domingo, novembro 15, 2015

Viagens aéreas


Cada vez mais, as viagens aéreas estão transformadas num tormento, com as crescentes exigências de segurança. Depois da tragédia de Paris, posso crer que esses controlos devem estar hoje no máximo, com toda a inevitável incomodidade que isso provoca em quem viaja. Cada vez tenho menos paciência para aquela cena de tirar os computadores, para os saquinhos dos líquidos, para os sapatos e os cintos e tudo o resto que tilinta. Mas é inevitável, para quem tem de viajar.

Nos dias que correm, há que ir para os aeroportos com uma imensa antecedência e, no caso das viagens entre Lisboa e Porto, prefiro cada vez mais os comboios, de que não gosto por aí além, à ideia de duas "revistas" desagradáveis. Ainda no que toca a aviões, dou-me por feliz por não ter de fazer, nas próximas semanas, duas deslocações de trabalho que estavam planeadas ao estrangeiro. 

Mas nem sempre foi assim. Recordo-me bem da minha primeira ida aos Estados Unidos, logo no início dos anos 70. O "shuttle" aéreo entre Washington e Nova Iorque funcionava da seguinte forma:

1. Entrávamos no aeroporto e dirigiamo-nos, sem qualquer reserva prévia, à porta de embarque. Aí, num balcão, colocávamos a bagagem para despachar.
2. Recebíamos uma senha numerada, para recuperar a bagagem à chegada.
3. Davam-nos uma outra senha, também numerada, mas de outra cor, para embarcar.
4. Não havia lugares marcados, era "free sitting", com a ordem de chamada para o avião pelo número.
5. Pagava-se o bilhete durante a viagem, como hoje acontece com as compras a bordo.
6. À saída do avião, mostrávamos o talão eram-nos entregues as malas.

Controlo de metais, identificação dos passageiros, revista de bagagens – nada disso existia nesses voos internos.

Agora, vou contar-lhe uma experiência mais recente, cerca de dois anos, num determinado aeroporto. Vou referir os controlos por que passei:

1. Entrada do aeroporto: radiografia de toda a bagagem e controlo de metais nas pessoas que acediam ao hall, mesmo que não fossem viajar.
2. Balcão de "check-in": apresentação do passaporte e da reserva. Recebemos o cartão de embarque.
3. Balcão, ao lado, de "conferência de documentos": apresentação do passaporte e do cartão de embarque. Carimbo no cartão de embarque. Recebemos o boletim de saída, para preencher.
4. Polícia de fronteira: verificação e carimbagem do passaporte, do cartão de embarque e entrega do boletim de saída preenchido.
5. Segurança: radiografia da bagagem de mão, controlo pessoal de metais, controlo separado de líquidos, de computadores e telemóveis.
6. Alfândega: apresentação do passaporte e cartão de embarque. Conferência apenas.
7. Porta de embarque: apresentação do passaporte e cartão de embarque, que nos é devolvido. Registo informático do passageiro.
8. Início da "manga" (a três metros do controlo anterior): conferência do passaporte e cartão de embarque, deste ficando retida a parte mais larga.
9. Final da "manga", junto à porta do avião: um funcionário faz a abertura e verificação manual de toda a bagagem de mão.
10. Também no fim da "manga", junto à porta do avião: outro funcionário procede à revista manual, com detetor de metais, do vestuário.
11. Já dentro do avião: é verificada por um funcionário a conformidade do talão correspondente ao assento com o passaporte.

Uma nota final: este caso passou-se no aeroporto da capital de um país muçulmano.

As viagens aéreas já não são o que eram! Com justificada nostalgia se pode delas dizer: "bons velhos tempos!"

sábado, novembro 14, 2015

Atentados em França (2)


O que disse à TSF sobre a "confusão" procurada em certos países do centro e leste europeus entre o terrorismo e os refugiados, bem como sobre o fracasso das medidas preventivas para evitar este tipo de atentados. 

Os ataques em Paris


Deixo aqui o que disse no telejornal da TVI.

Paulouro das Neves


Chega-me a notícia da morte do embaixador Paulouro das Neves, alguém que foi, sem o menor exagero, um dos mais brilhantes diplomatas portugueses das últimas décadas. Era, além disso, um grande homem de bem e de caráter.

Houve dois ou três nomes da carreira diplomática portuguesa - não mais! - sob cuja orientação gostaria de ter trabalhado, pela certeza antecipada de que, com eles, o que aprenderia me iria ajudar a ser um melhor profissional. José César Paulouro das Neves era um deles.

A boa "fama" de Paulouro - como as Necessidades o conheciam - precedeu o nosso primeiro encontro pessoal. Lia-lhe a excelente "telegrafia" (as comunicações que enviava ao ministério) e amigos falavam-me dessa figura suave, muito culta, com um sentido de equilíbrio que tornava as suas análises um modelo de bom-senso e rigor. Todos quantos com ele trabalhavam ficavam seus fãs, pela pedagogia não impositiva que  sabia transmitir e pela humanidade que o seu trato revelava. E, naturalmente, já lhe conhecia a "linhagem" democrática, de quem estava ligado, pela família, ao histórico "Jornal do Fundão".

Tive as primeiras conversas com Paulouro das Neves em Moçambique, quando um dia por lá passei, em trabalho, nos anos 80. Cruzámo-nos depois, muitas vezes, ao longo do ciclo dos grandes postos que o seu excecional percurso profissional amplamente justificou: Madrid, representação junto da União Europeia, Paris e Roma. Em todo o lado, ficou a marca de um homem e de um profissional excecional - e quem me conhece sabe que afirmo isto há vários anos. Era também um excelente conversador, uma pessoa sorridente e amável, disponível e atento aos outros.

Depois da sua aposentação como embaixador, Paulouro das Neves colaborou com o presidente Jorge Sampaio e dedicou-se ao ensino universitário tendo, há três anos, publicado um livro notável sobre a diplomacia, que vivamente recomendo, e que, inexplicavelmente, passou sem grande nota pública: "Rituais de entendimento - teoria e prática diplomáticas". Há um ano, tive a honra de ser convidado a suceder-lhe na universidade onde lecionava.

Recordo que, um dia, numa casual passagem minha pela embaixada em Paris, que ele então chefiava e onde eu o fora cumprimentar, pressentiu-me a escrutinar o seu pequeno cabinete, aquele que então cabia ao embaixador, na geografia bizarra que sempre foi a daquela chancelaria: "Está surpreendido? O gabinete do embaixador em Paris é, de longe, o menos digno de todas as grandes embaixadas portuguesas. É uma pena, mas é assim mesmo!". E era pura verdade. Fiquei com isto na memória e, quando eu próprio fui embaixador em Paris, e aproveitando a crescente "desertificação" humana da casa, consegui levar a cabo as obras necessárias para dar ao representante diplomático português o espaço de trabalho e representação bem mais adequado de que hoje dispõe. Tive pena que ele nunca tivesse o ensejo de visitar esse novo espaço, de que seguramente teria gostado, ocasião que aproveitaria para lhe oferecer um almoço na "Brasserie Lipp", um ambiente que ele tanto apreciava e onde, por mais de uma vez, celebrámos a nossa amizade.

Paulouro das Neves esteve muito doente, há cerca de dois anos. Recuperou de forma notável, parecia renascido e, depois disso, com Jorge Sampaio e um pequeno grupo de amigos, organizámos com ele um simpático almoço em Sintra, de que guardo uma fotografia de comum boa disposição. Disposição que hoje perdi, ao saber do seu infeliz desaparecimento.

