consulado-geral no Rio, quem me levou. Já nem recordo como o debate decorreu, mas apenas que, à saída, notei que não havia grande pressa em que abandonássemos o local. Vi o Araújo preocupado, no hall de entrada: “É melhor esperar um pouco. Há uma confusão na vizinhança”.
“Confusão” era o “understatement” para um tiroteio intenso que, com um pouco mais de atenção, comecei a ouvir lá por fora. Não eram tiros isolados, eram disparos de metralhadora. “É bandido contra bandido”, disse alguém, com naturalidade. Um outro conhecedor esclareceu: “Aquilo é lá ao fundo da rua”. Foi nesse instante que acordei para uma realidade preocupante: o “fundo da rua” era a ladeira por onde tínhamos entrado e por onde, em princípio, devíamos sair.
Olhei a cara experiente do Araújo, que me pareceu não ter a serenidade habitual. Mas logo chegou um outro suposto “expert”, que me recordo ter aconselhado, para minha imensa surpresa e, devo confessar, algum súbito desconforto: “Sigam pela rua em direção ao sítio de onde vêm os tiros, mas voltem logo na primeira à esquerda. Não se assustem, aquilo é só lá no final, as balas cruzam de um um lado para o outro, vêm dos dois lados, mas nunca entram neste rua”. Anotei aquele “nunca”, definitivo, pretendidamente “rassurant”. E fiz por acreditar.
Já não me lembro da reação de Bechara, mas a Fáfá, que tinha um táxi à espera, continuava, ou tentava parecer, divertida, naquele seu imparável sorriso da brasileira que mais ama Portugal. E eu lá fui, com o valente e dessa vez silencioso Araújo, pelas ruas que acabaram por nos conduzir, sãos e salvos, de volta ao palácio de São Clemente, o edifício que alberga o nosso Consulado-Geral.
Não anotei a espécie, nome e graduação do álcool forte que o nosso cônsul-geral, António Almeida Lima, então me deve ter dado a beber, à chegada. Só sei duas coisas de ciência certa: que foi, com certeza, uma dose dupla e que a não bebi na varanda traseira onde, por mais de uma vez, haviam chegado no passado tiros saídos da vizinha favela Dona Marta, como a parede atesta.
Ao ler, há pouco, notícias sobre a (in)segurança no Brasil, lembrei-me deste episódio ocorrido no Rio que passou pela minha vida, para citar alguém conhecido.