sexta-feira, setembro 09, 2016

A minha Europa


Há dias, Jaime Gama disse do seu desagrado por ver setores políticos portugueses a assumirem um discurso negativista sobre a Europa, apelando à reconstituição do “arco europeu”, que assegurou a vontade para a integração e a mobilização para as três décadas de presença portuguesa no projeto. Com a autoridade de quem teve responsabilidades em momentos decisivos desse percurso, Gama sublinhou as virtualidades políticas do processo integrador e algumas das imensas vantagens que Portugal dele retirou.

Gama tem toda a razão e, olhando, mesmo que com uma frieza isenta de qualquer idealismo, para o leque das opções que Portugal tem perante si, em termos de inserção geopolítica, parece-me evidente que um projeto europeu é o único que, num prazo que vai até onde a nossa visão estratégica alcança, melhor defende os interesses portugueses.

Articular essa inserção europeia com a vertente atlântica e a dinamização possível do espaço lusófono, onde a proteção da diáspora se deve integrar, com o nosso particular olhar histórico para a África e o “Sul” em geral, sustentar a credibilidade que criámos na vida multilateral, terreno por exemplo essencial para uma “diplomacia do mar”, bem como aproveitar a nossa vocação de “honest broker” e de “produtor de segurança” através das nossas Forças Armadas – eis um programa de ação externa em que nos deveremos empenhar.

Mas voltemos à Europa, a qual, aliás, nos ajuda a potenciar muitos dos vetores da agenda atrás sintetizada. Costumo dizer, para arrelia de alguns, que sou tão europeísta quanto os interesses de Portugal o justificarem. Porém, repito, não dispensando o exercício de algum controlo nacional sobre a soberania partilhada no quadro europeu, não tenho hoje a menor dúvida de que é aí que os nossos interesses, enquanto país, melhor são defendidos. Creio que era a essa Europa que Jaime Gama se referia. Só que pode haver outras.


Como português, não sou europeísta de “qualquer Europa”. Se a Europa vier a transmutar-se num modelo de gestão centralizada, desigualizadora na proteção dos interesses dos diversos povos e Estados, um grande mercado monetário policiado pelo veto financeiro de alguns e desmunido de políticas fortes de solidariedade, assente numa matriz que garante a riqueza a uns pela persistência da falta de bem-estar de outros – essa não é a minha Europa. Não sou pela Europa “do mal o menos”, nem acho que Portugal deva assumir uma vocação europeia apenas “by default”. Somos um país que deve defender a preservação da democracia como elemento identitário dentro da Europa mas, igualmente, que deve bater-se para que a Europa seja, ela própria, regida por regras transparentes, democráticas, que preservem o princípio da igualdade soberana dos Estados. Essa é a minha Europa ou, para ser mais claro, é apenas a esse europeísmo que adiro – e não a qualquer outro.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

quinta-feira, setembro 08, 2016

Mário Vilalva


Mário Vilalva despediu-se ontem, durante o dia nacional do Brasil, dos seus amigos portugueses. Imagino que tenham sido muitos os que foram dizer adeus à Vânia e ao Mário, na receção organizada na embaixada. Digo "imagino" porque, por um destes azares que as minhas ocupações de reformado me criam, tive um compromisso simultâneo inadiável que não me permitiu lá estar, como muito desejaria. E digo "muitos" porque conheço muito bem a excecional marca que este embaixador brasileiro deixou em Portugal.

Ser embaixador do Brasil em Portugal, ou vice-versa, é, além de uma exigente profissão de Estado, uma "arte". A intensidade do relacionamento bilateral pode criar a ideia de que se trata de uma função regida por regras óbvias, que tudo se passa com a naturalidade de uma "lua-de-mel" diplomática. Puro engano! Muitas vezes, somos mais exigentes com a "família" do que com os amigos e, também por isso, esta é uma "special relationship", como se diz noutras paragens. Se um dia me der para escrever sobre isto, é um longo volume...

Conheci o Mário quando cheguei ao Brasil, onde ele chefiava então o departamento de promoção comercial do Itamaraty. O seu trabalho era elogiado "urbi et orbi". Esteve depois no Chile, uma relação bilateral importante, antes de aportar por aqui, um país onde já tinha estado no início dos anos 90 e onde sempre se sentiu "como peixe na água". Pude testemunhar, em diversos círculos, como era escutado, respeitado e, o que é mais importante, como conseguiu ser a voz prestigiada do Brasil, num tempo nem sempre fácil para a imagem externa do seu país. O Mário Vilalva foi um exemplar embaixador brasileiro em Portugal.

Adeus, Vânia e Mário. Vamo-nos vendo por aí!

quarta-feira, setembro 07, 2016

A síndrome do Mandarim

Ontem foi Joseph Stiglitz, a plagiar João Ferreira do Amaral, dizendo que Portugal não tem futuro dentro do euro. Meio país ecoou o Nobel e o outro descreu na profecia. 

Hoje é Tony Barber que, só tendo agora recebido a difícil tradução do discurso do Pontal, fala da "tempestade perfeita" que pode aguardar a economia portuguesa, num interessante editorial do "Financial Times" que vai fazer a glória das Cassandras do comentário nos próximos dias (o que já aí vai de euforia oposicionista pelas redes sociais!). Texto que, aliás, ganha em ser bem lido até ao fim, isto é, até ao ponto em que fala da inconveniência absoluta para a Europa dessa hipotética conjugação climática.

No Mandarim, Teodoro tocava a campaínha e o mandarim morria na China. Aqui são o Project Syndicate e o FT que "matam" à distância, uma espécie de "drones" mediáticos.

Arrefecer

Lisboa está a arrefecer. Aos poucos. Sopra um vento leve, setembrino, que põe acalmia na caloraça infrene que nos dominava os dias e noites. Temos tendência a ter estados de alma sobre o tempo: "Que belo dia!" ou "que dia chato!", quando, na realidade, se as coisas nos correm bem ou mal, até os maus dias passam a bons e um sol de "National Geographic" pode servir de cenário para uma neura. Hoje, repito, de um momento para o outro, neste final de tarde, Lisboa arrefeceu. É bom? É mau? É a vida, como dizia o outro.

"Voyeurisme" político

Cada um falará por si, mas quero dizer que quase sempre tenho alguma curiosidade em ver dissecados, a posteriori, episódios polémicos do quotidiano político, que a espuma dos dias deixou para trás de forma inconclusiva. Casos portugueses e não só.

Às vezes, em especial no estrangeiro, isso é feito por algum jornalismo de investigação, mais ou menos competente. Porém, na grande maioria dos casos, essas coisas ressurgem só através de memórias, com a limitação desses relatos unipessoais raramente fugirem a uma leitura parcelar e interessada dos factos, quase sempre por forma a deixar o autor no "safe side" da questão. 

Vem isto a propósito do livro que Fernando Lima vai publicar nas próximas horas, onde aborda o seu tempo com Cavaco Silva em Belém, como assessor para a comunicação social, depois de o ter acompanhado ao tempo de primeiro-ministro, período de que deixou um relato não excessivamente excitante.

A grande curiosidade em torno deste novo livro não será tanto a sua acrimónia final face ao antecessor de Rebelo de Sousa (para quem gosta de andar à cata das coscuvilhice que tanto anima certa imprensa) mas, essencialmente, a luz que o texto possa vir a deixar sobre o famoso caso das acusações de "vigilância" de S. Bento a Belém, nos idos de 2009. 

Por isso, ao contrário de alguns amigos, que seguramente rejeitarão o livro com a mesma convição com que (como eu) rejeitavam fortemente o "cavaquismo", irei ler com muita curiosidade o texto. 

Há dias, uma personalidade conhecida, dizia-me: "tu não serves de orientação em matéria de leituras, porque lês tudo". Não é verdade, antes fosse. O que eu leio é "de tudo", dando clara preferência àqueles com que sei, à partida, que não vou concordar.

Keith Vaz


Às vezes sublinho por aqui ligações pessoais a figuras que conheci e cujo trajeto futuro veio a tornar mais conhecidas, por carreiras de sucesso. Hoje vou num sentido um pouco distinto.

Keith Vaz, antigo responsável britânico pelos Assuntos europeus no governo de Tony Blair, com quem mantenho uma boa e antiga relação de amizade, foi forçado a afastar-se do seu lugar de deputado na Câmara dos Comuns, para onde tinha sido sucessivamente eleito, desde há cerca de 30 anos, por se ver envolvido num escândalo com contornos menos simpáticos.

Ao Keith, um homem caloroso e muito agradável, que me fala sempre com orgulho das suas raízes goesas, deixo aqui um abraço de solidariedade pessoal. A vida continua, embora agora de forma diferente.

Suíça

Jogar bem e ganhar é normal. Jogar bem e perder é azar. Jogar mal e perder é normal. Jogar mal e ganhar é ser campeão europeu.

terça-feira, setembro 06, 2016

Costa e o Brasil

Uma nota rápida mas, pelos vistos, necessária.

Nenhuma, repito, nenhuma leitura restritiva dos contactos que o primeiro-ministro português venha a ter com as autoridades brasileiras, durante a sua estada no país, tem a menor, repito, a menor legitimidade. 

É sabido que, no seio das forças políticas que apoiam o governo, a começar pelo PS, há muito quem pense que o afastamento de Dilma Rousseff e a ascensão de Michel Temer à presidência brasileira são atos feridos de irregularidades. Cada um é livre de pensar o que quiser sobre o assunto. Só que isso é, em absoluto, irrelevante para a política externa portuguesa. 