À sua família, deixo a expressão sentida do meu pesar.

Paris

1. A França merece toda a nossa solidariedade. A França paga, nestes ataques, o facto de ser o país europeu mais determinado na luta contra o Estado islâmico e organizações similares a ele ligadas. O terrorismo nunca é totalmente evitável, mas os atentados de ontem revelam falhas flagrantes no sistema de "alerta precoce" de um país que sabia ser o principal alvo europeu dos terroristas islâmicos.

2. Estes ataques, pelo seu caráter coordenado e eficaz, demonstram uma sofisticação fora do vulgar. Significam que, no seio da União europeia, o Estado islâmico dispõe hoje de uma rede de notável capacidade, seguramente baseada em cidadãos nascidos no território europeu  mas cuja "pátria" afetiva está algures. Lutar contra inimigo "da porta ao lado" será sempre uma tarefa muito complexa, se se pretende preservar a sociedade de uma onda de islamofobia e de ódio étnico-religioso. 

3. O acordo de Schengen, que representou uma conquista da maior importância para a Europa, na criação de um grande espaço de liberdade de circulação, pode estar ferido de morte. Já antes destes atentados se ouviam as vozes contra Schengen. Agora, os adeptos das fronteiras vão emergir como cogumelos, muito embora, se se provar que, neste caso, a maioria dos terroristas são franceses, as fronteiras valham de pouco. 

4. Não é despiciendo o efeito que estes atentados venham a ter na vida política francesa, com as forças extremistas a beneficiarem de uma onde de medo, que afeta a racionalidade e abre caminho à desconfiança e aos ódios fáceis. Quero crer que a França, onde o culto das liberdades é muito forte, saberá resistir às pulsões "maccartistas" e saberá preservá-las no essencial, na vaga securitária que vai seguir-se. O objetivo dos terroristas é perturbar o nosso sistema de vida, torná-lo tributário dos medos que nos infundem. Quando nossa liberdade vier a ser posta entre parêntesis por virtude de ataques como estes, os terroristas terão ganho uma importante batalha.


sexta-feira, novembro 13, 2015

Helder


Às vezes, sinto algum embaraço pelo facto de não poder estar com amigos que lançam livros, que são "estrelas" de um evento, que surgem na ribalta lisboeta. Embora estando por cá, as agendas impossibilitam que nos encontremos. 

O Helder Macedo está por Lisboa e eu não o "consigo" encontrar. Hoje, podia ir vê-lo à "Barraca", às 18.30, mas acontece que estarei em Santarém, noutro compromisso.

De manhã cedo, o David Dinis, na sua "newsletter", dizia que o Helder "é uma espécie em vias de extinção: culto, cosmopolita, elegante, sedutor, audacioso - e implacável até ao osso". E chamava a atenção para esta entrevista.

Neste ano em que o Helder faz 80 anos - ano de festa para ele, para a Suzete e para todos os seus amigos -, e não o tendo encontrado em Lisboa, prometo solenemente que, daqui a dias, irei expressamente a Oxford, para estar presence na grande homenagem que lhe é dedicada.

Para quem não conhecer a escrita mágica do Helder, recomendo que comece por este "Romance" que, por acaso, não o é... 

Paula Vieira Branco


Chegou a notícia da morte da Paula Passos de Gouveia Vieira Branco. Parte cedo, como cedo tinha terminado uma carreira diplomática que se sabia que ia ser brilhante, travada por uma doença contra a qual pouco se pode fazer, a não ser esperar. Para quem a conheceu, fica a imagem de uma pessoa muito inteligente, interessante, culta, com um espírito aberto. Uma mulher bonita, elegante. E, como os anos mostraram, também uma mulher muito corajosa, que lutou como e quanto pôde. Nos últimos anos "viamo-nos" no Facebook, uma janela para o mundo em que ela cultivava algumas das suas muitas amizades. Deixo ao Zé um abraço que é extensivo a toda a família. E esta imagem da nossa Tapada.  

Fernando Pinto


Não sei qual vai ser o futuro da TAP. Qualquer que ele seja, quero deixar aqui uma nota de profunda admiração pelo trabalho feito na companhia por Fernando Pinto e a sua equipa. Como embaixador de Portugal, tive o privilégio de acompanhar, e de dar o meu modesto contributo, para aquilo que foi uma extraordinária expansão da ação da TAP no Brasil, feita de visão e grande profissionalismo. Como português, sinto que devo um agradecimento muito sincero a Fernando Pinto por tudo quanto fez pela TAP, enquanto empresa pública.

A última bala


O país aguarda o que o chefe do Estado irá dizer, na sequência da queda do governo minoritário PSD/CDS. Há algo de ironicamente trágico na situação de Cavaco Silva: a mais importante decisão que teve de tomar durante o seu mandato surge quando já não dispõe de poder de dissolução do parlamento.

O presidente está na incómoda situação daquela figura que, nos filmes, só tem uma bala para se defender. Não pode falhar o tiro, tanto mais que o ciclo político lhe não dará mais nenhuma oportunidade para retificar o que agora vier a fazer. Cavaco Silva já percebeu que, quer ele goste quer não, a principal marca que deixará na vida política portuguesa será a que vai decorrer dos efeitos da decisão que vier a assumir nesta conjuntura.

De Cavaco Silva se dizia que, com orgulho, afirmava ser alguém que “não tem dúvidas e raramente se engana”. Talvez nesta linha, e para que o país disso ficasse bem ciente, vimo-lo anunciar, que tinha “todos os cenários estudados”. Ainda bem! Isso legitima que possamos esperar, não apenas uma rápida resolução da crise, mas igualmente uma sábia saída, em particular bem ponderada nos seus efeitos, para o impasse entretanto criado.

Recordo que, perante o resultado eleitoral, o presidente reagiu com estranho destempero, como se estivesse a passar um raspanete a quem “não votou bem". O discurso, lido como uma provocação à esquerda, favoreceu o raro caldo comum de cultura de diálogo que germinava no seio desta. Duvido que fosse este o efeito pretendido pelo presidente que, com algum irrealismo e até deselegância, pareceu procurar potenciar divisões no seio dos socialistas. Corrigiu a atitude na tomada de posse do breve governo, esperando-se agora que não recue nessa postura menos dramatizada, mais consonante com a responsabilidade de alguém que deve saber que qualquer palavra sua é escrutinada com atenção na ordem externa.

É que o país vive um tempo em que a fragilidade da sua situação económica está ainda muito dependente do humor dos mercados. Não devem ser estes a determinar as decisões de escolha do exercício democrático, mas é obrigação patriótica mínima dos atores políticos tentar evitar que a guerrilha interna fique ao serviço de uma imagem de instabilidade, que acabe por afetar os interesses externos de Portugal. Se aos partidos é legítimo pedir que tenham isso em atenção, para o chefe do Estado essa é uma exigência básica.

A situação atual, para Aníbal Cavaco Silva, deve assemelhar-se a um beco. Mas só se pode sair de um beco recuando. Ir em frente, significa ir contra a parede. Concedo que o leque das opções que o presidente tem perante si não é brilhante. Escolher entre o menor dos males não deve ser estimulante. Mas é o que tem de saber fazer. O país aguarda.

quinta-feira, novembro 12, 2015

O "blazer"


Eram duas figuras masculinas, um tanto caricatas. Dois alemães imensos, na casa dos cinquenta e tantos anos. Com um aspeto bizarro. Um deles, loiro, tinha uma t-shirt com menção a Chipre, creio que com um sol desenhado. O outro recordo que tinha um lenço "à Arafat" e um boné estranho. Ambos com proeminentes barrigas, muito "Oktoberfest". 

