sábado, outubro 13, 2012

Ribeiro Santos


Passam hoje 40 anos sobre a data do funeral de José António Ribeiro Santos, um militante das estruturas de juventude do MRPP, força política de que já aqui se falou. Ribeiro Santos foi morto por um agente da PIDE/DGS, que, na ocasião, também feriu o então estudante e hoje advogado José Lamego, durante uma escaramuça gerada numa reunião universitária, em Lisboa.

Não conhecia nem nunca tinha ouvido falar de Ribeiro Santos, como não tinha nada a ver com o MRPP. Porém, tal como muitas centenas de pessoas, desloquei-me ao seu funeral, numa homenagem a alguém que tinha sido assassinado pela polícia política e também porque queria integrar o que se sabia que iria transformar-se numa ação pública anti-regime. Sabíamos nós e sabia a polícia, que recheou de agentes, fardados e à paisana, o largo de Santos, em frente à igreja, junto à casa de onde sairia o corpo. Fui com um colega da Caixa Geral de Depósitos e que, mais tarde, seria ministro das Finanças de Moçambique, Abdul Majid Osman. Era um sábado e trabalhava-se nas manhãs dos sábados de então.

Colocámo-nos no hoje ainda existente "triângulo" de passeio do largo, em frente à casa. Depois de alguns tensos minutos de espera, a multidão, que estava bastante silenciosa e apenas murmurante, agitou-se com o surgimento do caixão na porta da casa. Porque estava bastante perto, notei que se gerou uma curta discussão entre pessoas que pretendiam que ele fosse deslocado para um carro funerário e um outro grupo que acabou por afastá-lo da viatura e colocá-lo aos ombros (uma das pessoas era o atual deputado João Soares, que se vê na imagem, à frente, do lado esquerdo), logo se encaminhando para a rua das Janelas Verdes. Nesse instante, a multidão, à frente da qual acabei imprudentemente por encontrar-me, procurou avançar atrás do caixão, tentando criar um cortejo, na direção do cemitério da Ajuda.

A ideia da polícia era, porém, muito diferente. O cortejo não devia ainda ter avançado mais de 50 metros quando um cordão de agentes se interpôs, entre nós e as pessoas que transportavam o caixão, quase provocando a queda deste e forçando, à bastonada, o nosso recuo. Os manifestantes começaram a gritar "assassinos" e o habitual "abaixo o fascismo", o que teve óbvio condão de atiçar a violência policial. Por um azar, vi-me de repente encurralado junto a um automóvel e, ao voltar-me, só tive tempo de afastar a cabeça do bastão de um polícia, que se abateu fortemente sobre um dos meus ombros. Tombei ligeiramente e foi graças à ajuda do Abdul Majid Osman que consegui afastar-me, correndo em direção à zona da embaixada de França. A polícia perseguiu-nos ainda pela rua das Trinas acima. Uma hora mais tarde, ainda fomos ao cemitério da Ajuda, onde houve mais correrias e palavras de ordem.

É esta a minha recordação do funeral de Ribeiro Santos, figura que o MRPP, a partir de então, converteu num seu símbolo. Eram assim esses últimos tempos da ditadura portuguesa. Um ano e meio depois, iria ter um grande gosto em ajudar a acabar com ela.

sexta-feira, outubro 12, 2012

Relendo os clássicos

"Os diplomatas portugueses passam por agradar no estrangeiro pela sua palidez! Mas não se sabe que a sua palidez vem, não da beleza da raça peninsular, mas da fraqueza de legação mal alimentada. Onde um embaixador português mais se demora, não é diante das instituições estrangeiras com respeito, é diante das lojas de mercearia com inveja! E se eles não podem alcançar bons tratados para o país – é porque andam ocupados em arranjar mais rosbife para o estômago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição do diplomata português era insustentável. E ainda veremos os jornais estrangeiros, noticiarem: 

"Ontem, na Rua de… caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado. Conduzido para uma botica próxima o infeliz revelou toda a verdade – era o embaixador português. Deram-lhe logo bifes. O desgraçado sorria, com as lágrimas nos olhos.”

Que o país atenda a esta desgraçada situação! Que tenha um movimento generoso e franco! Dê aos seus embaixadores menos títulos e mais bifes! Embora lhes diminua as atribuições, aumente-lhes ao menos a hortaliça. Eles pedem ao seu país uma coisa bem simples: não é um palácio para viver, nem um landau para passear, nem fardas, nem comendas! É carne! Que o país, no número do pessoal diplomático, diminua os adidos e aumente os bois.”

Eça de Queiroz, em "As Farpas", nº 6, Outubro de 1871

(Em tempo: a transcrição aqui feita, por pura graça, deste clássico texto humorístico de Eça de Queiróz suscitou logo reações, em notas de grave "escândalo" por uma imaginária reivindicação salarial, tudo mobilizado pela psicologia da inveja, que por aí policia os nossos dias. Caramba!, até o humor a "troika" tirou aos portugueses.)

quinta-feira, outubro 11, 2012

O livro

Não recordo o seu nome e, mesmo se dele me lembrasse, não o diria aqui. Era um homem muito simples, na casa dos 50 anos, que me contava belas histórias da sua infância em João Pessoa, na Paraíba, terra de que sentia saudades que a melhor vida que tinha em São Paulo não conseguia atenuar. Era o meu motorista habitual quando tinha de me deslocar a São Paulo, ido de Brasília, o que ocorria com alguma frequência, nesses quatro anos em que vivi no Brasil. 

Entre o aeroporto e os compromissos, ou nos intervalos entre eles, eu tinha por invariável hábito passar pela fabulosa Livraria Cultura, na avenida Paulista, de longe o mais completo e bem arrumado lugar de venda de livros em língua portuguesa, em todo o mundo. Por necessidade, por tentação ou por simples vício, nunca de lá saía sem um saco, mais ou menos recheado, de edições brasileiras.

Numa das muitas vezes em que eu acomodava no carro as novas aquisições, esse meu motorista inquiriu:

- O senhor consegue ler todos esses livros que compra?

Expliquei-lhe que não, longe disso!, mas que eu fazia parte de um grupo de pessoas, bastante vulgar, que compra sempre muitos mais livros do que aqueles que alguma vez conseguiria ler, mas que, nem pelo facto de disso ter plena consciência, era capaz de deixar de o fazer. Era uma espécie de "doença", algo dispendiosa mas incurável. Sem surpresa, fiquei com a impressão de não foi sensível a esta minha irónica explicação.

Segundos volvidos, disse-me: 

- Eu também já li um livro.

Aceitei com discreta delicadeza a sua singular revelação e inquiri que livro era.

- Era um livro sobre religião, escrito por um americano, um livro muito bom. Gostava de lê-lo outra vez. Mas emprestei-o a um conhecido que foi para João Pessoa e nunca mais consegui voltar a lê-lo. Já falei com gente de lá, para lho pedirem, mas não mo devolve. Para o ano, quando fôr à Paraíba, vou ter com ele e vai ter de mo devolver. A bem ou a mal.

- Mas há tantos livros! Porque é que não lê outro livro? Por exemplo, a pessoa que escreveu o livro que leu até pode ter escrito outros, tão bons ou melhores do que esse. Sabe o nome da pessoa que escreveu o livro?

- Não sei, não me lembro, mas também não me interessa. Eu só quero voltar a ler esse livro. Não quero ler outros livros.

E calou-se, numa tristeza evidente.

Nunca cheguei a saber como se chamava o livro que o meu simpático motorista tinha lido, nem quem era o americano que o tinha escrito. E para sempre senti imensa pena daquele homem, não pelo facto de não querer ler mais livros, mas porque percebo muito bem a angústia de alguém perder aquela que era toda a sua biblioteca. 

A crise do "Público"

É uma triste notícia para o país a crise que parece afetar o jornal "Público" e seria trágico para o panorama jornalístico nacional se ela viesse a significar o encerramento do jornal - ou a sua transformação num produto de natureza diversa, do qual apenas sobrevivesse o nome.

Em tempos, já aqui se disse algo sobre o jornal "Público" e sobre o que ele representou para Portugal. Porém, esta crise leva-me a duas novas questões.

A primeira é a necessidade de ponderarmos se, no mercado de leitura de jornais atual em Portugal continua a haver ainda espaço para um diário com as caraterísticas do "Público", isto é, com um jornalismo que, como há décadas dizia o "L'Express", "va plus loin...". Se tivermos de chegar à conclusão negativa, então o "défice" português vai muito para além das contas públicas.