Portugal não se relaciona com regimes políticos, relaciona-se com Estados. Era o que faltava que estados de alma de natureza político-ideológica, assentes em leituras constitucionais exteriores da situação política brasileira, viessem a projetar-se, ainda que ao de leve, nesse imenso tecido histórico que hoje constitui a importante malha do relacionamento luso-brasileiro. 

O Ministério português dos Negócios Estrangeiros, pela voz avisada do seu ministro, já disse o que precisava de ser dito. Assunto encerrado, pois.

Dos mitos pouco urbanos

Hoje, durante um jantar, um estrangeiro que eu tinha acabado de conhecer fez-me uma pergunta curiosa: "Então é verdade que o vosso primeiro-ministro conseguiu um truque parlamentar para governar sem maioria?".

Esclareci-o que, nas últimas eleições, o PSD foi o partido mais votado e o PS o segundo. Como manda a Constituição, o presidente da República convidou o líder do PSD a formar governo. Este organizou um governo com outro partido, o CDS, e esse governo não conseguiu aprovação na Assembleia da República, porque teve contra si o voto conjugado de todos os partidos da oposição, que, conjuntamente, têm mais deputados que PSD e CDS somados. Nestas condições, e como sucede em todo o mundo (aconteceu, por exemplo, em Espanha), o líder do PS, o segundo partido mais votado, foi convidado a formar governo. Contrariamente ao líder do PSD, que havia arranjado um parceiro de coligação, o PS decidiu fazer um governo sem recorrer a coligações, garantindo para ele, por um acordo parlamentar, apoio político por parte dos dois restantes partidos, que com ele haviam derrubado o governo do PSD/CDS. É esse governo mono-partidário que hoje está em funções, mantendo o apoio desse dois outros partidos.

"Mas não foi isso que me disseram as pessoas com quem eu falei! É verdade que eram todos conservadores, mas a ideia que me deram é que havia uma clara ilegitimidade na constituição deste governo". Expliquei que a única "questão" poderia ser a quebra da "tradição" do partido mais votado chefiar sempre o governo. Esse partido, contudo, teve a sua "chance" de procurar uma maioria e não conseguiu concretizá-la, por falta de apoio parlamentar.

"A ser assim, não há nada de estranho! Pelo que você me explicou, acho mesmo um abuso e uma distorção dizerem que há uma "ilegitimidade" no vosso governo. É um absurdo!". Disse-lher ser da mesma opinião.

O meu interlocutor acrescentou: "Dizem-me que o vosso novo presidente é muito popular e que vem da ala conservadora, não é". Confirmei a popularidade e, quanto à vinculação política, reafirmei que ele é mesmo um orgulhoso militante e fundador do PSD e, que eu saiba, não entregou o seu cartão de filiado. "Mas ele tem poderes para dissolver o parlamento e convocar novas eleições?" Disse-lhe que sim, claro. 

"Então há qualquer coisa que não estou a perceber bem: se todos os meus amigos conservadores me falam da "ilegitimidade" deste governo (embora você já me tenha explicado que não houve nenhuma ilegalidade formal), se o novo presidente é oriundo da ala conservadora e tem hoje forte apoio popular, porque é que ele não aproveita para convocar eleições e assim tentar fazer regressar ao poder os seus amigos políticos?".

Não resisti: "Talvez porque ele demonstra bom senso e porque você é que anda por cá em muito más companhias..." 

segunda-feira, setembro 05, 2016

"Out of Africa"

O nosso embaixador naquele país africano de língua portuguesa ficou preocupado com as consequências que a declaração solene daquele alto responsável político local pudessem vir a ter nas relações com Portugal, que, desde há algum tempo, atravessavam um momento menos bom. 

O político, num contexto formal, a que a comunicação social dera forte destaque, recomendara aos concidadãos que se abstivessem de se deslocar a Portugal, nomeadamente em férias e, se possível, também em negócios. O nosso país era referido como "hostil" e "não recomendável" para os cidadãos dessa ex-colónia. 

Que significado isso tinha? Haveria algumas medidas que pudessem vir a afetar a TAP? Ou os negócios? As coisas não ficavam claras. E o embaixador, ao encerrar o expediente na embaixada, nessa sexta-feira, deve ter pensado para consigo mesmo: vamos para fim de semana e depois logo se vê, na velha lógica de que o tempo, às vezes, acaba por resolver as coisas.

No sábado de manhã, nesse tempo em que não havia telemóveis, o telefone retiniu na residência do embaixador, a minutos de ele partir para a praia. Era um seu colaborador. "Lá temos chatice!", deve ter pensado, também na consabida (e sempre confirmada) regra de que a maioria dos problemas nas embaixadas "caem" nos fins de semana.

Do outro lado da linha telefónica, a voz "sorridente" do diplomata júnior que o chamava sossegou-o. O jovem pretendia apenas informar o embaixador de que, bem cedo nessa manhã, lhe haviam batido à porta, solicitando com urgência um visto de entrada em Portugal, no passaporte diplomático de uma senhora, mulher de um importante político, que desejava deslocar-se nesse mesmo dia a Lisboa. O curioso é que a senhora era, nada mais nada menos, do que a mulher do político que, menos de 24 horas antes, recomendara um feriz "boicote" à terra lusa. Ironias...

Há pouco, na livraria do Apolo 70, lá estava ele, o político, de iPhone no ouvido, em traje estival, com alguns "bodyguards", a folhear as últimas edições. Lisboa é uma bela cidade para férias e negócios, não é?, tive vontade de perguntar-lhe...

domingo, setembro 04, 2016

Fui à festa!

A Festa do Avante é uma grande romaria laica. Os santos têm vindo a perder fulgor e o eixo da fé caiu há uns tempos com um muro, lá para o meio da Alemanha. As músicas populares que animavam os romeiros, dos primeiros tempos, deram lugar a sonoridades de grupos de vanguarda, sempre com uma pitada nacional, para manter uma referência à tradição. Quem por lá vai nos dias de hoje é uma mistura simpática de gente, tão diversa que, no ano passado, ficou por esclarecer uma triste trapalhada homofóbica, com a complacente cumplicidade da imprensa.

Não foi apenas o calor que fez com que não me desse para passar este ano pela Festa do Avante. Foi o sentimento de que, não obstante ter uma simpatia residual pelo sonho que leva muitos cabelos  brancos a confiarem nos amanhãs que cantam, aliados a uma juventude militante cujo entusiasmo não  me foi ainda dado entender, aquela mensagem é-me já um pouco alheia. Mas, este ano, teria uma curiosidade: fazer a exegese do discurso equilibrista do PCP, na sua qualidade membro da "geringonça". Não deve ser fácil estar e "não estar" no poder. Amanhã vou ler Jerónimo de Sousa e olhar a cara de Arménio Carlos e Mário Nogueira. "Pode alguém ser quem não é?", cantava Sérgio Godinho. Se calhar, pode.

Mas, afinal, fui à Festa ou não? Claro que fui. Fui à festa de aniversário de um grande amigo e, no final, cantou-se a Internacional com a letra do "Parabéns a você!". Ou seria vice-versa? É uma grande confusão? Lá isso é, mas teve muita graça, talvez mesmo muito mais do que a Festa do Avante.

sábado, setembro 03, 2016

O défice, a dívida e a Europa

Fala-se que o défice público de 2016, pelos menos aquele que é relevante para as contas europeias (isto é, sem contar com a recapitalização da Caixa), pode ficar bem abaixo dos 3%.

Acho extraordinário como ninguém destaca que um défice de 3% - ou mesmo de 4% ! - face ao produto seria sempre, historicamente, um défice fantástico, não para o padrão teórico convencionado pela ortodoxia dominante, mas para quem tem alguma memória.

(Uma nota: quando se diz que a recapitalização da caixa "não tem efeitos no défice" dever-se-ia ponderar que, em rigor, o serviço dessa nova dívida surgirá projetado nesse défice, isto é, no "que conta" para a Europa).

Mas, contraditoriamente, algo estranho o olhar embevecido que se lança para o número sincrónico do défice, como se dele dependesse toda a nossa felicidade, embora reconheça que dele depende a possibilidade de sairmos do procedimento europeu de défices excessivos, o que não é pouco, pelo impacto no acesso ao mercado de capitais. 

O nosso défice, nas condições de (não) sustentabilidade que hoje tem, faz-me lembrar aquele peso "magnífico" a que conseguimos chegar depois de dez dias sem beber álcool, consumir açúcar e comer pão e farináceos: começamos logo a pensar poder comprar camisas "slim fit"... Para comemorar, fazemos um jantar excecional (em termos financeiros, são as "reposições" da "geringonça"). E lá vamos nós para nova "engorda" até ao "check-up" bruxelense do ano seguinte.

Então não há saída para este dilema? Há. Excluídas as receitas extremas da austeridade (redução e quebra de qualidade da máquina do Estado, cortes nas pensões e salários públicos - lembrando que o rácio despesa pública/produto, em Portugal, nem sequer é dos mais elevados da Europa), resta atacar a questão da dívida. Sendo a dívida (a amortização e o seu serviço) o grande fator desta pressão sobre o défice, é aqui que reside o principal problema português (e não só português).. 