Abordaram-me hoje, junto ao "Paris em Lisboa", no Chiado. Perguntaram-me se sabia falar inglês. Pensei que queriam direções. E, de certo modo, queriam. Queriam saber onde eu tinha comprado o meu "blazer"! Expliquei que não era possível terem acesso ao local onde aquele casaco fora feito, mas que, por toda a Lisboa, em imensas casas comerciais, podiam encontrar casacos idênticos. 

Foi então que veio a surpresa: "É que só em Portugal é que vemos casacos desses! Na Alemanha ninguém veste assim. E aqui há imensa gente com eles. É um traje nacional?". Olhei em volta e, de facto, vi duas ou três pessoas de "blazer" azul, com botões metálicos, calças cinzentas, tal como eu estava vestido. Nunca me tinha passado pela cabeça que a frequência deste tipo de "blazer" pudesse ser associada a Portugal. Vou passar a estar mais atento.        

Reflexões sobre o futuro

O PSD/CDS mantém uma acentuada crispação política por ter sido afastado do poder. É natural e, até certo ponto, compreensível. O partido ganhou as eleições e a sua expetativa era poder governar. Só que não manteve a maioria absoluta de que dispunha nos últimos quatro anos, perdendo mesmo 700 mil eleitores.

Em 2011, com essa maioria absoluta, Passos Coelho recusou a proposta que o PS lhe fez para partilhar o governo, para implementar o "memorando de entendimento" com a Troika. Desta vez, para governar, a coligação precisava de obter, pelo menos, a abstenção do PS. O PS considerou que os seus eleitores não queriam que apoiasse, ou sequer tolerasse, uma política da qual o partido discordava em absoluto e contra a qual se tinha batido durante quatro anos. Aliás, António Costa tinha dito claramente, durante a campanha, que não daria o seu apoio a um governo de direita. Como tal, o PS recusou-se a dar esse "nil obstat". Não pode ter sido surpresa para ninguém.

O PS sabia que, para poder ter o gesto que teve, tinha de apresentar uma alternativa, sem o que deixaria o país sem governo. Pode não se gostar desssa alternativa e, em especial, pode desconfiar-se se ela terá condições de sobrevivência e se o modo como ela está construída tem a solidez e a coerência para garantir uma governabilidade estável. Como já disse em diversas ocasiões, partilho fortemente essas dúvidas. E ao ver a CGTP à volta de S. Bento, ao ouvir Jerónimo de Sousa interrogar-se sobre a racionalidade da regra do limite do défice em 3% do PIB e Catarina Martins a contrariar, com imperdoável ligeireza, as sensatas palavras de Mário Centeno ao "Financial Times" sobre a dívida, só encontro motivos para manter a minha preocupação. 

Sei que isto não é popular no PS, mas eu falo apenas pela minha cabeça e espero para ver: não confio em que o PCP e o Bloco se mantenham num apoio leal a um eventual governo do PS. Se e quando eu tiver razão - e gostava muito de estar errado - o eleitorado ajuizará em conformidade. A democracia tem as eleições como terapêutica para as crises. 

Mas há uma preocupação que eu não tenho. É com António Costa, com o PS e com o seu compromisso para com as metas europeias. Tenho total confiança no líder do PS - até agora só tenho ouvido dizer que perderam essa confiança pessoas que não votaram nele -, um político com provas dadas, com quase quatro décadas de empenhamento democrático, que foi um excelente ministro, um magnífico presidente da Câmara de Lisboa. Além disso a Europa conhece-o: foi vice-presidente do Parlamento Europeu e presidiu a conselhos de ministros da União Europeia. Não lhe falta experiência e nunca ninguém o viu, alguma vez, falhar no seu empenhamento em procurar garantir o prestígio para Portugal na Europa.

Se o PS for governo sê-lo-á pelo facto de, não tendo uma determinada solução minoritária conseguido garantir apoio parlamentar, o presidente da República se ter visto obrigado a recorrer à segunda solução minoritária que lhe foi apresentada. Pode compreender-se que Cavaco Silva não goste de ver a sua década de Belém "coroada" com um governo de esquerda no poder. Mas, enfim, e para a História, sempre se poderá dizer que terminou do mesmo modo que Mário Soares e Jorge Sampaio...

quarta-feira, novembro 11, 2015

Facebook


Há uns anos, alguém me disse: "então não colocas nada na tua página do Facebook? Increvi-me como teu amigo, mas, afinal, nada..." Não tinha aberto nenhuma página naquela rede social mas, por curiosidade, fui ver. E não é que lá estava eu, com uma fotografia que alguém tinha retirado não sei bem de onde?! Alguém tinha criado uma página em meu nome, com uma profissão totalmente inventada.

Escrevi ao Facebook. Expliquei a situação, pedi o fim da página, mas sem efeito prático, exceto na desaparição da menção da profissão. Decidi então abrir uma página própria. Pelo menos, podia controlá-la. De início, coloquei lá escassos textos, na maioria dos casos chamando a atenção para posts deste blogue ou para artigos que publicava em jornais. Depois, com o tempo e com o tempo que ia tendo, fui depositando naquele espaço umas coisas leves, despretensiosas, graçolas, chamando a atenção para coisas curiosas ou de interesse. Fui sempre muito errático nas minhas respostas ou comentários. Às vezes, passavam-se semanas sem escrever uma palavra. Nalguns dias, "dava-me" para responder, opinar. Sem a menor regra, o que levava a "ofensas": então eu respondia a uns e não a outros? Não percebendo as pessoas que a liberdade é isso mesmo.

Não atribuia a mais pequena importância ao Facebook e - não vão acreditar, mas é verdade! - não sabia que podia "ver" as páginas dos outros. O meu amigo Luis Castro Mendes é testemunha dessa surpresa, perante a "revelação" que, numa noite de Estrasburgo, me fez. Eu só olhava a minha página! Não era por narcisismo, era por nabice informática! Verdade seja que nem essa "descoberta" me fazia ir ver o que os outros "postavam". Raramente o fiz, talvez uma vez por semana, por alguns minutos.

O resultado global da minha experiência no Facebook só não foi surpreendente para mim porque "eu sei do que a casa gasta", isto é, sei o que o país informático é - embora o Facebook, os blogues e o Twitter tenham clientes muito diversos, se bem que alguns comuns, como era o meu caso. 

Inscreveu-se na minha página (diz-se "portal", não é?) imensa gente como "amigo". Os comentários começaram a emergir, na maioria dos casos serenos, mesmo quando frequentemente contraditórios, noutros mais agressivos. Também os "gostos" emergiram e uma coisa chamada "toques", que nunca percebi muito bem o que era. Alguns dos comentários passaram as marcas que eu considerava razoáveis e, com naturalidade, os seus autores foram postos fora de cena. Em "waiting list" para "amigos" está ainda bastante mais de um milhar de pessoas que, ao que me dizem, só podem comentar se acaso eu lhes atribuir essa qualidade.