A segunda reflexão é no sentido de tentar perceber se algumas opções em matéria de jornalismo, que o "Público" optou por seguir nos últimos anos, serão, no todo ou em parte, a razão da crise que o jornal atravessa

quarta-feira, outubro 10, 2012

A barragem do Tua

O início da construção de uma barragem na foz do rio Tua, perto da sua confluência com o Douro, suscitou preocupações em diversos setores portugueses e internacionais. Embora a barragem, em si mesma, fosse edificada fora da "zona protegida" do chamado Alto Douro Vinhateiro, com efeitos mínimos sobre esta, ela incide fortemente na respetiva "zona de proteção". Por essa razão, o Estado português deveria ter feito uma notificação prévia à UNESCO, antes do início dos trabalhos. Erradamente, isso não foi feito. Porque reconhecemos os erros, quando praticados, Portugal já o disse, publicamente.

Em 2011, a UNESCO decidiu enviar a Portugal uma missão encarregada de verificar a compatibilidade do empreendimento com a manutenção do estatuto da região do Alto Douro Vinhateiro como "património mundial" reconhecido pela UNESCO.

Essa missão produziu um relatório que evidenciava diversos pontos que necessitariam uma resposta muito concreta por parte de Portugal. Essa resposta foi dada, em devido tempo. Porque a realidade no terreno mudara e importantes medidas, tidas por essenciais no relatório da missão de 2011, tinham, entretanto, sido implementadas, foi por nós solicitada a realização de uma nova missão técnica à região.

Entretanto, e ainda na sequência do relatório da missão de 2011, e não obstante as respostas entretanto avançadas por Portugal, foi apresentada ao Comité do Património Mundial da UNESCO, a ser avaliada na reunião que teve lugar em S. Petersburgo, em fins de junho, uma proposta de decisão no sentido da suspensão imediata dos trabalhos de construção da barragem.

Portugal considerou que a paragem das obras era injustificada. Pessoalmente, durante o mês de junho, mantive reuniões em Paris com cada um dos 21 membros do Comité, oriundos de 21 diferentes países, a quem expliquei, em pormenor, o que tínhamos entretanto feito e, muito em especial, que nos parecia sem sentido estar a suspender os trabalhos, na pendência da realização de uma nova missão. 

A nossa posição foi escutada. Por unanimidade, na sessão de S. Petersburgo, esses 21 membros rejeitaram o projeto de decisão apresentado pelo Centro do Património Mundial e aceitaram a proposta que submeti, em nome de Portugal, no sentido de haver uma "redução significativa" do ritmo dos trabalhos até à publicitação do relatório da nova missão.

Tive oportunidade de acompanhar essa nova missão, que teve lugar em finais de junho e inícios de agosto. O seu relatório foi ontem conhecido.

No essencial, o relatório diz: "A missão concluiu, de acordo com informações oriundas de diferentes fontes, que a construção da barragem parece ter um impacto global limitado no valor excecional universal do bem patrimonial e na sua integridade e autenticidade em termos de impactos na paisagem que reflete os processos de vinicultura". Em linguagem mais clara, fica evidente que o empreendimento não é incompatível com a preservação do estatuto de "património mundial" do Alto Douro Vinhateiro.

Porém, nem tudo está ainda concluído. Embora do  relatório da missão, que - diga-se, porque é relevante - integrou a técnica responsável pela missão de 2011, resulte uma implícita autorização de prosseguimento das obras de construção da barragem, se bem que a um ritmo limitado (mas já não uma "redução significativa" desse ritmo), Portugal tem de dar resposta, até 1 de fevereiro de 2013, a algumas questões que são colocadas pelo relatório ora divulgado. Para nós, esse trabalho essencial começa já hoje, com abertura e transparência, na plena cooperação que desejamos manter com a UNESCO e, muito em particular, com o Comité do Património Mundial.

A questão da barragem do Tua é um tema que suscita muitas preocupações em diversos setores em Portugal, as quais, aliás, a missão técnica da UNESCO teve oportunidade de ouvir e avaliar. Não tenho a menor dúvida que esses setores vão continuar a contestar a construção da barragem. Porém, um argumento importante deixam, a partir de agora, de poder esgrimir: a eventual incompatibilidade da construção da barragem com o estatuto do Alto Douro Vinhateiro como "património mundial" da UNESCO. 


Em tempo: aquilo a que eu costumo chamar o "jornalismo adversativo" (isto é, aquele que não consegue dar uma notícia tida como "positiva" sem a fazer seguir de um redutor "mas"), lá procurou descortinar, no seu tradicional esforço de reduzir o impacto daquilo que constitui a verdadeira novidade - a barragem do Tua pode construir-se, sem que isso ponha em causa o estatuto do Alto Douro Vinhateiro como "património mundial" -, nas respostas que terão de ser dadas a algumas recomendações do relatório dos peritos da UNESCO, uma espécie de "compensação" face ao sentido inequívoco da decisão, favorável aos interesses que o Estado português entendeu dever defender. Era só o que faltava que uma "boa notícia" saísse a público sem algumas reticenciazinhas!...) 

Alemanha

Ontem, ao observar o modo como a chanceler alemã foi recebida em Atenas, dei comigo a pensar no constante peso da História no modo como os países mutuamente se olham.

Um dia há-de fazer-se um historial da germanofilia em Portugal, não necessariamente numa perspetiva caricatural, ligada ao tempo da 2ª Guerra mundial, mas numa dimensão temporalmente bem mais alargada. 

No que me toca, e embora seja pouco dado a tropismos por pátrias alheias, sempre me senti um pouco "germanófilo", pela grande admiração que tenho pelo esforço notável de reconstrução e reconciliação interna daquele país, pela forma correta como nele foram e continuam a ser acolhidos os migrantes portugueses, pela constante seriedade colocada pela Alemanha nas relações económicas com Portugal. Nunca esqueço também o modo amigo como o antigo chanceler Helmut Kohl tratou o caso português nas instituições comunitárias e, já posteriormente, outras atitudes que muito nos ajudaram naquele contexto, de que fui testemunha próxima. No futuro imediato, espero poder sustentar razões para, à minha maneira, continuar a ser "germanófilo".

Na carreira diplomática portuguesa, a germanofilia foi sempre uma corrente minoritária, sendo superada, à evidência, pela anglofilia, pela francofilia e, um pouco mais tarde, pela americanofilia.

Nesse particular afeto por Berlim (e, temporariamente, por Bona), alguns mostraram sempre um zelo fora do vulgar. Um dia dos anos 90, um desses colegas foi "premiado" - reconheça-se, com algum exagero - com o aparecimento na porta do seu gabinete de um cartaz com dizeres que copiavam os modelos existentes nas fronteiras que, em Berlim, delimitavam o setor americano. Nesse cartaz podia ler-se: "Achtung! You are leaving the Portuguese sector".

Os anais das Necessidades, onde esta historieta é bem conhecida, não registam o nome do autor da brincadeira. Ainda bem. 

terça-feira, outubro 09, 2012

Nuno Grande (1932-2012)

Alguns comentadores e leitores começam a ficar cansados de verem este blogue transformado num regular registo necrológico. Podem crer que eu também. E, em particular, estou cansado de ver desaparecer pessoas que, por uma ou outra razão, considero merecerem, na hora da sua partida, este registo mínimo de admiração e respeito.

Hoje, soube-se da morte do professor Nuno Grande. Para além da sua relevante atividade académica, era um cidadão de corpo inteiro, com uma intervenção cívica de grande rigor e coerência.

Encontrámo-nos algumas vezes e lembro-me de partilharmos a recordação de, em tempos diferentes, ambos termos feito a nossa instrução primária na antiga escola Conde de Ferreira - a "escola do trem" -, em Vila Real.

domingo, outubro 07, 2012

Reuniões temáticas

O SMS, recebido na tarde da passada sexta-feira, da minha jovem "oficial de ligação" (pertencente ao "ask me team", aposto nas costas das respetivas t-shirts, que com imensa simpatia nos assiste) era bem claro: "You are requested to a meeting at 4 pm with the Minister of Agriculture of Azerbaijan". Seguia-se um endereço em Baku, escrito em azeri. Olhei para o relógio e faltava menos de uma hora. Interrompi a reunião em que participava e, com um condutor arrancado à organização, que só entendia a língua local, zarpei para o encontro.

Pelo caminho, fiquei a matutar no que poderia dizer ao ilustre anfitrião. Seria alguma coisa de natureza bilateral, aproveitando a minha passagem por Baku? O meu ministro tinha passado por aqui há alguns meses. Teria ficado algo pendente? Algum "protocolo de cooperação" por cumprir? Porque não gosto de "brincar em serviço", e embora a embaixada portuguesa competente neste país seja a que está situada em Ancara e o Fórum em que eu participava nada tivesse de bilateral, antes de sair de Paris eu tinha pedido ao MNE um papel sobre o relacionamento Azerbaijão-Portugal. "À cause des mouches", como dizia um amigo meu "versado" em francês. Estudara-o e, como mandam as regras, deixara-o prudentemente em Paris. Mas não me recordava de nele se falar de agricultura. Ou seria a minha memória?