Não há nenhum - repito, nenhum! - cenário de futuro em que seja plausível que a nossa dívida venha a ser paga de forma quantitativamente significativa. Tal como sucede, todos os dias, com os grandes clientes dos bancos, há momentos em que, para os credores, faz muito mais sentido perder parte do capital e garantir a subsistência de um devedor, cuja capacidade de recuperação, nessas novas circunstâncias, possa garantir futuros retornos e, no caso dos países, uma presença no mercado de comércio e serviços propiciadora de futuros lucros, num ambiente de maior bem-estar e prosperidade nacionais (crescimento, emprego, menores tensões sociais), criador de condições sólidas para o investimento. Toda a gente sabe isto!

Porque a questão da dívida não pode ser resolvida de forma relevante num quadro negocial exclusivamente nacional (com as "trocas" de dívida, com as retificações de taxas ou com a mudança de algumas maturidades - ou com uma reclamação política de "reestruturação" da dívida nacional, como gostaria irresponsavelmente a "esquerda da esquerda", o que condenaria Portugal a um isolamento trágico e penalizante), pode dizer-se que só num contexto global europeu é que este que é o principal problema da vida nacional tem condições para começar a ser resolvido. 

Se há hoje um grande dossiê da nossa política externa, esse é o da dívida.

sexta-feira, setembro 02, 2016

Foi ali!


Como diria José Hermano Saraiva, foi exatamente ali, naquela mesa da direita, numa tarde de início de Verão, que tudo se passou, segundo vários testemunhos recolhidos. 

O casal, chegado do almoço na Pensão Mondego, à época uma rotina muito vulgar em algumas famílias de Vila Real, gostava de ocupar aquela mesa de canto, na Pastelaria Gomes. Eram ambos bastante baixos e anafados, ele mesmo rotundo, mas sempre de peito feito, como se uma farda se lhe colasse ao corpo, em permanência. Não se pode afirmar que fossem figuras populares na cidade, talvez porque a procurada gravidade do cavalheiro não induzia automaticamente uma onda de simpatia. Durante quase uma hora, por ali ficavam, as mais das vezes sozinhos, ele lendo o jornal com os óculos na ponta do nariz, ela quase sempre acabando por dormitar um pouco, para o que encostava a cabeça para trás, junto à grade que separa do "primeiro andar", que se pode ver na imagem que ontem colhi.

A partir daqui, os cronistas divergem em preciosismos metodológicos, convergindo, contudo, no resultado final. Numa versão, um dos ocupantes da mesa de cima terá tido a ousadia de atar uma sediela de pesca desportiva a fios da cabeleira da senhora, fixando a outra ponta na grade divisória. Noutra, teria sido fita-cola ou cola-tudo que, discretamente, terá colado o cabelo à grade. A versão mais benévola, e que entendo aliás como mais consentânea com a brandura dos costumes dos frequentadores do café, favorece a tese de que a cabeleira da senhora, num tombamento para trás durante um momento de sono, se terá ensarilhado de modo natural, e sem a intervenção da mão humana, numa das circunvoluções da grade. 

Provavelmente, a História nunca será servida, de forma incontroversa e definitiva, pela verdade dos factos. O anais da tradição oral urbana apenas registam, sem a menor sombra de dúvida, que a senhora, ao mover a cabeça para se levantar da mesa, terá ficado com a cabeleira - que era afinal um imenso postiço - presa à grade e, à vista da cidade social que a Gomes representava, terá exposto, espera-se que por escassos mas sem dúvida marcantes instantes, toda a careca que o artefacto cuidava pudicamente em resguardar. 

O abafado das gargalhadas que o episódio provocou em algumas mesas permanece, ainda hoje, na memória auditiva das testemunhas do evento, que o evocam com sorrisos (lamentavelmente) jocosos, alguns dos quais, "à la limite", poderiam indiciar que a tese da intervenção humana exterior colheria alguma credibilidade. Passaram quase cinco décadas sobre o episódio e, para além da prescrição objetiva do presuntivo delito, manda a discrição que não se tente aprofundar eventuais suspeitas. A bem da amizade.

Dinheiro em Caixa


Faço uma declaração afetiva de interesses quanto à Caixa Geral de Depósitos. Entre outras razões, porque para ali entrei, por concurso público, há muitos anos, naquele que foi o meu primeiro emprego. 

O banco do Estado representou sempre um indispensável instrumento da política pública na área económico-financeira, para quem, como eu, não cultiva a sacralização da “mão invisível” reguladora do mercado. Por isso, a crise que a Caixa atravessou recentemente não me deixou indiferente, quase tanto quanto as pulsões para a sua privatização, ideia quase criminosa face ao interesse público, se pensarmos naquilo que está a ser a desertificação da presença nacional na banca que resta por aí. 

O governo obteve uma vitória importante no processo de recapitalização da Caixa, que permitirá superar a fragilidade conjuntural revelada nos recentes testes de “stress”. Se isto fosse um país com memória, o executivo anterior deveria ser chamado à responsabilidade pela incúria com que tratou a Caixa – por exemplo, mentindo descaradamente ao país quanto à existência de uma possibilidade efetiva desse reforço de capital, sem efeitos no défice, para efeitos das contas europeias.

Se o dossiê recapitalização correu bem, já o da nomeação da nova administração foi envolvido em escusadas trapalhadas, jogando na praça pública, por incompetência indesculpável, com personalidades respeitáveis, que não mereciam esta incúria política.

Dir-se-á que tudo acabou em bem e que, agora, há que partir para um tempo novo. Não me parece. Por muito que isso possa incomodar alguns, desejosos por passar uma esponja sobre os tempos idos, eu, como contribuinte investidor, quero exercer aquilo que os franceses chamam o “direito de inventário” sobre o que se passou na Caixa, que conduziu à situação que agora se pretende superar.

Eu e todos os portugueses – repito, contribuintes investidores – temos o direito a saber, preto no branco, quais a responsabilidades exatas do condomínio PS/PSD, com algum CDS à mistura, que dominou a Caixa nas últimas décadas. Desde logo porque, nessa gestão politizada, houve gente competente e outra que o foi menos – e não podem todos ser medidos pela mesma rasa. 

Os portugueses têm o direito de saber, com nomes e números, quem foram, nos anos que prejudicaram a instituição, os responsáveis pelos créditos concedidos sem as necessárias garantias, se houve motivação política nessas decisões, se aconteceram, e porquê, grandes perdões de dívida e quem são hoje os principais devedores incobráveis – alguns dos quais andam por aí de costas direitas, com ar de gente séria.

A Caixa é uma coisa demasiado importante para que os erros de quem por lá passou possam ser iludidos, numa espécie de voluntária amnésia para absolver os vícios políticos do sistema. E, se o governo e alguns partidos se mostrarem relutantes a fazê-lo, o presidente da República deveria lembrar-lhes essa responsabilidade. O país ficaria grato.

quinta-feira, setembro 01, 2016

Diana


Num dia, creio que de 1992, entrei no San Lorenzo, um restaurante italiano em Beauchamp Place, em Londres, para almoçar com um amigo inglês. Encontrei-o de pé, junto ao balcão do bar, logo na entrada, e comentei: "Bela escolha de restaurante! É aqui que a princesa Diana costuma vir".

Semanas antes, tinha vindo a público, na "popular press", que a mulher do príncipe Carlos era amiga da dona do restaurante, de que era regular frequentadora. Quase um ano depois, as más línguas, a começar pelo biógrafo Andrew Morton, espalharam que o restaurante servia a Diana como "eixo" para encontros extra-conjugais.

O meu amigo não sabia nada disso. Mas, nem um minuto era passado, arregalou os olhos e disse: "Está a entrar a princesa Diana!". E era verdade. A senhora, como às vezes acontece, era mais bonita ao vivo do que em fotografias. Sentou-se com uma amiga numa mesa, connosco com o almoço positivamente perturbado pela coincidência.

Voltei a vê-la duas vezes mais. Numa receção em Buckingham Palace, quando sopesou a Cruz de Cristo que Duarte Ramalho Ortigão trazia ao pescoço (eu tinha outra igual, mas ela "escolheu" o Duarte, vá-se lá saber porquê) e perguntou ao embaixador Vaz Pereira porque não tinha também aquela bonita comenda, o que o levou a responder, com a habitual graça: "I'm working for it, Your Highness!". Depois, por último, no jantar que Mário Soares ofereceu à raínha Isabel II na nossa residência, em Belgrave Square, um dos escassos lugares estrangeiros em Londres onde a soberana se desloca e, muito provavelmente, a única manifestação que sobrevive da "Oldest Alliance".

Diana tinha um olhar suave e sedutor, que sempre comparei à trajetória de algumas bolas "puxadas" de ping-pong: descia e voltava a subir em direção ao interlocutor. Parecia frágil e, de facto, era. 

Passam agora exatamente 19 anos sobre a sua morte, num acidente no túnel de Alma, em Paris, sobre o qual está uma escultura de uma chama dourada que, embora nada tendo a ver com o desastre da princesa, recolhe diariamente as flores de quem dela gostava. Hoje, deve estar cheia delas.

Aqui fica uma fotografia igual à que ela dedicou aos seus dois grandes amigos Maria Lúcia e Paulo Tarso Flecha de Lima, embaixadores brasileiros em Londres, que me recordo de ver então na sua residência.