Nos últimos meses, o Facebook cansou-me. Alguns comentadores entraram muitas vezes em violenta troca de palavras com outros. A radicalização política seguiu a dualização ideológica em que o país caiu. O espaço tornou-se tenso, desconfiado, ácido, às vezes insultuoso. Algumas pessoas não gostaram do qualificativo de "loja dos trezentos das redes informáticas" como o designei. Dei a mim mesmo um tempo para reflexão sobre se por lá continuaria. Porém, a "gritaria" escrita dos últimos dias decidiu-me: deixei ontem de "postar", não consulto a minha página nem a dos outros, não vou ver as mensagens. Quem quiser ter a simpatia de ler o que escrevo tem este blogue como espaço de consulta.

Voltarei ao Facebook? Não sei. Pelo menos, nos tempos mais próximos, estou "out". Só peço que ninguém leve a mal, por favor.

PS - Há menos de cinco minutos, recebi um telefonema de um jornalista, perguntando se o anúncio da decisão de suspender a presença no Facebook podia ter uma leitura política... Ah! e o PS com que se inicia este parágrafo significa "post scriptum"...

Paulo Cunha e Silva


Não conheci bem Paulo Cunha e Silva, que agora morreu, subitamente. Falámos apenas algumas vezes. Creio que o nosso último encontro foi há pouco mais de um ano, num restaurante do Porto, onde ele estava com Rui Moreira e eu acompanhado do seu amigo Artur Castro Neves, também já desaparecido. Trocámos algumas breves impressões sobre o belo momento do Porto, como cidade atrativa.

Da obra cultural que Paulo Cunha e Silva estava a desenvolver no Porto só recebia notas positivas. A memória de quem trabalhou com ele no passado era, em absoluto, idêntica. Era uma grande figura da ação cultural e é uma banalidade dizer que dele se esperava ainda muito. Mas as banalidades, às vezes, são grandes verdades.

Por razões que os tempos muito próximos tornarão mais evidentes (mas nada a ver com política, digo desde já, para evitar especulações!), tinha agora a perspetiva de poder vir trabalhar com Paulo Cunha e Silva bastante mais de perto. E mantinha uma expetativa muito positiva quanto a isso. A sua morte é uma grande perda para o Porto e para o país.  

Ao café


Tenho uma tertúlia semanal (peço desculpa por ter faltado ontem à sopa de lebre) onde cada um dos convivas pede o café de forma diferente: curto com chávena aquecida, longo em chávena fria, vice-versa em cada um dos modelos, passando por mim que, para eterna surpresa dos empregados, peço "um café normal".

Hoje, ao almoço, vi emergir uma cena idêntica. Até que uma senhora presente se saiu com esta: "para mim, com a asa para a esquerda, por favor". Todos nos rimos, mas fiquei a pensar: seria canhota ou teria sido por ser hoje?

A independência de Angola e os "retornados"


Hoje, quatro décadas exatas sobre a independência de Angola, deixem-me que volte a contar aqui uma cena ocorrida comigo, em S. Paulo, em 2005, na inauguração de uma exposição de pintura de José de Guimarães, na FIESP.

Eram os meus primeiros tempos no Brasil e muitas pessoas queriam conhecer o novo embaixador, recém-chegado. A certo passo do cocktail de abertura do evento, aproximou-se de mim uma senhora idosa que, com extrema simpatia, me disse, com um sotaque já muito brasileiro, mas onde se detetava a sua origem portuguesa: "Tenho sempre muito orgulho em conhecer os representantes da minha pátria! Por isso, queria saudá-lo, senhor embaixador, e desejar-lhe muitas felicidades para o seu trabalho".

Fiquei naturalmente sensibilizado com o gesto daquela simpática compatriota, que agradeci, tendo-lhe perguntado, com naturalidade, quando tinha vindo para o Brasil. Os bonitos olhos da octogenária entristeceram, antes de dizer: "Nem me fale nisso! Vim de Angola, em finais de 1974, deixando para trás tudo o que havia ganho numa vida de trabalho. Com o desgosto, o meu marido acabou por falecer pouco depois da chegada ao Brasil. Graças a amigos, consegui mudar a minha vida. Mas olhe! Nunca perdoarei àquela bandidagem que, no nosso país, fez o 25 de abril!"

Não tive a menor coragem para retorquir à senhora que, com o maior dos orgulhos, eu também fazia parte da "bandidagem" que fez o 25 de abril, que essa fora a data que dera a liberdade à pátria de que ela tanto gostava e que esse fora um dos dias mais felizes da minha vida. "Compreendi" a senhora? Claro que sim. Ponho-me no lugar dela e pergunto-me se apreciaria que lhe oferecessem cravos vermelhos... 

Nunca me passaria pela cabeça tentar explicar àquela senhora, tal como nunca o faço quando cruzo outros portugueses que viveram e sofreram esses tempos, que a tragédia da descolonização desordenada foi, como bem dizia Ernesto Melo Antunes, a outra face da tragédia que foi a colonização. E que, por muitas culpas que possam ser atribuídas aos responsáveis políticos que geriram o país logo após o 25 de abril, a responsabilidade maior competirá sempre àqueles que, tendo tido a oportunidade histórica de negociar atempadamente a independência das colónias, não o fizeram, pela cegueira da ditadura que defendiam e nos faziam sofrer - a nós, portugueses, e aos povos dessas mesmas colónias, convém também nunca esquecer.

O imenso respeito que tenho pelo drama que marcou a vida dos "retornados", que sempre afirmo publicamente, vai de par com aquele que não tenho pela classe política que o 25 de abril, em boa hora, derrubou.

terça-feira, novembro 10, 2015

O guindaste


Notei esse guindaste desde os primeiros tempos em que cheguei a Luanda, no ano de 1982. Muito alto, estava quase no topo da avenida que sai da Mutamba para o hospital Josina Machel, do lado direito. Eu olhava o guindaste sempre que por ali passava. Ao lado, havia um grande prédio por concluir, de que se viam as estruturas em cimento. Quase quatro anos depois, quando parti, o guindaste continuava ali, exatamente na mesma posição, com a obra no mesmo estado. Para mim, essa ficou, para sempre, como a imagem da Angola de então, parada no tempo, à espera de uma paz que só viria muitos anos depois.

Amanhã, 11 de novembro de 2015, passados 40 anos desde o dia em que Angola formalmente se tornou independente, lembrei-me desse guindaste, sei lá bem porquê.  

segunda-feira, novembro 09, 2015

O "vigésimo" premiado

As ilusões com que se procura "enganar o parceiro", nos dias que correm, são muito mais sofisticadas do que eram no passado. Aos incautos que, da província, vinham a Lisboa, acontecia, por vezes, serem ludibriados por espertalhões que lhes tentavam "vender gato por lebre".

Um dos truques mais conhecidos era o do "vigésimo premiado". Em que consistia? Alguém se aproximava de uma potencial vítima e dizia estar num embaraço: ia partir dentro de minutos num barco para África ou para o Brasil e não tivera tempo de ir trocar uma cautela de lotaria que comprara dias antes e que tinha nesse dia sido premiada. Em apoio do que afirmava, mostrava a lista da Santa Casa (provavelmente relativa a uma outra semana) que "provava" o "valor" desse talão - geralmente o chamado "vigésimo", correspondente a 1/20 de um bilhete completo. O que era então proposto ao incauto? Que ficasse com o "vigésimo", que logo que trocado lhe garantiria uma boa maquia, e que adiantasse ao apressado viajante "apenas" uma compensação financeira razoável - geralmente todo o dinheiro que o inocente trazia consigo. Este, convencido de que fazia um ótimo negócio, era desembolsado e ficava na mão com o "vigésimo", que, afinal, quando chegasse à casa de câmbios, verificaria que nada valia.