A agricultura não é propriamente o meu "forte", mas, porque a diplomacia se transforma, quando as coisas assim o exigem, numa nobre arte do desenrascanço elegante, fui preparando algumas ideias para a conversa com o governante azeri, à medida que o meu condutor furava pelo tráfego infernal da cidade, ungido do dever, e dos fantásticos direitos rodoviários correspondentes, de transportar uma personalidade estrangeira ao seu governante.

Talvez viesse à baila a questão da próxima revisão da PAC e a onda protecionista que se avizinha, com o alibi da "segurança alimentar" europeia. Ou seriam as nossas experiências nacionais, em especial em matéria de extensão rural, que mobilizavam a curiosidade de Baku? Ou talvez pudesse surgir na conversa algum "memorando" de colaboração entre universidades (interesseiramente, lembrei-me da UTAD). Logo se veria. Tomaria nota do que me fosse dito e informaria Lisboa (e a nossa gente em Ancara, claro).

Cheguei sobre a hora à porta do imenso edifício do ministério. Um engravatado funcionário esperava-me, com olhar ansioso. Apressados, subimos por um elevador, depois seguimos por um longo corredor, até entrar numa sala de reuniões.

Para minha imensa surpresa, por lá estavam o grupo de colegas embaixadores junto da UNESCO, que comigo tinham vindo desde Paris. Todos tinham recebido o mesmo SMS e tinham saído das suas reuniões da mesma forma apressada que eu. E o encontro que estava prestes a começar era, muito naturalmente, com o ministro azeri da ... Cultura, com o qual discutimos temáticas que se prendem com as nossas tarefas na UNESCO.

sábado, outubro 06, 2012

Fundações

Na razia das fundações que por aí vai, li o nome da "Fundação maestro José Pedro", em Viana do Castelo, como uma das que poderia acabar. Não lhe conheço a história, nem tenho a menor ideia sobre se a sua atividade tem maior ou menor mérito. Mas, confesso, preocupa-me o seu destino.

Porquê? Porque o edifício que ocupa foi o local onde, até aos meus 17 anos, passei todas as minhas "férias grandes". Andei muito por ali, por aquela casa para onde os meus avós paternos vieram viver, em 1912, chegados de Ponte de Lima. 

Conhecia todos os cantos àquela casa. Com a curiosidade de um visitante regular que, da infância à adolescência, ia mudando de interesses, explorei-lhe todos os lugares, sabia onde "iam dar" alguns falsos armários, que eram misteriosas ligações entre espaços longínquos. No imenso quintal, depois reduzido por opções imobiliárias, tenho algumas das minhas primeiras fotos. A "loja", com solo térreo, que tinha zonas onde ninguém ia, não tinha segredos para mim. Recordo a grande sala do 1º andar, com um teto magnífico, onde estava pintada uma cena da mitologia grega, lembrando a que fora sala de música. A casa havia sido um colégio e, no 2º andar, ainda havia números nas portas de alguns quartos. No alto do edifício havia, nesse tempo, a "torre", um saguão para onde se subia por uma escada esconsa, lugar onde havia de tudo, com bela vista para a doca e para o largo onde se fabricavam as cordas, para o qual eu era atraído em muitos desses meses de agosto. Tenho na memória, talvez mais presente porque era o local diferente daquele onde eu vivia o resto do ano, uma imensidão de momentos percorridos por aquelas salas, com os meus pais e com a minha avó (o meu avô morrera já em 1922), com os meus tios e primos, em tempos muito diversos, com alegrias breves de infância, edulcoradas pela seletividade da memória, com outros menos agradáveis, determinados pelas leis da vida.

Hoje, quando por lá passo (e passo muito por lá), olho aquelas janelas onde por muito tempo apareciam, sentadas nos bancos de pedra que moldavam o interior das janelas do topo, a minha avó Filomena e a minha tia Zé, que o meu pai designava pelo "comandante" e "imediato" desse que sempre foi o barco da sua saudade eterna, no seu agradável exílio transmontano. Há algumas décadas que não entro naquela casa, através da bela escadaria de pedra do largo Vasco da Gama ou da escada elegante da rua dos Rubins.

Nesta estranha questão que envolve as fundações, verdadeiramente, só tenho esta preocupação. Fica aqui esta declaração de interesses, "à toutes fins utiles".

sexta-feira, outubro 05, 2012

Margarida Marante

Para uma certa geração que acompanha(va) com atenção a política portuguesa, Margarida Marante foi uma figura mediaticamente saliente. Talvez haja sido das pessoas a quem vi construir algumas das melhores entrevistas políticas feitas na televisão portuguesa. Notava-se que as preparava com imenso cuidado e a prova do seu sucesso era a regular inquietude que provocava nos seus interlocutores, que tratava com uma displicência que chegava a raiar a provocação. Admirou-me sempre o risco assumido pelas televisões ao colocarem uma jornalista tão jovem nesses exercícios de grande responsabilidade. Dos quais, diga-se, nunca a vi sair mal, embora não raramente eu próprio me irritasse imenso, porque ela deixava bem claro que sempre esteve longe daquilo que eu próprio pensava.

Falei pessoalmente com Margarida Marante poucas vezes. Recordo uma noite, mais longamente, num jantar em casa de amigos comuns. Não me pareceu uma pessoa de feitio fácil, nem sequer mobilizadora de uma automática simpatia - e seria fácil não o dizer, no dia seguinte àquele em que sei da sua morte. Era uma mulher muito bonita, mas percebia-se que se recusava em absoluto a abusar disso. Depois de ter lido, há tempos, alguma coisa sobre os seus problemas pessoais, só posso lamentar ver uma pessoa com o seu talento desaparecer tão cedo, muito provavelmente "desta vida descontente".

Realidade virtual

Não é fácil dizer alguma coisa muito original num debate sobre "Novas aproximações metodológicas para o processo de globalização no século XXI". É um tema complexo, marcado pela interpenetração de teorias, por vezes um tanto dispersas e de discutível fundamento e compatibilidade, em especial para quem, como eu, não vem do mundo académico. Mas temos de convir que um certo "caos" faz sempre parte deste tipo de exercícios, neste caso moderado por um prémio Nobel de Stanford, Robert B. Laughlin.

Neste imenso Forum, que tem lugar em Baku, capital do Azerbaijão, sendo o único português nestes quase 700 participantes, não me arrisco a tentar ser excessivamente criativo, pelo que apenas me dedicarei a sublinhar algumas coisas de bom senso, que justifiquem o convite que me fizeram para aqui vir, na qualidade de representante português na UNESCO.

Este tipo de reuniões é sempre um tempo de encontros inesperados, com conhecidos de outras andanças, a quem, por tradição, tendemos sempre a tratar como velhos amigos, como se comprova pelos generosos abraços trocados. Coisa que voltará a acontecer quando, em futuros contextos, viermos a cruzar com gente com quem agora por aqui trocámos impressões (e e-mails) pela primeira vez. Este é um ritual deste tipo de reuniões, que dá a alguns a impressão de pertencer a uma espécie de tribo, quando, na realidade, apenas fazem parte de um tecido desintegrado de "routiers" da palavra. Uma das comunicações desta manhã define tudo: "Transculturalismo e realidade virtual". É mais ou menos isso.

Bartolomeu

Vais hoje ter uma placa nas Escadinhas da Fonte da Pipa. Com a Fernanda e os amigos por lá. Imagino o que tu te ririas, Bartolomeu, se, há uns anos, falássemos disso, da ires ter uma placa numa parede. Vá lá! Se calhar, até achavas graça, mas alvitrarias, pela certa, para chocar alguns, que gostavas que desenhassem a foice e o martelo no retângulo de mármore. Não te fazem essa vontade, mas, descansa, também ninguém põe lá nenhuma setinha... Não sei se a pedra é de Pero Pinheiro, onde aculturaste as "troupettes" da Slade às gravuras da pátria. Mas é capaz de ser. A data foi bem escolhida: 5 de outubro. Lembra a imensa memorabilia, verde e vermelha, principalmente vermelha, que juntaste por décadas naquela casa. Ao longe, do terraço, vislumbrava-se o mar por onde o último Bragança com trono, que, coitado, nem sequer era o pior deles todos, embarcou para a "pérfida" terra do teu (e, por tua culpa, também meu) Crabtree. Mas por que raio estou eu para aqui a escrever-te, do Azerbaijão (é verdade, Barto, ando por aqui, por Baku, por mor da UNESCO que me calhou em rifa), algo que só uns "happy few" entendem? Olha!, porque hoje me deu para isto, para te mandar um abraço muito republicano...