O "whataboutism"

Os anglo-saxónicos (que raio de fórmula para o que antes eram, simplesmente, os ingleses) criaram um belo conceito, quase que diria que dedicado ao espírito português: o ""whataboutism". Entre nós poderia ser traduzido por "e-atão-o?".

O "whataboutism" é a imparável tendência para, quando argumentamos com uma coisa, nos virem logo com outra. Fala-se dos erros dos gestores do PS na Caixa e, logo, os "pêesses" saem com "e então os do PSD?", como se os pecadilhos de uns pudessem absolver os dos outros.

Há minutos, coloquei no Facebook uma graça estival aos juristas, categoria em que tenho quase mais amigos do que pessoas conhecidas. De imediato, surgiram reações, algumas façanhudas outras com "fairplay", contra os diplomatas, até com exegeses curriculares em apoio. 

Que ferro!, como diria o Eça, bacharel de direito e diplomata nas horas (felizmente) vagas da escrita. 

O jeitinho brasileiro

Se um dia reencarnar, quero ser jurista. O que eles se divertem!

Ontem, no processo de destituição de Dilma Rousseff, a imaginação jurídica fez com que o processo de votação, a partir de certa altura, incidisse em dois items diferentes. Através do primeiro - que era o objetivo principal - a presidente foi afastada com a maioria de votos requerida. No segundo - como que em auto-absolvição compensatória da violência da primeira medida - os senadores aceitaram que Rousseff pudesse exercer cargos políticos nos próximos oito anos. (A argumentação "humanitária" para esta última medida foi curiosa: ela necessitaria de meios para viver, assumindo-se assim a política como o único "emprego" que lhe era possível ter).

Neste "jeitinho" jurídico, os legisladores brasileiros, aceitaram aquilo que parecia um gesto inócuo, quase caridoso, face à presidente cessante. E, no entanto, ao fazê-lo, deliberadamente ou não, abriram uma espetacular "caixa de Pandora". Rousseff pode não ser nos dias de hoje a mais popular pessoa do Brasil, mas, ao ter visto reconhecida a sua "ficha limpa" para o exercício futuro de cargos políticos, ficou com a porta escancarada para poder vir a ter a sua "revanche" face a Temer. Este, segundo toda a imprensa, terá ficado furioso com o expediente jurídico, que pode dar uma segunda vida ao seu ódio de estimação - e a intervenção que fez depois da posse foi clara prova disso.

Não há como ser jurista para poder fazer das coisas aquilo que der mais "jeitinho" ao momento.

Lápis azul?

Foi um momento triste e revelador.

Na apresentação dos títulos das primeiras páginas dos jornais de hoje, na RTP 3, cerca da uma da manhã, a locutora, por duas vezes, iludiu deliberadamente, na análise (quase) exaustiva feita à 1a página do jornal i, o destaque que este jornal dá a uma declaração do jornalista Luís Marinho, em que este tece comentários sobre a RTP, de cujos quadros deixa agora de fazer parte.

Um gesto que deixa muito mal na fotografia a RTP.

quarta-feira, agosto 31, 2016

A direita da esquerda


Era a véspera do primeiro Conselho Europeu de François Hollande, recém-eleito presidente francês, em meados de 2012. Durante semanas, os embaixadores europeus em Paris tinham tentado perceber, para benefício informativo dos seus governos, o que faria a "nova" França pós-Sarkozy com a questão da ratificação do Tratado Orçamental. 

O tratado era o colete de forças macro-económico que a Alemanha, sob pressão conjuntural dos mercados, impusera à Europa, depois de ter verificado que, para a sustentação reputacional do euro - e após ter cometido o sinistro erro de Dauville, ao abrir caminho para a "hierarquização" das dívidas soberanas -, não lhe chegavam as quatro regras que Theo Weigel impusera, em 1997, para Bona (Berlim só viria mais tarde) vir a prescindir do marco. Em estado de necessidade, com as agências de "rating" já a discriminarem os países, todos correram a ratificar esse trágico acordo que, sob a glória formal do retrato "à la minute" das contas públicas nacionais, passou a condenar alguma Europa à permanente estagnação. Escrevi "alguma", porque há outra Europa que está bem e se recomenda, que empocha em superávites aquilo que para os outros são défices. Os europeus que mandam podem ser cínicos, mas não são parvos.

Voltando a Paris. Das conversas com Pierre Moscovici e outros putativos governantes socialistas, algumas mais privadas, outras em fóruns mais alargados, os arquivos do MNE devem ter por lá aquilo que nem sequer me parecia ser uma previsão difícil de fazer: a França iria subscrever o tratado, claro, depois de lhe acrescentar uns "pozinhos", a dar-se ares de que Paris, sob Hollande, fazia "toda a diferença". No fundo, seria um "remake" de 1997, quando, em noites agitadas em Amesterdão, o novo governo Jospin, com Chirac em apoio (que saudades do gaullismo "social"!), "conseguiu" transformar o Pacto de Estabilidade em Pacto de Estabilidade... e Crescimento. Já ninguém se lembra, mas foi assim mesmo.

Nessa véspera do Conselho Europeu, o Eliseu chamou os embaixadores da União Europeia para um "briefing". E lá fomos nós, quase todos de Moleskine, eu com um caderninho preto do meu "stock" da saudosa Heróica, a papelaria que a movida da rua das Flores, no Porto, levou na enxurrada do sucesso.

Era alguma a curiosidade sobre quem é que a presidência da Repúbluca francesa colocaria a falar connosco. O "briefing" foi bicéfalo. Foi aberto por Philippe Léglise-Costa, assessor europeu, filho do meu amigo Pierre Léglise-Costa, que fala português como qualquer de nós, fruto de um casamento luso-francês. Philippe vinha da Representação Permanente em Bruxelas, onde era uma "estrela" que Hollande não podia perder. Hoje, é o assessor diplomático do presidente.

Phillipe fez o enquadramento das questões políticas e apresentou depois o seu parceiro de mesa, Emmanuel Macron, assessor económico. Nunca tinha ouvido falar dele, o que não era de estranhar, numa equipa que só estava há dias naqueles corredores. O que dizia era, pelo menos ... estranho! Podia ser dito perfeitamente por um assessor de Sarkozy! Não era tanto a forma, era a lógica subjacente ao seu raciocínio que contrastava, de forma muito evidente, com o famoso e não muito distante discurso de Le Bourget, de Hollande. Notei o fácies de Léglise-Costa, ligeiramente crispado, ao ouvir o mantra neoliberal do seu colega. Dito isto, que fique claro: ficou evidente que era uma pessoa muito bem preparada, um "enarca" de primeira água. Só não se percebia muito bem o que estava a fazer por ali, numa equipa presidencial de um governo socialista. À saída, recordo-me de me ter voltado para o meu colega sueco, Gunnar Lund, um velho amigo que comigo fez muita Europa, nos anos em que ambos estávamos no governo, e ter comentado, em tom de gozo: "Este deve ter cá ficado da equipa anterior!" Mas Gunnar não tinha desgostado...

Macron, entretanto, foi subindo. Com Valls como primeiro-ministro, chegou a ministro da Economia e, de um dia para o outro, começou a mostrar uma ambição pessoal incessante. Criou um movimento ("En marche!") daqueles de que a direita sempre gosta (isto é, dos que se dizem "nem de direita nem de esquerda" ou que isso é uma falsa e ultrapassada dicotomia) e, dia após dia, foi fazendo declarações em que se ia afastando da linha oficial, o que obrigou Hollande a o "recadrer", como dizem os franceses. Até que, há dois dias, se demitiu.

Macron não o afirmou ainda, mas parece evidente que vai ser candidato à presidência, nas eleições do ano que vem. Com jeito, ainda pode entrar nas "primárias" da direita... 

Os sinos da Sé


Alberto Miranda (1912/92) foi um poeta vila-realense, que a memória da cidade acolhe hoje numa rua com o seu nome. Lembro-me dele, passeando-se com uns casacos claros, com uma elegância muito própria, pela Avenida Carvalho Araújo.

Ontem, o meu amigo Mário Pinto, que mantém sobre figuras e episódios de Vila Real um espólio muito interessante, deu-me a conhecer um "poema" de Alberto Miranda, talvez menos conforme com a sua produção literáriaAlberto Miranda (1912/92) foi um poeta vila-realense, que a memória da cidade acolhe hoje numa rua. Lembro-me dele, passeando-se com uns casacos claros, com uma elegância muito própria, pela Avenida Carvalho Araújo.

Ontem, o meu amigo Mário Pinto, que mantém sobre figuras e episódios de Vila Real um espólio muito interessante, deu-me a conhecer um "poema" de Alberto Miranda, talvez menos conforme com a sua produção literária clássica, mas, nem por isso, menos curioso.

O poeta ter-se-á um dia indisposto com o facto da Sé Catedral de Vila Real começar a fazer ressoar os seus sinos às seis da manhã, incomodando pessoas de sono leve, como seria o seu caso, hospedado na Pensão Mondego, a escassos metros da torre sineira.