O truque do "vigésimo premiado" já tem barbas mas, às vezes, ainda há quem caia nele. Mas também há quem perceba que o "vigésimo" afinal, não vale nada e não o aceite. Cada vez há menos inocentes, embora esses, às vezes, ainda continuem a jogar na lotaria. É que a miragem da "sorte grande" é sempre muito atrativa.

(em tempo: a subtileza é uma arte que eu não domino)

Da cartola


Com a aproximação de um possível novo governo, o trabalho das pitonisas, mais ou menos mediáticas, começa a "apertar". Ontem foi um comentador televisivo, a partir de amanhã serão os jornais. O modelo é simples: juntam-se alguns nomes de quem ciclicamente se fala, somam-se outros da lavra do opinador e, quando interessa, pintalga-se tudo com algum "gossip", às vezes para tentar promover, outras para procurar "queimar". 

À volta de um café, discutia isto hoje com um amigo. E ambos concluímos que, com tantos debates televisivos, tantos colóquios, conferências e ajuntamentos similares, o "baralho" possível de governantes já é, com certeza, do conhecimento de todo o país. Já "toda a gente" foi ao Prós e Contras, já todos debateram com todos as temáticas mais especiosas, desde os animados "programas da manhã" dos canais de sinal aberto até aos mais recônditos frente-a-frente em obscuros canais de cabo. Haverá, nalguma remota universidade, numa PME de sucesso ou num posto elevado da administração pública, alguma "novidade" que ainda seja possível tirar da cartola... tanto mais que os "coelhos" que nos últimos anos dela saíram entrarão, finalmente, num mais do que merecido pousio?

Noutros tempos, as coisas não eram assim. Conta-se que Salazar ouvia alguns escassos conselheiros próximos quando pretendia fazer alguma substituição no governo. Supico Pinto, Soares da Fonseca, Albino dos Reis ou Mário de Figueiredo avançavam sugestões de "jovens" (com aqueles cabelos empastados e puxados para trás, os jovens da ditadura pareciam sempre mais velhos, já repararam?) esperanças políticas. Salazar não os conhecia, interessava-lhe ter deles uma ideia que fosse para além de alguma produção escrita, mas não queria encontrá-los antes de decidir convidá-los. Por isso, diz-se que, num dia já nos anos 60, perante um novo nome que lhe foi sugerido, disse ao seu conselheiro: "faça-mo 'passar' na televisão"...

Agora, todos já passaram.

A morte do poeta

Deito-me quase sempre tarde. Estava a ler. Deviam ser quase duas da manhã, nessa noite de Jerusalém, quando o telefone tocou. Consigo datar facilmente o momento: 26 de junho de 1978. Na véspera, no hall do hotel, tínhamos estado a assistir à final do campeonato do mundo de futebol, entre a Argentina e a Holanda, Quase toda a sala, onde havia muitos americanos que, nos dias seguintes, eu veria trocar "Israel bonds" ao balcão, havia "puxado" pela Holanda, com as raízes judaicas a ajudar.

Uma chamada telefónica, àquela hora?! Tenho sempre maus pressentimentos e detesto surpresas.

Atendi: "Acordei-o?". A voz era do chefe de gabinete do ministro Luis Saias, ministro da Agricultura do governo PS-CDS. Queria que eu me deslocasse ao quarto do ministro, se não me desse muito incómodo. Ainda inquiri se era alguma emergência. Sossegou-me: era uma questão "política", sobre a qual o ministro queria consultar-me, com alguma urgência. Fiquei um pouco inquieto, já perceberão porquê.

Eu era então um jovem diplomata, entrado no MNE há menos de três anos. Tinha a meu cargo o "desk" do Médio Oriente e Magreb, na direção-geral dos Negócios Económicos. Semanas antes, o "chefe da repartição" (equivalente à atual direção de serviços) do setor político do ministério, Queirós de Barros, chamara-me ao seu gabinete: "Você foi indicado pelo seu diretor-geral para integrar uma delegação que vai deslocar-se a Israel na próxima semana. Venha comigo ao ministro." Ir ao ministro? Um jovem terceiro-secretário? Não era comum. Lá fui com Queirós de Barros ao "terceiro andar", para ser recebido por Vitor Sá Machado, então ministro dos Negócios Estrangeiros, um dos três membros do CDS nesse executivo, que um mês depois cessaria funções.

O ministro recebeu-nos com grande afabilidade e explicou: "O primeiro-ministro Mário Soares decidiu enviar uma delegação a Israel, chefiada pelo ministro da Agricultura (sem trair qualquer deslealdade com o chefe do governo, o ministro deixava claro que essa decisão viera "de cima", provavelmente sem o seu parecer. Soares, por esses anos, no quadro da Internacional Socialista, dera vários sinais de aproximação a Israel). Você conhece, com certeza, a delicadeza da posição portuguesa face a Israel (Israel tinha uma representação consular em Lisboa, mas não havia mútua acreditação de embaixadores em Lisboa e Tel-Aviv). Temos excelentes relações com os países árabes, pelo que há que evitar que esta visita tenha impactos negativos no mundo árabe, que possam afetar as nossas crescentes relações económicas com vários desses países (eu sabia: não só tinha esse tema a meu cargo no MNE como, durante os dois anos anteriores, tinha estado envolvido em várias missões de natureza económica a alguns desses Estados). Por isso, esta viagem tem de ser essencialmente técnica e não pode correr mal no plano político! As mensagens que, nesse âmbito, sejam passadas pela nossa parte, não podem fugir "um milímetro" àquilo que tem vindo a ser a posição que Portugal tem assumido publicamente, em especial sobre o estatuto dos territórios ocupados e, em geral, sobre a questão israelo-palestina. Cabe-lhe a si "briefar" o ministro da Agricultura sobre isto. Já agora, quero lembrar-lhe uma coisa, se acaso não sabia: nunca um diplomata português esteve em Israel numa viagem oficial. Você será o primeiro! (Caí das núvens e, por um instante, fiquei "flattered" com o que parecia ser uma distinção). A escolha recaiu em si porque queremos que a nossa representação nesta delegação seja feita ao nível diplomático mais baixo possível (Ora bolas! Lá se foi todo o orgulho...)".

No regresso do breve encontro com o ministro, Queirós de Barros passou-me um "non-paper" (folha branca sem timbre) que sumariava as principais linhas da posição portuguesa no conflito entre Israel e os palestinos. E alertou-me, uma vez mais: "Não deixe que o ministro da Agricultura saia desta linha. Se alguma coisa correr mal, pode ser uma grande chatice!". Regressei ao meu serviço bastante preocupado. Então, dentro do governo, não fora possível dar orientações rigorosas ao ministro e era agora eu, um diplomata "ao nível diplomático mais baixo possível", que ia conseguir controlá-lo?!

Dias depois, na viagem aérea para Israel, via Roma, pedi ao ministro para me ouvir uns minutos. Repeti-lhe o que me havia sido dito para lhe dizer. Foi muito simpático mas, naturalmente, não me pareceu muito aberto a deixar-se "tutorizar" por completo por mim. A minha preocupação havia, aliás, aumentado, ao ter-me dado conta de quem era o contraparte israelita de Luis Saias: nada mais nada menos que Ariel Sharon, que então era ministro da Agricultura! "Apenas" o general mais político do Estado judeu, que viria a ser um polémico primeiro-ministro e cuja biografia me dispenso de relatar aqui.