Para todos os outros, aqui fica tudo numa só frase: hoje, em Sintra, será afixada uma placa evocativa, na casa que foi propriedade e onde viveu o gravurista Bartolomeu Cid dos Santos, antigo professor na Slade School of Fine Art, em Londres, cidade onde faleceu há quatro anos.

quarta-feira, outubro 03, 2012

Voos

Já não passava pelo aeroporto de Frankfurt há alguns bons meses. Ontem, ao perder por ali algumas horas, esperando ligação para um destino bastante distante, cruzei-me mentalmente com um tempo em que, invariavelmente, por lá andava quase todas as terças-feiras, a caminho de Lisboa, vindo de Bruxelas, em anos em que, nesse dia da semana, não havia voo direto ao fim do dia e em que eu tinha a negociação do tratado de Amesterdão sob a minha responsabilidade.

Frankfurt é um dos mais movimentados aeroportos do mundo e, com a sua dimensão, tornou-se hoje extremamente desconfortável, não obstante a inegável eficácia do serviço que presta. As distâncias a percorrer são imensas e há um "stress" no ar que não é nada saudável. 

Ao andar por aqueles longos corredores, foi inevitável recordar o cansaço daqueles fins de tarde dos anos 90 e, em especial, o padecimento por que passava um colaborador e grande amigo meu, hoje embaixador num "hotspot", cujo perfil físico sempre causava insuperáveis suspeitas aos homens da segurança, que o obrigavam, para gozo dos restantes acompanhantes, a um "strip-tease" num reservado, do qual saía a bufar, com imprecações impublicáveis e comentários que faziam regressar os alemães a tempos por eles esquecidos.

Assim, ao calcorrear aquele aeroporto, por áreas bordejadas daquilo que para alguns ainda são tentações consumistas, dei comigo a dar graças por ter-me libertado, de há muito, da vida de viajante aéreo regular. Ainda me recordo do tempo em que viajar e passar por aeroportos tinha um certo "glamour" e funcionava como um sedutor choque de cosmopolitismo. Hoje, com a hiper-segurança, com as limitações e os controlos, viajar de avião tornou-se numa grande chatice. Por vezes inevitável, como ontem me aconteceu. 

A Ordem, os advogados e os diplomatas

No número correspondente a agosto/setembro deste ano, o Boletim da Ordem dos Advogados publica uma entrevista comigo que me atrevo a pensar que pode ser do interesse de alguns leitores deste blogue.

terça-feira, outubro 02, 2012

Ir embora


Os tempos eram outros, as figuras que, por Portugal, faziam política também. Pouco dados ao mundo internacional, muitos tinham, como costumava dizer (cito de cor) o meu amigo Nuno Bredorode Santos, a fronteira do Caia como limite à sua livre expressão linguística. Alguns, como o Eça referia, cuidavam em falar "patrioticamente mal" certas línguas estrangeiras. Outros, nem isso podiam ou tentavam. Esta história é sobre um destes últimos.

O ambiente era um aeroporto de uma capital estrangeira, no termo de uma visita oficial, feita sempre com intérpretes à ilharga. As despedidas estavam como que concluídas, a delegação portuguesa tinha já embarcado e, como é de regra, o convidado seria o último a partir. Por uma qualquer razão, as coisas tinham "emperrado" e ninguém dava indicação para ele entrar no avião. O anfitrião, com quem, ao longo desses dias, falara através de um intérprete, e nitidamente apenas para encher o tempo com algo mais do que sorrisos ou gestos, disse ao nosso homem umas palavras em inglês. O intéprete desse país tinha-se sumido, e quem, da nossa parte, era por isso responsável também já tinha embarcado.

Porque vi o nosso político um tanto embaraçado, face ao comentário do seu anfitrião, que não percebera ou ao qual não sabia como responder, aproximei-me e, em voz baixa, disse-lhe "Se quiser que traduza alguma coisa...". O nosso homem olhou para mim, muito sério, e apenas retorquiu: "Eu quero é ir-me embora!". Contive o riso, fui avisar o protocolo e, um minuto depois, ele lá embarcou, de regresso à terra onde tinha as mais amplas liberdades linguísticas. Que não usava muito, valha a verdade.

Da inveja

Deve ser defeito meu, mas não me deixo impressionar pela campanha populista de alguns jornais quando falam das "reformas milionárias" de alguns trabalhadores do funcionalismo público. É muito mau sinal quando uma sociedade, em lugar de se preocupar com o que os mais pobres não têm, vive obcecada com aquilo de que os mais afortunados beneficiam. Chama-se a isso inveja. Digo isto com todo o à-vontade de quem não virá a estar abrangido por "reformas milionárias" e que, por ora, não tem outros réditos senão aqueles que ganha com o seu trabalho. 

Acho muito curioso, e demonstrativo de um certo espírito nacional, adubado pela crise, que se "condenem" no pelourinho mediático os trabalhadores que, ao fim de uma vida de carreira contributiva, tendo visto descontados, mês após mês, dos seus salários, montantes que engrossaram os fundos da Caixa Geral de Aposentações, passam a receber as retribuições correspondentes a esses descontos - sejam elas de que montantes forem.  

Dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros, reagi sempre quando vi colegas diplomatas a reclamar pelo facto de alguns funcionários administrativos, das embaixadas ou dos consulados, terem uma reforma bem superior à sua. Se descontaram mais, recebem mais. Tão simples como isso.

O Estado não faz nenhum favor ao pagar aos reformados da função pública, nem lhes está a conceder qualquer direito especial. Pelo contrário: deve-lhes é estar grato pelo facto de poder ter utilizado, durante décadas, sem pagar quaisquer juros, o dinheiro que essas pessoas lhe confiaram, sob o compromisso de que, quando deixassem o serviço ativo, seriam remunerados em função daquilo que descontaram.

Ainda neste contexto, a presente crise proporciona-nos encontros educativos. Há dias - e podem acreditar no que lhes vou dizer - ouvi da boca de alguém o seguinte raciocínio: dado o "peso" que o pagamento das reformas hoje representa para o orçamento e tendo em especial atenção o facto dessas pessoas não terem uma elevada capacidade reivindicativa (não podem fazer greves, por exemplo), é "perfeitamente natural e legítimo" que se caminhe no sentido de fazer incidir sobre os reformados e respetivos rendimentos os cortes orçamentais a efetuar. Falou mesmo deles como "alvos prioritários".

Isto foi dito por essa pessoa num tom frio, desprovido de qualquer emoção. Não sei se há alguma edição atualizada do Malthus para ajudar a gente que pensa dessa forma a, já agora!, teorizar melhor estas ideias. Na altura en que ouvi aquilo, sei lá bem porquê!, veio-me à memória o título de uma peça de Karl Valentin que um dia vi encenada na Cornucópia. Mas, entretanto, já me esqueci dele (do título, claro)...

segunda-feira, outubro 01, 2012

Femininas e masculinos

Há meses, na antecâmara de um almoço, ouvi um secretário de Estado francês chamar a uma colega minha "madame l'ambassadrice". A embaixadora reagiu, com elegância, e disse que não era "ambassadrice", porque essa é a designação para a mulher de embaixador, pelo que devia ser chamada por "madame l'ambassadeur". Ela talvez tivesse razão, mas o governante limitava-se a seguir aquilo que é, por aqui, uma prática comum: designar por "ambassadrice" quer as mulheres embaixadoras, quer as cônjuges dos embaixadores, que, na língua portuguesa, são embaixatrizes. O que, de facto, aqui em França, provoca alguma confusão.

Há três dias, no parlamento francês, um deputado dirigiu-se à ministra da Habitação como "madame le ministre". A ministra reagiu e exigiu ser tratada por "madame la ministre". Neste caso, o deputado limitou-se também a seguir a regra tradicional.  Para a ministra, como a palavra não muda de género, só o artigo pode mudar.

Em Portugal, recordo-me ter havido um ligeiro debate quando Maria de Lourdes Pintasilgo foi indicada para a chefia do governo, em 1979. Por uns dias, discutiu-se se era "primeiro ministro" ou "primeira ministra". Venceu a segunda fórmula, com naturalidade. Já a decisão de Dilma Russeff de ser chamada de "presidenta" provocou várias reações, mais em Portugal do que no Brasil, ao que me pareceu.

Esta femininização dos nomes parece-me natural e não me choca, embora eu seja pouco permeável ao "politicamente correto". Mas hoje, não deixei de ficar ficar curioso, ao ler este comentário...