Num improviso, o poeta saiu-se então com uma rima que, nem por ser fácil, deixa de ter a sua graça, nessa cidade dos anos 40 do século passado:

Senhor Abade da Sé
Não destrua a nossa fé
Seja um abade moderno
Defenda o paroquiano
Mande o sino p´ró inferno
E o sineiro p´ró catano


Curiosamente, Alberto Miranda viria a viver grande parte da sua vida num prédio bem próximo da Sé. Terá conseguido mudar o horário dos sinos?

terça-feira, agosto 30, 2016

Um chá na Lapa



"Quatro e meia dá ou a essa hora ainda estarás a fazer um folhetim para amanhã?" Na gargalhada do David Damião estava toda a nervoseira que, nesse último dia de um pouco querido mês de agosto, atravessava S. Bento. O Forum TSF não correra bem, com os falsos "reformados & pensionistas" das centrais de comunicação a zurzirem o IMI das residências paroquiais. Fogos, governantes a voar com "vouchers" da Galp, a saga da Caixa, um presidente cada vez mais ubíquo e exigente, as contas europeias a rasarem a trave - tudo isso arruinara o Verão a António Costa.

"Agora cheira a setembro", escreveu o poeta, mas, para Costa, o mês que aí vinha não prometia ir ser flor que se cheirasse. A ameaça do corte dos fundos comunitários e as ambições dos parceiros da "geringonça" para o orçamento de 2017, com Catarina a levantar a grimpa e Jerónimo a ir subir a parada no fim de semana, lá na Atalaia, ameaçavam mesmo irritar-lhe de vez o otimismo.

Restava-lhe, claro, a imprescindível ajuda de Passos Coelho, que quando abria a boca oferecia um sopro oxigenado de ventura ao governo. A tirada de Boticas, a desestimular os investidores em Portugal, só não era grave porque estava absolvida pela inimputabilidade política que já se lhe colara à pele.

Ferreira Fernandes estava perplexo. O convite que acabara de receber para ir nessa tarde a S. Bento, para falar, "com urgência", com Costa, não deixava de ter algo de estranho. Logo ele que, neste agosto, se dedicara apenas ao Folhetim, uma crónica política ficcionada, às vezes não tão inóqua como isso, que parece que divertira os toldos algarvios, a começar pelo do patrão, Proença de Carvalho. O David mostrara-se jovial na conversa, mas quase tão críptico quanto ao assunto como o teria sido a Maria Rui, em tempos idos.

Conhecia Costa, ou julgava conhecê-lo. O primeiro-ministro era-lhe simpático, mas a agenda de um jornalista nem sempre coincide com a de um político e, pior do que isso, tem rapidamente de ser retificada quando há sinais disso poder estar prestes a acontecer. Costa era um sedutor pouco óbvio, nada "pushy", apelando à empatia de forma discreta, como quem não quer a coisa...

Apanhou o táxi no Marquês, mas a tarde começou logo a estragar-se quando percebeu que o motorista era um "lagarto" assanhado, que santificava o árbitro do Sporting-Porto e achava que o Adrian Silva merecia "um par de lambadas" por teimar sair de Alvalade. Ora aí estava um ponto comum do jornalista com o político: ambos eram indefectíveis do "glorioso". Ainda pensou mandar uma boca definitiva ao taxista, quando este, ao ver o destino exato da corrida, lhe deu o troco com um "quem faz cá falta é o que viveu aqui até os comunas chegarem!". Mas conteve-se. A sua alma de antigo discípulo do velho Leon Davidovich renascia sempre que era forçado a entrar por aquela casinhota de esquina da Calçada da Estrela, onde, por décadas, se amolhavam os pides de serviço por ali e que, agora, entre outras funções misteriosas, tinha um "bunker" onde os estagiários escalados para as conferências de imprensa das quintas-feiras ouviam os governantes que, num cenário de horror, competiam na falta de telegenia.

No pátio cruzou um beijo com a Clara Azevedo, eternamente de Nikon ao tiracolo, com quem, nos idos de 96, retratara em livro, a texto e imagem, a bela primeira campanha de Sampaio. "Vens para a festa?", lançou-lhe esta, fugidia, a aumentar o mistério. Subiu a escadaria exterior no topo da qual o David o aguardava, junto à sala dos polícias à paisana. Lembrou-se do grande romance que daria a vida do senhor Ferreira (Ferreira, como ele!), o porteiro que permanecera naquele cubículo desde os tempos de Salazar aos idos de Sócrates. Aquele que tudo olhara e, no final, nada vira que se visse para a História.

A Sãozinha, no primeiro andar, introduziu-o logo no gabinete, onde o esperava um Costa de sorriso aberto. Entretido a cumprimentar o primeiro-ministro, demorou uma fração de segundo até recortar o perfil de alguém que se mantinha, ao fundo, voltado para a janela. Não era possível! Era o Marcelo! Que fazia o presidente por ali? Que diabo se passava? Que "festa" era aquela, para utilizar o termo da Clara?

Costa saboreava com deleite o momento, à medida que o presidente, que se voltara, gargalhante, envolvia o jornalista num dos seus inconfundíveis abraços. Marcelo, noblesse oblige, perdera já há uns anos aquele hábito adolescente de puxar pelo braço de quem cumprimentava. Agora, envolvia o ombro de Ferreira Fernandes, conduzindo-o, como se estivesse em casa (quantas vezes fora ali com o pai Baltazar ver o seu homónimo presidente do Conselho), para os sinistros sofás verdes.

Ferreira Fernandes gostava de Marcelo. Não o escondia. Aquele jeito traquina de estar na vida, a autoconfiança feita destino, sempre lhe agradara. E o agora presidente retribuía-lhe. O jornalista não esquecia as palavras que o então, ainda e só, quase-candidato lhe dedicara, na apresentação do livro em que compilara as crónicas do folhetim do ano passado, naquela sala abençoada pelo imenso painel de Almada, agora passada a patacos pela nova "lei de imprensa" - vender o possível, contratar pouco, pagar o mínimo.

Marcelo, claro, tomara conta do instante, estava mesmo imparável, gozando com a época de "transferências" jornalísticas: "Então o Baldaia entra amanhã lá no Notícias, não é? Boa malha! E o André Macedo, ein? Aquela RTP é um "albergue espanhol", um mistério, tem sempre lugar para mais um... E amanhã também vamos ter o David Dinis no Público! Excelente! Bom, conhecendo-o, lá para o fim do ano, já deve estar noutra!" E, com uma sonora gargalhada: "O senhor primeiro-ministro não tem por acaso intenções de mudar o diretor do Diário da República, não?"

Costa rebolava-se de gozo, no sofá pequeno mais próximo da entrada, pouso permanente de Guterres, quando este ironizava que governar era "telefonar e engordar". Já tinham chegado cafés e Marcelo, que ameaçava tomar conta da conversa, percebeu que tinha de passar a bola ao dono da casa. E adiantou, mais sério: "O senhor primeiro-ministro vai explicar porque é que lhe pediu para vir aqui. E também perceberá por que é que eu também aqui estou".

De facto, Ferreira Fernandes ainda não parara de se interrogar sobre a razão do presidente se ter deslocado a S. Bento, para aquela inusitada reunião, quebrando todo o protocolo. Mas Marcelo, como demostrara na antevéspera nas Desertas, era de "premières", dava-lhe prazer fazer um "vêzinho" naquilo que outros não haviam concluído antes de si. Mas como diabo teria Marcelo ali chegado, sem ninguém notar? Quantos saberiam deste encontro? Afinal, pelo menos, dois dos jornalistas na Residência Oficial estavam a par. Mais cedo ou mais tarde isso constaria. E ele também era, acima de tudo, jornalista...

"Caro Ferreira Fernandes, o senhor presidente e eu queríamos fazer-lhe uma proposta." Mau, pensou o jornalista, isto começa a complicar-se. Mas Costa nem deixou cair a bola. "Quero dizer-lhe que apreciámos muito o seu Folhetim de Verão. Mesmo mais do que pode imaginar..."

Ferreira Fernandes olhou de soslaio Marcelo, mas este afivelara já aquele esgar de Estado que soubera criar nos últimos meses, um misto de levíssimo sorriso, quase episcopal, típico do gestor cívico de afetos em que se queria consagrar na História, e um rictus formal de função, que tinha em Cavaco o anti-modelo.

"O que você fez neste mês, meu caro, foi notável: descrispou o país, provando que a política pode conviver com o bem-estar, que não temos de andar sempre "às turras" uns aos outros, que é possível falarmos todos, para além das nossas diferenças".

Marcelo completou, enfático: "Você foi genial, homem! E criativo até dizer chega! Já no ano passado tinha inventado o encontro do dr. Paulo Portas com o dr. António Costa, através de uma porta entre as traseiras da Capela do Rato e a sede do PS. Sabe que eu telefonei ao pároco da capela para saber se a porta realmente existia?" Ferreira Fernandes sabia, mas era um cioso respeitador do segredo de confissão de todos os priores do Rato.

"Ora bem, o que lhe queríamos propor é muito simples: que passe a trabalhar para nós!", rematou Costa. O jornalista teve um baque interior: o que é que aquele "nós" significava? Seria majestático ou a sério - trabalhar para o primeiro-ministro e para o presidente? E "trabalhar" em quê? Ele era um escriba a soldo exclusivo da sua própria liberdade, não vendia a pena a interesses, era conhecido por não passar "recados". O que é que, afinal, "aqueles dois" queriam?

"Você já percebeu, Ferreira Fernandes, que eu e o senhor primeiro-ministro, apesar das nossas diferenças, temos vindo a tentar que o ambiente político do país se distenda. Nem toda a gente ajuda, como já percebeu, mas, pela nossa parte, faremos o que for possível. Ora os seus textos caíram como sopa no mel naquilo que estamos a procurar fazer. Mais: você tem uma capacidade criativa extraordinária, é capaz de desenhar cenários de entendimento insuspeitados, ver muito adiante, onde nós não vemos."