Os primeiros encontros tidos em Israel, para meu descanso, assentaram em questões técnicas, que o ministro não parecia dominar por completo (não era essa a sua função) mas que o setor especializado do grupo mantinha a seu cargo de forma competente - recordo-me que iam da aquacultura até à extensão rural. Com Sharon tinha havido apenas uma "courtesy call" e estava prevista uma ida à sua quinta no deserto do Neguev. A minha derradeira preocupação era uma conferência de imprensa, no último dia, entre os dois ministros. Taticamente, tinha-me voluntariado para traduzir as palavras do nosso ministro, para tentar "controlar" o exercício.

Mas voltemos àquela noite, dias antes do fim da visita, em que o chefe de gabinete me acordou e me pediu para ir à "suite" de Luis Saias. Que diabo de problema "político" surgira?! Voltava a ficar preocupado. Chegado à "suite", o ministro esclareceu: havia recebido uma mensagem do seu homólogo, Ariel Sharon, informando-o que, no dia seguinte, seria recebido por Menahem Begin.

Fiquei siderado! Um encontro com Begin, uma figura com um passado mais do que controverso na política israelita (só o futuro lhe viria a reservar um outro lugar na História), daria uma maior projeção política a esta deslocação, que era tudo o que não desejávamos. O próprio Luis Saias tinha consciência disso. Assim, e não sendo possível escusar-se ao encontro, fui de opinião que o ministro se limitasse a sublinhar os aspetos técnicos da sua visita, talvez destacando o potencial de cooperação bilateral vislumbrado em vários setores. Se acaso a "política" tivesse de vir à baila, Saias deveria seguir a "cábula" que eu trazia de Lisboa, e que eu próprio já quase sabia de cor. Luis Saias era um político muito sensato e disse-me que já havia decidido isso mesmo.

Falámos uns minutos e, quando me preparava para sair da "suite", não sei se Luis Saias se o seu chefe de gabinete comentaram, uma vez mais, o inesperado deste encontro com "o chefe de Estado". Nessa altura, dei um "salto" interior. "Chefe de Estado"! Begin era "chefe do governo", era o primeiro-ministro!

O chefe de Estado de Israel é uma "rainha de Inglaterra", não tem o menor poder político, é eleito no parlamento e exerce uma função formal, que a constituição anula em termos substantivos. Esclareci os meus interlocutores que o nosso ministro iria ser recebido por Itzhak Navon, um estimável poeta (nunca dele li nada), uma figura mais do que apagada, que seguramente abordaria generalidades e encheria o encontro de platitudes. O que acabou por acontecer.

Porque lembro esta história? Porque li, há minutos, que Itzhak Navon morreu.

domingo, novembro 08, 2015

António Paulouro


Nos anos 60, quando vim estudar para Lisboa, na casa de família onde eu vivia assinava-se o "Jornal do Fundão".

Desde o primeiro momento, fiquei surpreendido com a rara qualidade de um jornal de província que conseguia aliar a atenção às questões da região, pelo que dispunha de forte implantação junto de pessoas oriundas da Cova da Beira, com temáticas nacionais frontais e ousadas, nas quais se destacava uma cobertura muito rica dos temas culturais, que eram objeto de um suplemento regular. Anos mais tarde, eu próprio cheguei a ser assinante do jornal.

A alma do "Jornal do Fundão" era então António Paulouro, que o havia criado em 1946. Geralmente pouco atenta à imprensa de província, tida por submissa e convencional, a ditadura começou a olhar com mais cuidado este jornal irreverente, que acabaria por ser objeto de crescente e regular pressão da censura e chegou a estar suspenso. Inúmeras figuras da intelectualidade portuguesa e brasileira, tais como José Cardoso Pires, João Cabral de Melo Neto, Erico Veríssimo, António José Saraiva, Artur Portela, Eduardo Lourenço, Alexandre Pinheiro Torres, Mário Castrim e tantas outras, colaboraram com o "Jornal do Fundão" e dessa forma ajudaram a sustentar o prestígio grangeado pelo título. 

Tive o gosto de conhecer pessoalmente António Paulouro, no Fundão, num dia de setembro de 1969. Morreu em 2002. Teria completado 100 anos em 2015. Os seus amigos e admiradores juntaram-se ontem naquela cidade para uma bem merecida homenagem àquele que foi, além de uma grande figura do jornalismo e da cultura, um cidadão empenhado civicamente, um democrata a quem a luta contra a ditadura muito deve.

Deixo aqui, nesta breve memória, uma palavra de respeito e admiração extensiva ao seu sobrinho, Fernando Paulouro, que lhe sucedeu na direção do jornal. Mas também estendo um abraço de amizade a Abílio Laceiras, correspondente do "Jornal do Fundão" em Paris, um cidadão que aí cultiva a imagem desse importante órgão, que ganhou já um lugar na história da comunicação social portuguesa.

sábado, novembro 07, 2015

sexta-feira, novembro 06, 2015

Olhe que não?


Foi há 40 anos. .

O país estava dividido ao meio.

          (nessa altura, o risco de guerra civil existia realmente. Nos dias que correm, as trincheiras são de retórica).

O governo também era "provisório".

          (mas era de outro tipo: tinha até comunistas, imaginem!).

Os sindicatos também rodearam o palácio de S. Bento

          (agora, lamentavelmente, também vão rodear, embora, desta vez, pacificamente, valha-nos isso, apenas para poderem dizer, para dentro do parlamento, com voz grossa, "também estamos aqui").

Mário Soares e Álvaro Cunhal enfrentaram-se então, a 6 de novembro desse ano memorável de 1975, num debate televisivo, moderado por José Carlos Megre (que é feito de ti?) e Joaquim Letria que parou o país.

         (hoje, um debate entre António Costa e Jerónimo de Sousa, além de impensável, teria a agressividade de um jogo entre-solteiros-e-casados).

Dessa conversa histórica, ficou o jocoso, "Olhe que não, olhe que não!", com que Cunhal afastava, sorridente, as acusações de deriva ditatorial que Soares lhe fazia. Menos de três semanas depois, parte do país político-militar anularia o aventureirismo da outra parte. E assim se caminharia para a democracia ("burguesa", claro, como Cunhal não gostava mas que, como Churchill disse, é "a pior forma de de governo, com exceção de todas as outras"). A mesma democracia ("burguesa", não é?) que hoje permite que o PCP possa ser chamado a ser parte da solução (I cross my fingers), se bem que, há já muito, tivesse deixado de ser parte do problema.

Será que António Costa já perguntou abertamente a Jerónimo de Sousa se o PCP vai, um destes dias, romper o acordo? E será que este lhe respondeu: "Olhe que não, olhe que não!"?