Notícias da bola


Num largo de Barcelos, à saída da "Bagoeira", no mês de Agosto de 1975, vi três fulanos que me pareceram excessivamente "interessados" na parte traseira do meu Fiat 128. Aproximei-me e perguntei o que se passava, identificando-me como proprietário do automóvel. Com ar bastante calmo, um deles olhou para mim e disse: "Estamos a discutir se havemos de partir o vidro ou 'arrebentar' uma das portas". "Essa agora!, porquê?", perguntei. "Porque temos de arrancar esta bola vermelha", apontando para um pequeno autocolante, com o símbolo do MES, que eu tinha no canto do vidro. E olharam para mim com um ar neutro, que revelava alguma ameaça e a segurança da total impunidade para a levar à prática.

Não valia a pena estar com muitas conversas. Os tempos eram tensos, em especial nessas bandas do Minho, onde o MDLP, associado a setores da igreja, contestava abertamente os caminhos da Revolução. Tudo o que "cheirasse" a esquerda era por ali reprimido, com sedes de alguns partidos a arder (num caso, com gente a morrer lá dentro), com bombas a matar pessoas, com simpatizantes de algumas forças políticas desse setor a serem perseguidos. A polícia e alguma tropa fazia de cega, quando não acontecia, como muitas vezes aconteceu, colaborar na "festa". Nesse "verão quente" o diálogo não era a palavra de ordem mais ouvida.

Com assumida cobardia, fui dizendo: "Bem, eu estou de saída, ia agora tirar o carro". Os fulanos entreolharam-se. Um deles disse: "Se o tirar já, não partimos o vidro. Mas não queremos ver por aqui gente como você". E lá me fui embora. Dessa vez, porque volto sempre com grande prazer a Barcelos, uma belíssima cidade.

O autor da "bola vermelha", da cor dos cravos que esses barcelenses não apreciavam, com uma estrela amarela que simbolizava o que isso sempre quis dizer para quem então pensava as coisas de uma certa maneira, era Robin Fior, que acabo de saber que morreu ontem. 

Não tenho ideia de alguma vez o ter encontrado até ao ano passado, quando, no dia 12 de novembro, lhe fui apresentado na Costa da Caparica, onde, com algumas centenas de amigos e conhecidos, me reuni numa alegre almoçarada, que assinalou a passagem de três décadas sobre o termo da existência do Movimento da Esquerda Socialista (MES).

À sombra dessa bola e dessa estrela, juntámos, nesse tempo, o nosso entusiasmo e demos expressão política a setores de uma geração que, não se revendo nas correntes mais óbvias da esquerda, decidiram criar um movimento um tanto atípico, que nunca agradou ao partidos clássicos e que, por alguns anos, agitou as águas da vida política portuguesa. Resta a memória, que, para sempre, será ajudada pela arte de Robin Fior.

(Em tempo: que fique claro que não desconheço que, se o símbolo do CDS, do PSD ou até do PS surgisse, em situação idêntica, por esses tempos, em automóveis estacionados em certas localidades alentejanas ou da "cintura industrial" lisboeta, o seu destino seria similar. O "verão quente" afetou o "clima" político por todo o país.) 

Armando Marques Guedes (1919-2012)

Quando um dia, no ISCSPU, concluí a disciplina de Direito internacional público, que ele regia, com 13 valores, o professor Armando Marques Guedes chamou-me e disse-me: "Prometa-me que volta na segunda época. Não percebo esta sua nota. Você precisa de 'subi-la' ".

Não lhe fiz a vontade e só voltámos a falar do assunto alguns anos depois, no dia em que o voltei a encontrar, no júri de admissão ao MNE. Disse-me então, nos claustros das Necessidades, com alguma ironia: "Se você 'passar' nesta entrada para o MNE, acabará implicitamente por 'subir' aquela má nota que teve em Direito internacional público". Lembro-me de ter ficado surpreendido e um pouco orgulhoso por ele se ter lembrado. E, de facto, "passei", num júri em que tive também, como arguente, na área da Economia Política, um professor que dá pelo nome de Aníbal Cavaco Silva. Ambos me aprovaram.

Nos meus tempos do ISCSPU, dizia-se que Armando Marques Guedes tinha tido um dissídio com Marcelo Caetano na faculdade de Direito e que, tal como Adriano Moreira, tinha posteriormente seguido um percurso académico algo solitário. Era um homem muito agradável, de trato fácil, embora sempre me parecesse um aristocrata na vida universitária - com a leitura positiva que esta qualificação pode, às vezes, ter. Já o tinha encontrado na cadeira de Direito Administrativo, em que nos dava aulas com exemplos de grande sabedoria e uma procurada e hábil distanciação face aos tempos políticos que se viviam, nesse final dos anos 60. No que recordo, tenho-o por um professor rigoroso, que era por nós bastante respeitado, mesmo no seio de quantos eram academicamente mais "agitados", grupo do qual eu fazia (naturalmente) parte. Já o não via há muitos anos.

Acabo de saber do seu falecimento, com a bela idade de 93 anos. Deixo aqui um abraço sentido ao Armando, seu filho e meu amigo.

sábado, setembro 29, 2012

UTAD

Decidi colocar ontem um ponto final à colaboração que, desde 2009, prestava à Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD), saindo do respetivo Conselho Geral, a que presidia. Fui acompanhado nesta decisão por um grupo de outros membros da sociedade civil, oriundos de diversos setores exteriores à universidade, que, para aquele órgão e tal como eu, haviam sido convidados.

Foi um trabalho muito interessante, uma tarefa onde, de forma desinteressada, com algum custo pessoal, procurámos ajudar a refletir sobre uma estratégia nova para a universidade, capaz de lhe permitir enfrentar as grandes dificuldades com que hoje se debate. Porém, numa reflexão conjunta, acabámos por concluir que persiste na UTAD uma inércia e uma resistência à mudança que torna sem sentido a nossa participação. Tal como dissemos no documento em que assumimos a nossa demissão, esperemos que outros tenham "mais arte e mais sorte para ajudarem a dar um novo rumo à UTAD, que permita a sua sobrevivência e o seu progresso".

A UTAD é uma excelente universidade, dispõe de um prestígio e de uma qualificação em certas áreas técnicas que pede meças a outras instituições congéneres, mas necessita urgentemente de concentrar os seus recursos naquilo que melhor sabe e deve fazer, à luz da sua história educativa, evitando alimentar uma dispersão que se arrisca a degradar a sua imagem. Para a afirmação da UTAD no tecido universitário português impõem-se, na nossa perspetiva, séria ruturas e algumas drásticas mudanças. E a vontade para as levar a cabo, a nosso ver, não existe.

Não foi sem alguma pena que tomei esta decisão, relativa à universidade da minha terra. Porém, estou certo de que quem conhece a UTAD e a sua situação perceberá o porquê deste gesto.

sexta-feira, setembro 28, 2012

Política externa

Jaime Gama vai proferir uma conferência no Ministério dos Negócios Estrangeiros, sob o tema: "Franco Nogueira - argumentação e obstinação". Tenho pena de não poder estar presente nesta evocação, que, de forma singular, reúne duas das figuras mais marcantes da política externa portuguesa do século XX.

Lembrei-me ontem de Jaime Gama ao ler as primeiras páginas do livro que o conselheiro especial de Nicolas Sarkozy, Henri Guaino, acaba de lançar. Guaino revela que, numa reunião com os seus colaboradores, após a derrota de maio, Sarkozy terá dito: "Não tenham azedume, não se constrói nada sobre o azedume".

A minha recordação prende-se com uma vitória: a eleição de Portugal para o Conselho de segurança da ONU, em 1996. Na sequência dessa dura campanha, numa conversa com Jaime Gama, eu expressei a vontade de tirar algum desforço por virtude da atitude assumida por alguns países, que militantemente haviam trabalhado contra a candidatura portuguesa. Gama disse-me: "Claro que não vamos esquecer o que se passou, mas, a partir de agora, na relação com esses países, vamos recomeçar como se nada disso se tivesse passado. Uma política externa não se constrói com base em ressentimentos".

Tinha imensa razão.

Ainda o 28 de setembro

Já falei neste blogue, por mais de uma vez, do dia 28 de setembro de 1974 (em especial aqui e aqui). 

Recordo hoje um episódio vivido na sequência dessa data marcante para a Revolução portuguesa.

O general Spínola, presidente da República, na ressaca dos acontecimentos e das manifestações desse dia, havia convocado o Conselho de Estado, para 30 de setembro. Fora anunciado que, nessa altura, faria uma comunicação ao país, em transmissão pela televisão e rádios, diretamente de Belém.