A tirada de Marcelo fora dita com evidente sinceridade. E óbvia simpatia. Mas o jornalista continuava sem perceber onde é que a conversa podia levar.

Foi então a vez de Costa: "O que nós gostávamos de lhe propor é que o meu amigo tirasse uma sabática do jornal ("eu falo com o Daniel", ouviu-se de Marcelo) e se dispusesse a dar-nos, em 'full-time", ideias para entendimentos possíveis, dicas sobre temáticas em que pudéssemos pôr em diálogo setores até agora antagónicos. Coisas criativas, inesperadas! Um banco de ideias, enfim!" (Ouviu-se a risada de Marcelo: "Mais um banco!")

"Claro que ninguém lhe vai pedir para pôr os colégios privados aos beijos ao Mário Nogueira, ou o dr. Manuel Monteiro aos abraços ao dr. Portas", acrescentou o presidente, jovial, franzindo o sobrolho, por um milésimo de segundo, quando Costa fez o aparte jocoso: "Já se viu pior!".

"Pense nisso, meu caro Ferreira Fernandes, pense nisso! Depois se combinarão os aspetos logísticos, com o David e o Paulo Magalhães", concluiu o primeiro-ministro, levantando-se do sofá, simultaneamente, com o presidente.

Ferreira Fernandes saiu atordoado do encontro. Num velho reflexo de clandestinidade, voltou à esquerda e viu-se a subir a Borges Carneiro, remoendo uma imensa perplexidade e com uma vontade imperiosa de tomar, sei lá!, um chá. No topo da rua, entrou nas "Tias" e ali encontrou um amigo, que vive por perto, a quem contou a odisseia que acabara de atravessar. Só que esse amigo não estava ajuramentado para não revelar segredos, como é o caso dos confidentes dos priores do Rato.

E as uvas, meus senhores?


As uvas são a maior riqueza do Douro. Por muitas e boas razões, da economia à organização do território, da cultura à gastronomia, nunca provavelmente se falou tanto de uvas, de castas, de novas e belas adegas pelas várias áreas da região do Douro. O vinho está na moda, o enoturismo cresce a olhos vistos, o discurso sobre o Douro nunca foi tão desenvolvido e trabalhado, agora com as vindimas aí à porta. Vivam as uvas!

E, contudo, experimentem pedir uvas, como sobremesa, nos restaurantes da zona do Douro, os mesmos onde nos mostram cardápios com dezenas de vinhos. "Uvas?! Não temos!", respondem, em esmagadora regra, como se estivéssemos a pedir uma fruta exótica. Mas, claro, kiwis, papaias e mangas não faltam. (Já tenho perguntado a alguns empregados se essas mangas são de Alpaca, que lhes explico ser uma zona espanhola onde são produzidas as melhores do mundo...). Uvas é que nem vê-las! Pergunta-se porquê e ninguém sabe responder.

Há uns anos, tive uma experiência similar na Madeira (não posso garantir que as coisas não tenham entretanto mudado): pedia bananas como sobremesa e em nenhum restaurante do Funchal conseguia comê-las. Mais sorte tenho tido nos Açores, onde o abacaxi surge geralmente em muitos restaurantes. Nunca experimentei pedir cerejas no Fundão...

Para concluir: são precisas uvas à venda nos restaurantes do Norte, meus senhores!

segunda-feira, agosto 29, 2016

A "estória"

O meu amigo e distinto gastrónomo Virgílio Nogueiro Gomes, no seu imperdível site, acaba de anotar que nasceu na Cruz Quebrada um restaurante chamado "Estória", onde, pelos provados, se comerá bem (lá irei, a seu tempo). Já havia, nos arredoresdo Procópio, o "Estórias da Casa da Comida" (onde não se come nada mal, mas que é bem carote). 

Mas isto, hoje, nada tem a ver com comida. É apenas a propósito da "estória", um termo que me encanita supinamente. 

Há uns anos, no blogue "Delito de Opinião", o Pedro Correia fez uma listagem das palavras de que não gostava. Não sei se o "estória" dela constava. Achei então piada ao exercício e cheguei a pensar fazer o mesmo. Mas, depois, meteu-se-me a aposentação pelo meio e, olhem!, deixei de ter tempo para essas coisas...

Na minha lista pessoal de palavras detestáveis o termo "estória" permanece, de há muito, irremovível no topo das mais sinistras invenções neologistas da paróquia. 

É um termo que sempre ligo ao CPLPimbalhismo, uma corruptela saloia, a armar ao popularucho, à sem-cerimónia com a língua, usado para qualificar uma historieta que hesita (as mais das vezes com vergonhosa razão) em se promover como se fosse uma coisa séria. Os "estoriadores" estão na minha lista negra! 

Se alguém um dia me vir utilizar num texto a palavra "estória", agradeço que avisem as autoridades: será sinal de que já me "passei"...

Onze notas internacionais

1. E lá vai Dilma à vida, com poucos a chorarem-na e levando consigo o PT. Não houve golpe constitucional (as instituições funcionaram regularmente), mas houve uma evidente subversão do espírito do sistema, por uma enviezada parlamentarizacão do regime presidencialista, a colocar a política do lado do qual passou, de um momento para o outro, a soprar o vento popular. Temer, renegando sem vergonha o programa sob que foi eleito, foi o instrumento oportunista. Ficará na História, mas com adjetivos de que a família se não orgulhará.

2. Trump parece que cai nas sondagens mas Hillary Clinton continua a ter uma rejeição muito elevada. Levar uma figura como Farage para a campanha americana é a prova de que o exercício já passou os limites da racionalidade, depois de há muito ter atravessado os da decência. Por este andar, Marine le Pen ainda vai, um destes dias, "fazer uma perninha" a Washington.

3. O puzzle angolano toma um novo formato. Mais um. Um novo vice-presidente surge como o putativo sucessor de José Eduardo dos Santos. Já vimos este filme no passado e, em todas as ocasiões, acabou sempre de forma diferente da que se previa. Angola é um "happening" mas, goste-se ou não, a capacidade do presidente e do MPLA para segurarem o poder é notável.

4. Será desta que Rajoy forma um governo esável? É mais trágico do que parece, mesmo para nós, o penoso arrastar do processo político espanhol. Este impasse tem um preço imenso na credibilidade de um país que é importante para a Europa. O PSOE brinca com o fogo e com o seu futuro como partido do sistema. Já para o rei, esta prova de fogo veio cedo demais e, infeluzmente, revelou que não conseguiu criar uma magistratura de influência como a que o pai chegou a criar. É um péssimo sinal para a monarquia espanhola, podem crer.

5. Sarkozy não desiste de tentar regressar ao Eliseu. Em 2012, a França estava muito cansada dele e, francamente, duvido que tenha recuperado desse sentimento. Agora, "lepeniza" a cada dia discurso, tentando arrastar a respeitável direita democrática para um sinistro populismo, o que vai obrigar gente decente como Juppé a ir por outro caminho. Com Hollande a bater no fundo, fica a certeza de que a esquerda nunca votará em Sarkozy numa 2ª volta (como fez em Chirac em 2003). A presidente Marine é, assim, possível.

6. Erdogan está nas suas sete quintas. Arranjou um imbatível alibi para fazer uma limpeza interna e, como já previsto, arranjou um pretexto para "molhar a sopa" na Síria, para por ali desfazer as milícias curdas. Os EUA, que estão "desertos" para subcontratar esta guerra, aplaudem, devem estar a fornecer "intelligence" e reduzem a pressão para repatriar Gullen. Um belo favor de Obama a Hillary Clinton, que se preparava para fazer isto mesmo. Só há uma América: a dos interesses.

7. A última pedra no túmulo da Parceria Transatlântica foi posta há dias pelo ministro alemão da Economia. Como muitos previam, já não vai haver nenhum TTIP, o que marca um forte recuo protecionista no espaço euro-atlântico. "Much ado about nothing"? Resta saber o que os europeus farão se o preço do petróleo disparar de novo e precisarem do gás de xisto americano, que era a contrapartida pela liberalização do comércio.

8. Os europeus continuam a reunir em grupinhos, com Hollande a fingir de charneira e a tentar estar em todas. Umas vezes é o proto-diretório com a Itália, noutras mete-se a Polónia e recupera-se Weimar, finalmente o sul - que passa o tempo a dizer que "não somos a Grécia!" ou coisas parecidas a propósito de qualquer outro vizinho do lado de quem os mercados não gostem - vai também conversar à parte. Olhando para esta Europa, percebe-se agora melhor o sentido da palavra balcanização.

9. Os británicos revelam que não sabem o que fazer com o Brexit. Dá ideia que uma (já) maioria do país está arrependida da aventura em que Cameron (desaparecido em combate, para bem do país) irresponsavelmente o meteu. Theresa May parece tentar ganhar tempo e, curiosamente, depois da vergonhosa reação anti-democrática do lado do continente, até os "27" estão mais calmos, já percebendo que só os mercados comandam o "timing" da invocação do artigo 50 do famigerado Tratado de Lisboa. Resta saber se uma "mini-saída" é possível. Leia-se o "Economist" ou o FT para medir a perplexidade que por ali vai.