(Para quem tiver vontade de ver o debate, ele aqui fica. Quem quiser ouvir apenas uma síntese que, quase no final tem a "boutade" histórica de Cunhal, aqui está ela)

Os silêncios de Lisboa



Há momentos, sob este fantástico dia de sol de Outono de Lisboa - conheço algumas cidades com dias assim, nenhuma com a suavidade única desta luz - lembrei-me, de repente, do silêncio que, noutros tempos, se usufruia ao atravessar alguns bairros populares da cidade, vai para meio século.
Era uma Lisboa muito triste, embrulhada numa pobreza de vida - um "mal-de-vivre", em homenagem ao José Fonseca e Costa - que parecia fazer parte do seu inexorável destino: muitas casas como esta, gente mal vestida e sem esperança, serviços públicos degradados, transportes incómodos, o tal "viver habitualmente" com que a ditadura suspendera o tempo dos portugueses, entre os medos (a política, a religião, a guerra, o desemprego/emigração) e a felicidade, então domingueira, do futebol, com as tascas à mistura.
Por esses tempos, se atravessássemos certas zonas da Ajuda ou de Marvila, se nos ocorresse andar pelo interior dos Anjos ou do Bairro Santos, recordo-me bem que se "ouvia" um silêncio único, sem aquele ruído de fundo de automóveis que hoje faz parte do cenário urbano. Quando muito, uma Zundap, uma Famel ou uma Pachancho - as Harley-Davidson do fascismo. 
Nostalgia, isto? Não, apenas a constatação de que a vida era diferente. Ah! E nós também, claro! A única coisa comum é esta maravilhosa e única Lisboa.

quinta-feira, novembro 05, 2015

O sorriso de Marcelo


Há poucas ambições de destino que possam rivalizar com a de Marcelo Rebelo de Sousa. É lendário o seu afirmado objetivo, quase desde a infância, de poder vir a ter um futuro institucional à escala nacional. Já nos tempos em que Marcelo Caetano, na sua “travessia do deserto”, juntava na “Choupana” os fiéis que iriam acompanhá-lo na substituição de Salazar, o irrequieto filho de Baltazar Rebelo de Sousa era admitido nas conversas, imagina-se que com a complacente tolerância dos circunstantes. Esta imersão total na política doméstica, que passou pelo mundo universitário católico e pelos alvores da Sedes, teria a sua glória na aventura irreverente do “Expresso” e na constituição do PPD, acabando numa pouco notável experiência governativa e numa frágil liderança do partido a que a sempre se mostrou ligado, onde o seu carisma afetivo é retribuído com fervor quase clubista.

O país, contudo, fixou bastante mais o “outro” Marcelo: o professor que “dava notas” aos políticos, na rádio e na televisão, figura que foi evoluindo para um bizarro papel de “tudólogo”, alguém que fala e tem opinião sobre tudo, sem deixar, contudo, de sugerir-se em permanência como alternativa para mais altos voos. Um dia, em Paris, ouvi Eduardo Lourenço qualificá-lo de forma magistral: “O Marcelo é como uma pessoa que está numa varanda a ver passar o país, comentando todos e cada um. Às vezes, nesse “voyeurisme”, acontece-lhe fazer apreciações sobre o próprio Marcelo que passa...”

Neste jogo de sombras em que está transformada a corrida presidencial, Marcelo foi tendo a sorte dos teimosos. Guterres, a sua grande sombra geracional, desistiu cedo. Santana deu a si próprio um golpe de Misericórdia. Rui Rio, por uma tempestade perfeita de azares e alguma culpa própria, saiu de cena. Mal-amado por uma direção do PSD que representa um partido diferente daquele que ajudou a criar, com um brilho intelectual que acaba por atenuar o défice de credibilidade que a sobre-exposição e a prolixidade obsessiva lhe colou à pele, Marcelo (o facto de o país o tratar pelo nome próprio reflete a intimidade que criou com os portugueses) tem hoje perante si dois candidatos à esquerda que, podendo acabar por não ser fáceis, não são obstáculos absolutamente intransponíveis às suas ambições.

Mas é face a uma direita em estado político de estupor, conformada com o facto de ver-se obrigada a aceitá-lo como o seu candidato, que Marcelo se dá hoje ao luxo de encetar uma operação tática de distanciação, em especial deixando cair farpas regulares ao seu possível antecessor. Ao mesmo tempo, vai seduzindo o centro e divertindo alguma esquerda, que não consegue deixar de achar graça à sua inexorável heterodoxia. O que Marcelo deve sorrir! Porém, resta saber se será o último a rir.

As chaves do Cairo


Este retalho de memória vem na sequência da nota que aqui ontem publiquei sobre a morte de Itzhak Rabin, passado em novembro de 1995. Para tal, recupero parte de um texto antigo que aqui escrevi há três anos. Num registo menos pesado.

Nas últimas horas, muito se tem falado do deserto do Sinai, cenário triste do atentado ou acidente que vitimou os viajantes do voo que ligava Sharm el-Sheikh a São Petersburgo. (Uma amiga enviou-me ontem um email, informando ter partido do mesmo aeroporto, uma hora antes...). Desde há alguns anos, o Sinai converteu-se numa zona de alto risco. Atravessá-lo passou a ser uma aventura insensata e, ao que a imprensa reporta, já quase impossível para viaturas civis. Mas não era assim nesse tempo.

Como ontem relatei, e após o assassinato de Rabin, a delegação portuguesa, chefiada por Mário Soares e que eu acompanhava em representação do governo, havia interrompido subitamente a visita a Gaza, que se sucedia a uma estada em Israel. Nessa manhã de 5 de novembro de 1995, saíramos da Faixa de Gaza para o Egito, pela "pesada" fronteira de Rafah, onde Israel mantinha então um controlo, politicamente muito sensível para os palestinianos.

Um avião posto à disposição pelo governo egípcio iria buscar-nos à cidade de Al Arish, umas dezenas de quilómetros adiante, onde era suposto almoçarmos, num hotel de praia sobre o Mediterrânico. Mário Soares, insistiu em tomar um banho e alguns o acompanhámos. Ainda hoje guardo umas belas fotos da autoria de Rui Ochoa, com Mário Soares, Alfredo Duarte Costa e eu, vestidos com uns longos calções emprestados.

À época, era nosso embaixador no Cairo, Eduardo Nunes de Carvalho, uma figura muito simpática da nossa "carreira", onde era conhecido pelos amigos pelo "nickname" de "Iá".Era uma pessoa por quem tinha uma grande estima e consideração e que, infelizmente, nos deixou há já algum tempo. Hhomem de sorriso permanente, de uma agudeza fina de espírito, muito culto e educado, foi uma das boas "cabeças" que serviu a nossa diplomacia. Tinha, porém, como todo o ministério sempre soube, uma relação algo desligada com as coisas e, em especial, com o tempo, com distrações e atrasos que se tornaram lendários na tradição oral do MNE.

Nessa manhã, para receber o presidente à chegada ao território egípcio, o "Iá" tinha vindo ter conosco, de carro, do Cairo a Al Arish, depois de uma jornada de várias horas, através do Sinai. E chegou a tempo do almoço, depois do nosso banho. Soares insistiu que ele nos acompanhasse na nossa viagem de avião para a capital egípcia. O seu carro, com o seu motorista, iniciou então o regresso pelo mesmo caminho, atravessando o deserto do Sinai e o canal do Suez, devendo chegar ao Cairo lá pela noite. 

Nós chegámos às primeiras horas da tarde. Mário Soares, a Dra.Maria Barroso e o ajudante de campo foram para uma "guest house", posta à sua disposição pelo presidente egípcio. Percebi que o presidente se separava contrariado da sua delegação, "exilado" num palácio que lhe limitava os movimentos e a companhia. O resto dos portugueses, que incluía deputados, jornalistas e algumas figuras da vida pública portuguesa, foi instalada num hotel. Eu não perdi tempo: com a assessora de imprensa do presidente, Estrela Serrano, aproveitei para ir ver as pirâmides e a esfinge. A memória de p"O mistério da Grande Pirâmide", de Edgar P. Jacobs, perseguia-me. Era a primeira vez que ia ao Cairo e, tendo uma horas livres, decidi aproveitá-las bem.