Eu estava pelo palácio da Cova da Moura, onde era adjunto da Junta de Salvação Nacional, a que Spínola presidia e que, como tudo indicava, acabaria em breve a sua existência. Juntámo-nos uns tantos, de tendências político-militares bastante diversas e até antagónicas, em torno de um televisor, para ouvir a intervenção do chefe de Estado.

Os tempos eram muito tensos, o ambiente político era de cortar à faca. Naquela sala estava gente cujo futuro iria ser, a partir desse dia, muito díspar. Lembro-me que havia por lá um general, regressado de Angola, que sabíamos ser um "spinolista" ferrenho, que estava acolitado por figuras que não conhecíamos, com cara patibular, de quem tinha ficado do lado dos derrotados nas batalhas das vésperas. Todos antecipávamos as palavras do "velho" (como os "spinolistas" gostavam de chamar à sua figura tutelar). A ideia mais comum era a de que se demitiria em direto das funções, mas outros cenários, nomeadamente de alguma "resistência" à recente derrota nas ruas dos seus apaniguados, ainda eram plausíveis.

O discurso começou, com a voz rouca do general, naquele registo épico e um pouco teatral que era o seu, a dramatizar, como era de esperar, a situação política, na exata linha das suas anteriores frustradas tentativas de fazer levantar a suposta "maioria silenciosa" do país. O diagonóstico que saía da sua boca era ácido e impiedoso para os vencedores dessas horas. Todos olhávamos o aparelho de televisão mas, verdadeiramente, policiávamo-nos pelo canto do olho, sabendo que cada um "lia" as palavras de Spínola de forma diferente. Para mim, como militar "a prazo", que me via do lado vencedor da contenda, o momento era excitante.

A certo passo da intervenção, mas ainda antes do anúncio da demissão do "caco" (como Spínola também era conhecido, por virtude do seu monóculo), um homem da Marinha, o Duarte Lima (não, não é esse!), não se conteve e fez ecoar pela sala alguns adjetivos qualificativos, muito pouco abonatórios do presidente da Junta de Salvação Nacional, a cujos quadros pertencíamos e em cuja sede estávamos. Praticamente, ninguém o acompanhou na expressão vocal dos sentimentos que o motivavam, os quais, no fundo mas apenas no íntimo, eram partilhados pela maioria dos presentes. Mas, com os diabos!, Spínola era um derrotado daqueles dias e havia outras maneiras de "explorar o sucesso", tanto mais que "não se dispara sobre ambulâncias". O Duarte Lima, porém, estava imparável, indignado com os ataques de Spínola ao MFA, e não se calava, nos insultos que ia proferindo, em crescendo. O general, a alguns metros dele, fervia de raiva, potenciada pela impotência que Spínola confessava no seu discurso. Os seus escassos acompanhantes remoíam em silêncio.

Quando tudo terminou, quando Spínola anunciou a sua demissão, todos nos levantámos, ainda um pouco aturdidos com o início de uma nova fase da Revolução que o seu gesto prenunciava. O tal general, lívido, passou pelo Duarte Lima e, num assomo de autoridade, lançou-lhe: "Você devia ter vergonha sobre o que disse". A compostura militar impôs-se e o Duarte Lima não reagiu. Ou melhor: deixou sair da sala o superior e comentou para nós: "Estive para o mandar à ....". Mas não mandou. E ainda bem.

quinta-feira, setembro 27, 2012

Discrição

Era um colega muito simpático, excelente profissional, mas algo distraído - alguns diriam "despassarado". 

Um dia, intervinha numa reunião comunitária, em Bruxelas, a propósito de um assunto com alguma delicadeza. A posição que Portugal defendia perante a Comissão europeia era partilhada por um outro país, o qual, no entanto, por uma qualquer razão, insistira em não ser identificado nominalmente na intervenção que seria feita pelo nosso delegado.

A apresentação pelo nosso colega da posição nacional correu com toda normalidade. A certa altura, para expressar que não estávamos isolados, acrescentou: "Aliás, a Comissão sabe bem que esta posição não é apenas defendida por Portugal. Há uma outra delegação, cujo nome não posso nem quero aqui revelar, que já expressou reservas idênticas às nossas. Essa delegação, a delegação grega, tem precisamente os mesmos problemas que Portugal ..."

A sala caiu em gargalhadas, os gregos ficaram furiosos e a historieta passou aos anais.

Técnicas

Umas das técnicas publicitárias que mais me irrita é aquela que presume, em função daquilo que adquirimos, qual o tipo de produtos que, naturalmente, nos deve interessar. Nessa base, são-nos feitas propostas absurdas. Hoje, na "Amazon", na sequência de uma compra eletrónica que fiz, apareceu-me o inevitável "as pessoas que adquiriram isto também compraram isto", numa associação bizarríssima de interesses. Todos passamos por este tipo de táticas, nos dias que correm.

A este propósito, e ainda no terreno dos livros (que quase esgotam a minha atividade mercantil quotidiana), recordo sempre uma técnica, de idêntica natureza, de que era regularmente alvo numa cadeia de livrarias no Brasil (ia jurar que era a "Siciliano"). 

Eram lojas superpopuladas de funcionários, que nos seguiam desde a porta de entrada e acompanhavam as nossas deambulações pelas mesas. Ao final de uns minutos, quando pegava num livro, aproximava-se de mim um empregado com um outro livro na mão e perguntava: "Não lhe interessa este livro?". A primeira vez que isso me sucedeu fiquei siderado, sem saber por que diabo o homem me estava a chamar a atenção para uma outra obra: "Porque é que pergunta isso? Por que razão podia eu estar interessado em ler esse livro?". A resposta foi simples: "Porque, se está a consultar um livro dessa mesa, é porque se interessa por esses temas e este livro, acabado de sair, é desse mesmo tema...". 

Fiquei sempre com a sensação de que esses funcionários, normalmente muito jovens, não faziam a mais leve ideia do conteúdo do livro que estavam a propor, mas que apenas se dedicavam a pôr em prática uma técnica de "marketing" que lhes tinham imposto. E, devo dizer, só a inexcedível simpatia dos empregados das lojas no Brasil evitou, a partir daí, que eu manifestasse a minha permanente irritação com este método promocional.

No final de contas, a "Amazon" terá aprendido a técnica no Brasil. Não é de admirar: a Amazónia é por lá...

Biblioteca da reforma

Ontem à tarde, durante o lançamento de um livro francês de culinária portuguesa, que organizei na embaixada, revelei a uma amiga, que se passeia com fidelidade pelos comentários deste blogue, que começo a criar uma espécie de renovada reserva temática de interesses, para ocupar os meus futuros tempos de reforma. Cada vez mais dou por mim a descobrir novos e bizarros assuntos, fora dos meus nichos tradicionais de curiosidade. Exemplos?

Há semanas, acabei de ler o "Les couleurs de nos souvenirs", um curioso percurso pela memória nostálgica das cores, da sua associação aos nossos diferentes períodos ou casos da vida, a referências que vão da roupa à publicidade, com reflexos naturais nos nossos estados de alma.

Ontem mesmo, ao fazer horas para uma reunião, observando a "rentrée" editorial nas mesas da "Gallimard" do boulevard Raspail, dei de caras com uma "Ethnologie de la porte"*, que me pareceu ser uma original especulação em torno dessa peça do nosso quotidiano, que usamos constantemente quase sem a notarmos e que tão decisiva é para o dia-a-dia das nossas vidas. Que seria o mundo sem as portas, essas fronteiras da intimidade e da discriminação, às quais batemos e com as quais, por vezes, também batemos?

O que eu tenho para ler...

(Editada pela "Métailié", uma magnífica editora a quem a literatura portuguesa muito deve)

terça-feira, setembro 25, 2012

Nós por lá

Tive ontem em casa, para um pequeno-almoço de trabalho com um responsável português da área do comércio externo e do investimento, um grupo de figuras daquilo a que vulgarmente se chama "os mercados". A ideia, que julgo ser sempre útil, é procurar sublinhar aspetos caraterizadores da atual situação económica portuguesa, dando conta de números e tentando esclarecer algumas questões.

Saio sempre destes exercícios com insolúveis dúvidas sobre a sua real eficácia, mas em diplomacia, como em publicidade, todos cremos que "água mole..."

Muito para além destas conversas especializadas, em que nos esforçamos por levar aos ouvidos do exterior aquilo que julgamos ser o interesse que nos cumpre defender, acho muito curioso ouvir as questões que os estrangeiros nos colocam sobre a nossa situação interna, na economia como na política. Tenho para mim que Portugal, nos últimos anos, se tornou um país "transparente". Não apenas o essencial do estado das nossas contas, salvo alguns incidentes insulares, correspondia àquilo que delas reportávamos internacionalmente, como o nosso dia-a-dia é hoje escrutinado ao pormenor, com alguns estrangeiros a saberem da nossa vida pelo menos tanto como nós. Não sei se isto é bom ou não, mas é o que é. 