10. Hoje é o dia C (o terceiro) para medir as hipóteses reais de António Guterres vir a ser designado o próximo SG da ONU. O dia D virá em outubro, sob presidência russa do CSNU. Posso confessar um segredo?: nunca acreditei que as hipóteses do candidato português chegassem a ser tão elevadas. E que bom que era para Portugal,me para a diplomacia portuguesa (poderemos falar depois sobre isto), se Guterres fosse escolhido!

11. Exemplar, até agora, tem sido o comportamento de Augusto Santos Silva e do MNE no caso dos fedelhos agressores iraquianos. Palavras certas, tempo exato, decisões acertadas. É uma grande e experiente máquina a das Necessidades, com séculos de bom-senso e de excelente serviço público. Sei que sou suspeito, mas sinto orgulho em ter feito parte dessa grande escola de sentido de Estado.

O mês Timberland


Com imensa pena minha, está prestes a chegar ao fim o meu mês Timberland. Há vários anos (mesmo muitos) que isto se repete.

Aí por finais de julho, aviados os últimos compromissos profissionais (este ano excecionalmente com o mais do que agradável interlúdio da "presidência de honra" das Festas de Viana), há quatro semanas em que só calço Timberland (e não estou a fazer a menor publicidade à marca, note-se), do vetusto modelo "classic boat". Sempre sem sombra de meias, claro!

Tenho hoje três pares, o mais antigo dos quais já com mais de uma dezena de anos, prestes a ser convocado para o museu da marca. Esse par mais antigo, o "três" (como íntima e carinhosamente lhe chamo), é o que ainda vai à praia, apanha água salgada ou das piscinas, faz de sandálias que não uso, tendo lá por dentro, sob as palmilhas quebradiças, alguma areia que eu creio que já fossilizou. Em tempos, o "três" deu voltas da Amazónia ao Cambodja, fez as praias da Normandia, andou pela Praça Vermelha e por Sharm el-Sheikh, pisou coisas tão longínquas como o Usebequistão ou Bornes de Aguiar (Não foram ontem à festa anual de Bornes? Nem sabem o que perderam!). Esse par está num estado lastimoso, mas isso não me impede de vigiar algumas sinistras tentativas de mo fazerem desaparecer, nas cruéis limpezas anuais às sapateiras. Mas ele, o velho "três", ainda continua, orgulhosamente, a ser aquele par de Timberland que os meus pés reconhecem como o seu mais amigo aconchego, desde há muitos anos.

No dia-a-dia destes dois últimos Verões, o "dois", um par que também ele já teve melhores tempos, mas que ainda aí está para muitas curvas, é o todo-o-terreno que me espreita logo à saída do banho, faz o percurso titubiante até ao "expresso" matinal que me acorda e, depois, acompanha-me quase todo o dia. Só este ano, andou do Pereira de Tróia aos ágapes numa certa quinta de Portalegre, fez milhares de quilómetros em viagens de automóvel, tem calcorreado cidades e aldeias, pisa os cafés, da Caravela de Viana ao Aurora de Chaves, corre as mesas da Gomes ou sustenta-me no balcão da Tosta Fina, em Vila Real, onde também sempre me acompanha aos rissóis e às pataniscas do Lameirão (um Vallado Reserva 2007, guardado para mim pelo Eleutério, fez-me no sábado ganhar o mês). Ainda há horas o "dois" foi "almoçar" ao Vidago (quem é daqui diz "ao Vidago", o pessoal da mourama diz "a Vidago") e passeou em Tourencinho e em Zimão. E está aqui ao meu lado, como mui fiel sapato, onde o meu pé entra sempre como a mão numa luva, sem sequer lhe tocar nos cordões, prestes a levar-me daqui a minutos para um pica-pau noturno no Tralha.

É, contudo, na perspetiva de deslocações a alguns restaurantes mais na moda ou a jantaradas a casas alheias que o "dois" começa, nos dias (mais nas noites) de hoje a ser objeto de alguma pouco subliminar discriminação. Não que isso assim aconteça por minha vontade, mas por uma suave imposição doméstica. E é então que entra em cena o último parceiro da trupe, o "um". O "um" é um par Timberland mais "finaço", que já comecei a perceber que me é sugerido ("não vais com esses sapatos velhos, por favor!") quando a camisa ou o polo são de certa marca. Com um Gant ou um Paul & Shark, ou mesmo com alguns Lacoste (pré Filipe Oliveira Batista), ainda me aceitam que leve o "dois". Porém, se acaso opto por um qualquer cavaleiro da Ralph Lauren, por um Boss, um Armani ou mesmo por um Tommy Hilfiger, é certo e sabido que logo surge a "pressãozinha" para que o "um" seja o par escolhido. E eu, que sou bem mandado, lá vou na onda, porque há batalhas que não valem um sobrolho feminino cerrado.

Enfim, é a vida! Com o "um", com o "dois" ou com o "três", a verdade é que só me sinto bem em férias com os meus Timberland. Se isto der para publicidade deles, não me importo nada! Bem merecem!

domingo, agosto 28, 2016

O general e o bispo


Será verdadeira, a historieta? É demasiado "boa" para isso, mas não resisto a contá-la, tal como ma relatou um amigo, há dias.

O episódio ter-se-á passado na estação ferroviária de Vila Real, no final dos anos 50 da última centúria. O general Aníbal Vaz, estimável vila-realense que muito ajudou os seus conterrâneos com dificuldades "lá em baixo"  - leia-se, em Lisboa -, figura que Salazar cuidou em afastar do comando da GNR em 1961, por suspeitas de implicação no "golpe Botelho Moniz", estaria fardado e com condecorações a pingar-lhe do peito, à espera de um qualquer outro dignitário, prestes a chegar de Chaves, no velho comboio da linha do Corgo.

Na plataforma, preparado para viajar em direção à Régua, primeira etapa para Lisboa, estava também o sempiterno bispo de Vila Real, dom António Valente da Fonseca, figura avantajada, que lembro ter a forma de um daqueles sinos que antigamente se usavam nas mesas familiares para chamar as "creadas", vestido da clássica púrpura reluzente dos estilistas vaticanenses.

O comboio tardava a chegar. Dom António, que conhecia bem o general, decidiu uma graçola, fingindo confundi-lo com um "factor de primeira" (uma das classes que sempre achei mais "prestigiantes" na hierarquia ferroviária nacional):

- Ó senhor factor! Então o comboio chega ou não chega? Isto nunca anda a horas?

O bom do general Vaz não se ficou e, com a confiança que se dizia ter com a excelência reverendíssima local, terá retorquido:

- Já vem na Cigarrosa, está quase a chegar! 

E o olhando o saiote empinado pela barriga proeminente do bispo, acrescentou:

- Eu, se fosse a si, "minha senhora", nesse seu "estado interessante", com os solavancos do comboio, talvez não ousasse fazer a viagem...

O Raposo e o lobo

Há poucos meses, um cronista chamado Henrique Raposo, figura de uma direita biliosa, muito ao estilo de certa "produção" da Universidade Católica, a que o "Expresso" dá jubiloso e regular acolhimento, escreveu um pequeno livro sobre o Alentejo, que provocou uma celeuma dos diabos.

Porque não faço parte da escola do "não li e não gostei", li o livro, achei-o bem escrito, naquele género do frontal-chocante de quem quer fazer nome pelo escândalo e - surpreendam-se os meus amigos - recomendei-o a muitas pessoas. 

Nesse texto, Raposo vinga-se da sua ascendência alentejana, num exorcismo autoflagelatório das origens familiares comunistas, de que se sente tentado a renascer num indiferenciado subúrbio lisboeta, a modos que a criar credibilitação para a ascensão a um mundo a que não chegou pelas duas outras vias possíveis: o renegar do extremismo esquerdalho ou o suporte confortável dos apelidos.

A mim, o livro sobre o Alentejo agradou-me, confesso, porque nele são ditas algumas verdades e, em especial, porque é profundamente heterodoxo face a uma estafada mitologia alentejofílica - muito UCP, muito Catarina Eufémia, muito Zeca e muito Grândola -, peditório para o qual já dei há muito.

Ontem, no "Expresso", Raposo decidiu aventurar-se longamente sobre o fenómeno muçulmano, sobre o multiculturalismo e a questão da integração. Até aí tudo bem: não há bicho careta, mais intelectual ou antropólogo impressionista e amador, que hoje não mande por aí bitaites sobre burkas, jilabas e babuchas. 

Só é pena, não sendo contudo supreendente, que, sobre Sartre, Edward Saïd e a esquerda, no tocante à questão argelina, Raposo não se tenha eximido de ser intelectualmente desonesto, faccioso e falso. Com o "Expresso" a dar-lhe alegre cobertura ao topete.

Isto tem de ser dito. E eu digo-o.

sábado, agosto 27, 2016

Sorriso



Há sorrisos (de mulher, claro) que fazem o meu dia ("make my day", como dizem os anglosaxónicos, fica melhor). Às vezes (não muitas), entro num café, numa loja ou num serviço público e, de repente, por detrás do balcão, há uma miúda ou uma mulher que sorri de uma forma que nos ilumina o instante. Frequentemente, nem sequer é muito bonita, nem tem uma "graça" por aí além, mas há  naquela forma de colocar a expressão do rosto, algo de lindíssimo, de luminoso, mais sereno ou mais expressivo, mas sempre brutalmente natural, que logo alegra o ambiente e nos faz gostar ainda mais da vida. Porque sou tímido (é verdade!) e temo poder ser mal interpretado ("olha o velho, a fazer-se ao piso!"), suscitando algum comentário desagradável de alguém à volta, muito raramente ouso revelar à pessoa o prazer que esse seu sorriso acarreta para o bem-estar do resto do meu dia.