Regressámos ao hotel ao final da tarde. Notei que o embaixador, um excelente conversador, ainda pairava por lá, no lóbi, a fazer companhia aos membros da delegação. A certa altura, Mário Soares telefonou a perguntar o que íamos fazer, onde íamos jantar. Disse-lhe que não tínhamos planos para sair do hotel e que aí jantaríamos. Soares de imediato se entusiasmou: "vou ter aí convosco!" Pediu-me então para passar o telefone ao embaixador Nunes de Carvalho. A este, Soares fui percebendo que Soares dizia ter tido a ideia de, antes do jantar, o grupo português conhecer a residência oficial do embaixador, situada umas escassas centenas de metros do hotel, também na ilha de Zamalek, o bairro onde estávamos.

Notei que o embaixador começou a titubear na conversa, resistindo à ideia, dizendo que já não havia muito tempo, explicando que tinha a sua mulher fora do Cairo, para além de outros pretextos de ocasião, que me pareceram pouco convincentes. Ora a sua casa era a residência oficial do Estado e nada mais natural seria que acolher, ainda que para uma simples bebida antes do jantar, o chefe do Estado e os seus convidados. A minha estranheza era tanto maior quanto Nunes de Carvalho era um "homem do mundo", que gostava de receber e recebia muito bem, como eu próprio tivera oportunidade de testemunhar noutras embaixadas onde com ele me cruzara.

A conversa entre o embaixador e o presidente, com o último a fazer aquilo que eu presumia ser uma contínua pressão para a aceitação pelo embaixador da ideia que tivera, foi-se prolongando, com Nunes de Carvalho, entre risadas nervosas e frases incompletas, tentando dissuadir Mário Soares. Até que, finalmente, o ouvi retorquir: "Ó senhor presidente! É que eu tenho um problema, que nos impede, em absoluto, de ir lá a casa". Fiquei curioso e apurei o ouvido. Depois de mais uma gargalhada, sempre muito mais de nervos do que de graça, gaguejando um pouco de embaraço, o embaixador esclareceu o presidente: "É que eu - desculpe ter de dizer-lhe! - deixei as chaves de casa no meu carro, que está a atravessar o deserto do Sinai, e que só chega daqui a umas horas. Vou mesmo pernoitar no hotel..."

A verdade é que o embaixador, não sonhando com a hipótese da sua residência ter de ser "mobilizada" na ocasião, e na ausência da sua família, havia dispensado todo o pessoal. Sendo já tarde e, para mais, estando sem motorista, num tempo em que pouca gente tinha telemóvel, seria impossível andar à procura, pelo dédalo do Cairo, das segundas chaves da casa.

E lá jantámos nós, com o nosso embaixador como convidado, no antigo Gezirah Palace, hoje um Marriott, cujo corpo central havia sido construído para a inauguração do canal do Suez, em 1869, um evento que, à época, foi testemunhado localmente por um viajante português que muita graça achava aos episódios da diplomacia que serviu - José Maria Eça de Queiroz. Voltei a ficar nesse hotel por duas vezesm depois dessa visita. E sempre recordo esta história.

quarta-feira, novembro 04, 2015

Itzhak Rabin


Em 4 de novembro de 1995, Itzhak Rabin, primeiro-ministro de Israel, foi assassinado por um extremista judeu, durante um comício eleitoral em Tel-Aviv. Na véspera, eu acompanhara Mário Soares a um almoço informal que Rabin lhe oferecera, na sua residência, em Jerusalem. Soares estava de visita a Israel e a Gaza, naquela que seria a sua última viagem oficial ao estrangeiro como presidente da República. Eu acompanhava-o, em substitução do MNE Jaime Gama, juntamente com a minha chefe de gabinete, Ana Gomes.

O chefe do governo israelita era um amigo antigo de Mário Soares. Como vice-presidente da Internacional Socialista, Soares lutara pela aproximação de vários governos europeus a Israel, um país que acabara de assinar acordos de paz com Yasser Arafat, sob a égide da Noruega e dos Estados Unidos. No tocante às relações bilaterais, havia sido Soares, em 1977, como primeiro-ministro, quem decidiu estabelecer relações diplomáticas a nível de embaixada entre Portugal e Israel, quebrando assim uma distância entre os dois países que vinha dos tempos da ditadura.

Nesse dia 4 de novembro, depois de Soares se ter ido despedido do presidente Weizmann, partimos de Jerusalém em direção a Gaza, em carrinhas blindadas, fortemente guardados por seguranças israelitas, Atravessada a fronteira, Yasser Arafat aguardava Mário Soares. Arafat era outra figura que tinha uma excelente relação pessoal com Soares, forjada quando, anos antes, este correra fortes riscos para o visitar, ao tempo em que estava cercado, numa zona ameaçada de Beirute. Arafat nunca esqueceu isso.

A tarde desse dia, em Gaza, decorreu num ritmo intenso, com vários encontros e visitas. Arafat ofereceu um jantar oficial a Soares, findo o qual conduziu o chefe de Estado português à "guest house" onde este se hospedava. Estávamos os três a conversar numa sala quando, de repente, entrou um militar e disse algo ao ouvido de Arafat. Pela reação de espanto do líder palestino, que se escusou e saiu, percebemos que seria algo importante. Escassos minutos passados, Arafat regressou. Tinha ido atender uma chamada do MNE israelita, Shimon Perez, que lhe havia comunicado que o primeiro-ministro Rabin tinha sido objeto de um atentado e estava ferido. Um par de minutos mais tarde, nova chamada confirmava que Rabin tinha morrido. Muito perturbado, Arafat despediu-se de nós e saiu.

Mário Soares e eu tentámos então avaliar o que devíamos fazer e procurámos contactar em Lisboa o primeiro-ministro António Guterres. Mas os telemóveis não funcionavam e só um tempo mais tarde, através de um telefone-satélite militar, viria a ser possível falar com Guterres. Recordo-me que, quando Soares me ouviu a tentar sossegar o primeiro-ministro, dizendo que estávamos bem e em segurança, retorquiu, do outro lado da sala, entre o irónico e preocupado: "Em segurança?! Este é, neste momento, o lugar mais inseguro da terra!". Naquela altura, não sabíamos quem era o assassino e a probabilidade de ser um expremista árabe era a mais provável. Soares falou finalmente com Guterres e ficou combinado que suspenderíamos a visita oficial, logo no dia seguinte.

Assim aconteceu. Nessa manhã, despedimo-nos de Arafat e atravessámos a fronteira para o Egito. Mubarak mandara uma avião buscar-nos numa cidade próxima e fomos dormir ao Cairo. No dia seguinte, Soares e eu regressámos a Jerusalém, onde representámos Portugal no funeral de Rabin. Sob uma segurança impressionante, a cerimónia iria juntar uma rara multidão de chefes de Estado e de governo de várias partes do mundo.

Um dia, talvez arranje tempo para contar, em pormenor, as histórias e peripécias dessa memorável viagem.

Rabin morreu faz hoje precisamente 20 anos. Lembro-o nesta noite fria, aqui em Varsóvia, uma cidade onde se escreveram muitas páginas trágicas da história do povo judeu.

O concerto da Júlia

Foi assim, depois do almoço de hoje. A pianista, com menos de 10 anos, chama-se Júlia.