Portugal foi, durante muitos anos, um "não-assunto" para o cidadão comum dos vários países, que sobre nós apenas conhecia, como caricatura tosca, o fado e a Amália, o futebol e o Eusébio (depois o Figo, agora o Ronaldo), a mania do bacalhau e o vinho do Porto, e, ainda, cumulativamente ou não, Mário Soares, Fátima e o 25 de abril, com o Algarve à mistura.

Por más razões (estas coisas têm de ser assumidas), Portugal, e o estado da sua economia, passaram a ser hoje temas da conversa corrente (quase sempre com o simpático "mas vocês não são a Grécia!"), mais ainda quando se apanha um embaixador à mão de semear. Tal como me aconteceu, ainda há horas, no barbeiro, que, tesourando-me as brancas, me perguntava (talvez aculturado na conversa da "gente fina" do XVIème) sobre o estado dos "spreads" das nossas obrigações (ainda bem que eu tinha lido, de manhã, o "Financial Times") ou o ritmo de queda dos salários em Portugal (tema sobre o qual entendi dever ser parco em comentários).

Nestes últimos anos, tenho vindo a concluir que, talvez mais interessante do que saber o que os outros pensam de nós, acaba por ser curioso tentar perceber, por detrás das questões que nos colocam, o que esperam que comentemos sobre o nosso próprio país, numa espécie de jogo de espelhos em que não podemos, como a Alice, passar facilmente para o outro lado.

segunda-feira, setembro 24, 2012

Diplomacia social

Ontem, no comemoração do dia nacional de uma grande potência, tive ocasião de comprovar, uma vez mais, que, na ordem internacional, sendo todos os países juridicamente iguais, alguns há que são bem mais "iguais" do que outros.

As festas nacionais dos países mais importantes estão sempre, um pouco por todo o mundo, recheadas de atuais ou antigas estrelas políticas (do governo e oposição), empresariais e até culturais, desejosas de aproveitar o melhor possível esses momentos, testemunhando com a sua presença o interesse por Estados que sabem relevantes à escala global, com os quais, por exemplo, os melhores negócios se fazem. Além disso, tais ocasiões acabam também por ser "social gatherings", para contactos e, vá lá!, também para alguns serem vistos, fotografados para revistas e relevados perante os "olheiros" avaliadores da hierarquia social. Esses são também momento áureos para o infernal bando dos "pique assiettes", que mendigam convites e sempre avançam, socialmente famélicos, sobre as mesas das vitualhas e bebidas.

Numa cidade como Paris, onde há quase centena e meia de embaixadas ou representações internacionais (no meu caso, somadas às muitas outras que atuam junto da UNESCO), e porque têm muito mais que fazer, os próprios diplomatas acabam por ser obrigados a fazer uma criteriosa seleção dos eventos a que esforçadamente comparecem. Aqui entre nós que ninguém nos lê, para os diplomatas com maior rodagem, os cocktails representam, regra geral, longos minutos de padecimento, de conversas sem particular objeto nem grande sentido, para além dos temíveis efeitos dietéticos ou hepáticos, para quem se não souber controlar. Aqui ou ali, é verdade, encontra-se nessas ocasiões alguém de interesse, a quem se aproveita para passar alguma mensagem ou perguntar alguma informação, sendo que isso tem de ser feito em rápidos segundos, porque logo nos cai em cima um outro conviva, que introduzimos ao primeiro através do já clássico "não sei se já conhece...?" (eu deixo quase sempre os nomes em suspenso, esperando que ambos se apresentem, não vá ter uma "branca" com a identificação de um deles). A melhor "técnica" é, instantes depois, deixar os dois recém-apresentados à fala e, pretextando uma qualquer razão, zarpar logo para outra, tendo a porta de saída como supremo objetivo a atingir. 

Desde há muitos anos que, cada vez mais, sou uma avis rara neste tipo de ocasiões, que frequento com grande parcimónia. Dou atenção prioritária a países com especiais relações com Portugal e, às vezes, às amizades mantidas com alguns chefes de missão. Mas, devo dizer, com muito maior probabilidade me desloco a uma festa nacional de um pequeno país africano ou asiático, de um minúsculo Estado caribenho ou centro-americano, ou mesmo de uma remota ilha do Pacífico, do que sou visto na imensa mole humana que se acotovela nas escadarias de acesso às festas dos grandes países, que por aqui sempre convocam o "tout Paris".

Esclareço que, para além de assumir esta minha atitude com o prazer de ajudar a que colegas de Estado menos populares vejam a sua ocasião social menos "desertificada", não me é indiferente o facto da minha presença acabar por ser bastante apreciada e notada, não raramente atenuando a tristeza de verem a sua festa quase vazia. Por vezes, tive já tal atitude retribuída com uma atenção particular quando interesses portugueses estiveram em jogo, quando, mais tarde, tive demandas a fazer a esses colegas no plano das nossas relações bilaterais ou a solicitação de votos em organizações internacionais.

A diplomacia social é um tema muito mais interessante do que frequentemente se julga.

Pedalar contra a crise

Na passada semana, ao visitar um feira internacional de têxteis, perto de Paris, onde apreciei, com orgulho, o magnífico esforço dos nossos industriais para sair da crise, deparei, a certa altura, com uma bicicleta com um desenho um pouco atípico, bem colorida.

Perguntei o que aquilo queria significar. Foi-me respondido que se tratava do trabalho de um designer português, Dinis Ramos - já conhecido como o "alfaiate" das bicicletas, porque elas são "tailor-made", modelos únicos que nunca são iguais. E que já estão a ser exportadas. Um novo negócio, um novo nicho de oportunidade, nestes tempos de crise.

Hoje soube um pouco mais sobre o assunto. Aqui.

domingo, setembro 23, 2012

Diálogos

Com uns amigos, trocava ontem impressões sobre o modo como decorrem as conversas político-diplomáticas, quando as coisas, por acaso ou necessidade, se passam num registo de alguma tensão.

Na minha vida, testemunhei já algumas cenas algo complicadas, em especial entre políticos, a não pouparem os seus contrapartes, com frases ou num tom que visivelmente pretende incomodá-los. Tenho visto fazer isto, basicamente, de duas maneiras: desde um modo subtil, em que alguns deixam "farpas" e passam mensagens fortes com certa elegância, por vezes alternando estilos diversos na mesma conversa, até a modelos de agressividade, mais ou menos gratuita, em certos casos no limite da provocação. A menos que se pretenda, de facto, conduzir à rutura (e, em casos limite, esse é o objetivo), devo dizer que, na maioria das ocasiões, a adoção deste último modo de atuar se deve, em geral, à inabilidade profissional e à arrogância gratuita de alguns agentes políticos e diplomáticos. Já vi um pouco de tudo e, pelo que me toca, também já fui obrigado a conduzir conversas em diversos registos, em função de interesses que me competia defender. Alguns dos quais, diga-se, deliberadamente pouco agradáveis, embora dentro de um limiar de cordialidade, que sempre cuidei em manter (veja-se exemplos aqui e aqui e aqui).

Ontem contei aos meus amigos o modo de atuar de uma conhecida figura política portuguesa, cujo nome não interessa, a quem, por duas vezes, vi conduzir encontros com personalidades estrangeiras às quais pretendia passar mensagens de distância e até de alguma acidez, por forma a criar uma deliberada incomodidade no seu interlocutor. Pode parecer estranho que alguém assim proceda, mas a verdade é que, também na política e na diplomacia, há conjunturas que a isso obrigam.

A "técnica" dessa nossa figura nessas duas ocasiões foi, invariavelmente, a mesma. Depois de saudar breve e formalmente o interlocutor, lançava-se num monólogo sobre uma temática que lhe interessava explanar. Passados uns minutos, fazia uma pausa. Isso dava ao interlocutor a sensação de que era a sua vez de falar, apoiando ou contraditando o que ouvira ou introduzindo novas temáticas. Porém, no termo desta réplica, e quando se esperava que o nosso político comentasse o que acabava de ouvir, este último, pura e simplesmente, limitava-se a dar sequência à sua primeira intervenção, como se nada tivesse dito pelo outro depois dela. Essa continuação do discurso inicial prolongava-se, até nova pausa. O interlocutor tentava então de novo a sua sorte, questionando e opinando sobre o que fora dito pelo nosso político. Debalde. No termo da sua fala, este, impávido, retomava olimpicamente o seu anterior discurso, ignorando tudo quanto fora dito pelo seu interlocutor. Este tipo de conversa (?) tinha uma tendência natural a durar pouco e proporcionava um espetáculo que, confesso, não era fácil suportar. Mas, em todos os casos que testemunhei, a "mensagem" passada acabou por ficar bem clara, comigo a querer "ser mosca", para ouvir a reação que o outro lado com certeza teria, à saída, com os seus colaboradores.