Ao olhar esta manhã a entrevista que o DN traz com Catarina Portas, lembrei-me daquele que é hoje um dos mais belos sorrisos de Portugal (e não me venham com as parecenças com Marion Cotillard, por favor!). Um dia, vou arranjar coragem para lho dizer.

RT Quê?


André Macedo foi um bom diretor do "Diário de Notícias". Como leitor atento, embora quase nos antípodas da sua leitura político-económica dos factos, tive sempre gosto em ler o jornal sob sua direção - aliás, com uma excelente equipa coadjuvadora.

Um dia, foi divulgado que ia sair do jornal para integrar a direção de informação da RTP. Fiquei um pouco surpreendido, porque pensava que essa direção da empresa já estava completa. Pelos vistos, estava enganado.

Pouco depois (corrijam-me p.f. se estou errado), li um comunicado do Conselho de Redação da RTP que, por unanimidade, afirmava ser contra essa nomeação, adiantando diversas e razoáveis razões. Esse comunicado, muito justamente, salvaguardava a consideração profissional que o jornalista lhe merecia.

Leio agora que André Macedo vai assumir tais funções.

Já sei! O parecer do Conselho de Redação não é vinculativo.

Quer isto dizer que uma posição, por unanimidade, do Conselho de Redação (eleito por todos os jornalistas) não tem mesmo a menor consequência?

Que isto se passe numa empresa privada, sujeita às lógicas do capital mandante, ainda vá que não vá! Agora numa empresa pública, do Estado, é pacífico que a opinião formal dos representantes dos jornalistas seja 100% irrelevante?

Assim, pergunto: será excessivo se eu concluir que a administração da RTP se está, em absoluto, "nas tintas" para a posição unânime do Conselho de Redação da empresa?

Será assim ou serei eu quem está enganado?

E, nestas condições, ninguém tuge nem muge lá pela RTP? Caramba! Isto parece a paz dos cemitérios!

Na prática, ajudem-me, por favor, a compreender: qual é a diferença entre o papel dos jornalistas da RTP hoje, no tocante à organização e gestão da sua estrutura redatorial, e aquele que tinham no tempo de Ramiro Valadão?

Não estou a brincar!

sexta-feira, agosto 26, 2016

Portugal das pequeninas

Não vale a pena esconder que, em alguns setores portugueses, a palavra “negócios”, que figura no título deste jornal, tem ainda hoje uma carga, se não negativa, pelo menos desencadeadora de alguma suspeição. Numa certa cultura nacional, não tão minoritária quanto isso, ganhar dinheiro, obter lucros e acumular riqueza arrasta atrás de si a imagem de um comportamento ferido de alguma ilegitimidade. Interessará menos escavar nas razões profundas dessa atitude – históricas, políticas e culturais – e muito mais tentar perceber em que medida isso tem implicações no futuro do país.

Convirá começar por notar que, em particular, a expressão “grandes empresas” surge fortemente diabolizada por esse preconceito. Em certos setores, uma profunda aversão ao “negócio” é absolvida, contudo, pelo endeusamento das “pequenas e médias empresas”, vistas estas como a parte “aceitável” do mundo empresarial.

As PME funcionam, no imaginário coletivo, como o “comércio de bairro” na sua popular luta de classes contra as “grandes superfícies”. Este raciocínio tem uma debilidade: esquece deliberadamente que uma PME só o é porque não conseguiu atingir o legítimo objetivo de ser “grande”. Ninguém cultiva masoquistamente uma espécie de nanismo empresarial.

Dito isto, e como é óbvio, as PME são, nos dias de hoje, responsáveis por uma fatia muito substancial do emprego, do volume da exportação e, por essa via, uma alavanca essencial do tecido económico do país. E o Estado tudo deve fazer para as apoiar, para lhes dar condições para crescerem, para se afirmarem no plano externo – onde estão as oportunidades que o escasso mercado interno nunca será capaz de lhes proporcionar. Diria mesmo mais: a prioridade das prioridades, em matéria de promoção do tecido empresarial deve ser, sem a menor das dúvidas, o mundo das PME.

O conceito, aliás, esconde coisas muito diversas: a esmagadora maioria das PME são micro-empresas, as mais das vezes de raiz familiar, fortemente sensíveis às ondas de crise. Grande parte delas atravessa hoje dias muito difíceis, por falta de capitais próprios, contando-se entre as principais vítimas da debilidade da banca sedeada em Portugal. Também por aqui deve passar a atuação do Estado e, perante o cenário desolador da maioria da banca privada – grande parte da qual hoje muito refratária ao crédito às PME -, seria desejável que a orientação futura da política de crédito da Caixa Geral de Depósitos pudesse vir a colmatar esse défice.

Este “Portugal das pequeninas” empresas em que vivemos, sendo uma realidade nos dias de hoje, não augura, contudo, nada de bom para o futuro. Goste-se ou não, e com todos os efeitos perversos que teve, a globalização veio para ficar. A alternativa, aliás, seria uma reversão protecionista, trágica para uma economia aberta como a nossa. E, nesse quadro global, se queremos um país competitivo, o nosso tecido empresarial tem de evoluir, de ganhar escala, de conseguir afirmar-se externamente – lá onde estão os grandes investidores, onde há acesso ao crédito e onde há espaços e mercados para crescer. É o que têm feito algumas grandes empresas nacionais.

Se pretendemos ser no futuro um país próspero, temos que ter mais e melhores grandes empresas a atuar “lá fora”. Recordo-me do governo de António Guterres, de que tive o gosto de fazer parte, ter impulsionado esses ganhos empresariais de escala. Nos dias de hoje, algumas grandes empresas nacionais, a maioria das quais com muito escasso apoio do Estado, continua a batalhar nos mercados externos. Que o país ainda as não sinta orgulhosamente como “bandeiras”, como acontece em todo o mundo desenvolvido, é algo em absoluto incompreensível.

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Negócios")

Volta a Portugal

Sou um viciado em Portugal. Talvez pelo facto de ter vivido muitos anos no estrangeiro, habituei-me, em férias, por décadas, a percorrer o país em todas as direções, a visitar aldeias recônditas, a testar “casas de pasto” recomendadas por amigos e conhecidos, a descobrir novas estradas e paisagens. (Querem uma dica, de uma experiência de anteontem?: o belíssimo e surpreendente percurso no IP 2, pela Serra de Bornes, entre Macedo de Cavaleiros e Vila Flor).

Perco-me com gosto por ruelas de vilórias que, podendo ter pouca graça, apresentam por vezes pormenores arquitetónicos surpreendentes, igrejas ou muralhas interessantes. Sinto-me muito bem nesse mundo dos “cafés centrais”, dos largos com reformados à sombra, de pequenas bombas de gasolina onde somos tratados como numa mercearia. Adoro entrar nas tabacarias esconsas das terras pequenas, só com meia dúzia de livros à venda, alguns com ar amarelecido pelo sol, onde encontro quase sempre uma coisa que me “fazia imensa falta”. Raramente resisto a dar uma espreitadela naquilo a que chamo as lojas “de tudo”, que oferecem coisas improváveis e nos recordam o que há muito nos era “essencial” sem disso nos apercebermos. (Outra dica: visitem a “Casa Calado”, no Cabo da Bila, em Vila Real, para um deslumbre garantido).

Esse Portugal que me fascina continua por aí e eu vou continuar a frequentá-lo, com o mesmo interesse de sempre. Mas não posso deixar de notar, com algum desgosto, que ele convive com as rotundas que o mau gosto autárquico atulhou de uma estatuária inenarrável, com pavilhões multiusos desertos, com muita obra pública que o bom senso deveria obrigar a levar à barra do tribunal do bom gosto alguns irresponsáveis por atentados à paisagem. 

Fico sempre triste quando comparo o cenário televisivo da Volta à França com o da sua congénere portuguesa. Deprimem-me os nossos muros caídos, as ruinas das casas velhas e das obras por acabar, as cancelas e portões decadentes, os letreiros pendentes, desbotados ou anunciando eventos com anos, a vegetação selvagem nas bermas, hoje viúvas dos saudosos “cantoneiros”, as lixeiras a céu aberto, as pedreiras chocantes, o mau gosto e o caos arquitetónico (é quase tão caro construir bonito como feio), a obscena poluição visual dos milhões de anúncios, a ridícula multiplicação da sinalética rodoviária nas localidades, a tragédia de alguma iluminação urbana, numa diversidade regida por misteriosos critérios estéticos, etc.

Portugal necessita urgentemente de uma profunda sindicância estética, de uma varredela cívica, sob um normativo que consiga acabar o que está por acabar, limpar e fazer limpar esse imenso mundo de descaso, de incúria, de lixo paisagístico, que afeta a imagem de um país magnífico, agradável e simpático. E não é preciso muito: basta algum bom gosto, boa vontade e orgulho em cuidar do que é nosso. 

(Artigo que hoje publico no "Jornal de Notícias")

Genial

Devo dizer que, há uns anos, quando vi publicado este título, passou-me um ligeiro frio pela espinha. O jornalista que o construiu deve ter ...