A diplomacia nem sempre é um exercício com punhos de renda, podem crer.

sábado, setembro 22, 2012

Manifestação


A manifestação patriótica corria a preceito, naquele entusiasmo encenado com que o Estado Novo conseguia, numa sustentada coreografia, colocar o povo nas praças, para as fotografias que, no dia seguinte, "A Voz", o "Novidades", o "Diário da Manhã" (que a oposição citava sempre sem o til) e o inefável "Diário de Notícias" trariam na primeira página, a testemunhar o "inquebrantável apoio de Portugal à política de Salazar". O qual, diga-se, raramente se dignava estar presente nesses exercícios, deixando ao "venerando Chefe de Estado", Américo Tomaz, a função de pobre catalisador das emoções orquestradas. "Paletes" de autocarros, pagas pelo erário, arrebanhavam patriotas ocasionais, de fato e gravata, através das cidades, vilas e aldeias, que eram dispensados dos empregos e tinham ração garantida para o dia, empunhando faixas que espelhavam a imensa diversidade dos "sindicatos" do regime.

Não fosse tudo isso ter, por detrás, uma longa ditadura e uma sangrenta guerra colonial e até poderia ter alguma graça, dando origem a comédias a preto-e-branco. Não sendo as coisas assim, não podendo Peponne discutir com don Camillo, o humor político disponível tinha de ser procurado nos ridículos do regime.

Nesse dia, naquela Braga de onde o efémero Gomes da Costa arrancara num famigerado Maio, concelebrava a mobilização das hostes António Santos da Cunha, uma avantajada figura da "situação", homem de voz tonitruante, que, durante anos, desempenhou as funções com que o regime controlava as coisas por lá: foi presidente da União Nacional, presidente da Câmara municipal e Governador civil. Já não recordo em qual destas duas últimas funções atuava na ocasião em que, como era hábito, ressoavam, nos discursos, saídos da velha varanda bracarense onde aquelas cenas sempre se oficiavam, as imaginativas referências ao Portugal "pluricontinental e pluriracial" ou "do Minho a Timor" (o que vinha geograficamente a jeito), as loas à sabedoria histórica do "senhor presidente do Conselho", no meio do gongorismo retórico com que o regime organizava a turbamulta tresmalhada, sob o olhar fardado dos polícias e os ouvidos, atentos e dispersos, dos "pides".

António Santos da Cunha atiçava, nessas horas, o patriotismo oficioso, com intervenções entre os vários discursos, feitas de menções às figuras presentes ou a quantos fosse importante lembrar na ocasião, apelando às hostes para, individual e nominalmente, os saudarem. O ausente Salazar e o chefe de Estado recolhiam, como era natural, o grosso da coluna dos aplausos e dos "vivas", mas os ministros e outros dignitários presentes recebiam também, à escala da sua importância, uma quota-parte dessas conclamações. Tudo era feito com conta e peso, medido o nível das personagens. Santos da Cunha, que era um hábil profissional desses instantes, sabia bem o que fazia, organizando sempre em pormenor essa estudada improvisação.

Um qualquer obscuro subsecretário de Estado (o Estado Novo só criou a figura de "secretário de Estado" bastante tarde), vindo de Lisboa na comitiva do "venerando chefe de Estado", ter-lhe-á, a certo momento da manifestação, lançado um olhar inquisitivo, como que a demandar que o seu nome também fosse sufragado pelo vozeirão do edil e pelo subsequente eco da multidão. Santos da Cunha olhou-o, e não conseguindo atenuar o seu tom habitual, sossegou-o, à distância, com os "bês" do Norte, numa frase que ficou no anedotário da "situação":

- O "bibinha" de Vocência, senhor subsecretário de Estado, sai já a seguir, esteja descansado!

Desse povo e desse tempo de "bibinhas", deixo uma bela e clássica fotografia de Gérard Castello-Lopes.

sexta-feira, setembro 21, 2012

Portugal no Brasil

Começou o ano de Portugal no Brasil. 

Nos tempos que correm, não há, compreensivelmente, muitos meios para executar um programa à altura daquilo que se desejaria. Mas todas as oportunidades são poucas para ajudar a fixar na sociedade brasileira a imagem do país que hoje realmente somos e que os brasileiros, na últimas duas décadas, aprenderam a conhecer muito melhor - o Portugal para onde muitos vieram trabalhar e aquele que, numa conjuntura de algum sucesso, mandou para o Brasil capitais e gente qualificada. Nem tudo correu sempre bem, em ambas as aventuras. Mas muito de positivo ficou desse novo ciclo de intenso intercâmbio e o presente aí está a prová-lo.

Às vezes, nos meus tempos de Brasil, ao notar as caricaturas que de Portugal ainda por lá subsistiam, costumava ironizar e dizer que, ao chegarem ao aeroporto de Lisboa, alguns brasileiros ficavam surpreendidos por não serem recebidos por uma velhinha de ar triste, nazareticamente vestida de preto, talvez com algum bigode, a cantar o fado e envolvida num cheiro a sardinhas assadas. Somos o que somos, mas estamos muito longe de tudo isso. E os brasileiros, hoje, sabem-no.

Viva o ano de Portugal no Brasil!

Sporting

Clube de Portugal

quinta-feira, setembro 20, 2012

Jaurès

Como me dizia à saída um amigo francês, ontem assistimos, sem a menor dúvida, a uma "première". Na embaixada americana em Paris, o embaixador e meu colega fez, numa intervenção, a citação de uma frase de Jean Jaurès. 

Posso estar enganado, mas creio que só uma administração Obama nos dá oportunidade de ouvir as palavras do "pai" do socialismo francês pela voz pública de um diplomata americano.

Naquele instante, devo dizer, tive um pensamento piedoso para o "Tea Party". 

Liberdade

Muitos, com carradas de razão, acham extremamente provocatória a iniciativa do "Charlie Hebdo" de publicar, uma vez mais, um número com desenhos satíricos sobre Maomé.

Porém, o direito à liberdade de expressão leva a que, num país como a França, se não possa proibir a difusão destas caricaturas, muito embora isso esteja a suscitar uma onda de indignação em vários setores da comunidade nacional internacional e obrigue, por exemplo, a pesadas medidas de segurança das embaixadas e estruturas culturais francesas, um pouco por todo o mundo árabe e muçulmano.

A liberdade das nossas sociedades tem um preço, mas nenhum preço é demasiado grande para a salvaguarda dessa liberdade. Esta é, e espero que seja sempre, a nossa diferença.

Em tempo: deixo aqui um extrato do editorial do "Libération" de hoje: "Em democracia, liberdade a cada título de estabelecer a sua linha editorial; liberdade ao leitor de ler ou não ler; liberdade às pessoas que se sentem ofendidas de pedir reparação perante os tribunais, a única arma que é legal. E esperemos que, sob outros regimes, armas de outra natureza não sejam utilizadas".

terça-feira, setembro 18, 2012

França

Ontem, com um grupo de colegas, almocei com o novo ministro do Interior francês, Manuel Valls. Nasceu em Barcelona há 50 anos e tinha já 20 anos quando adquiriu, por naturalização, a nacionalidade francesa. Ocupa hoje um dos postos mais delicados do executivo da França, precisamente aquele que tem a seu cargo a questão dos direitos dos estrangeiros e a gestão dos fluxos migratórios.

Dei comigo a pensar se isto seria possível entre nós, se um estrangeiro que se tivesse naturalizado português no fim da adolescência seria aceite para ocupar um cargo de ministro, em especial numa pasta com esta sensibilidade específica. Como, já há meses, me tinha interrogado quando à facilidade com que a França conviveu com a candidatura à presidência da República de Eva Joly, uma norueguesa que, com 18 anos, veio trabalhar como "au pair" para Paris. Ou como os franceses acham natural que um cidadão como Daniel Cohn-Bendit, nascido em França mas apátrida até aos 14 anos, que, depois, optou pela nacionalidade alemã, deliberadamente para não cumprir o serviço militar neste país, tendo posteriormente dirigido a subversão estudantil no maio de 1968, seja hoje deputado europeu eleito nas listas francesas e uma das figuras cimeiras do partido ecologista.

Esta abertura da França àqueles que enriquecem a sua diversidade é uma das mais nobres marcas desta sociedade.

Don Santiago

Saiu hoje de cena, aos 97 anos, Santiago Carrillo. Tal como no poema de Lorca, a sua morte deu-se "eran las cinco en sombra de la tarde!". Carrillo foi, com Dolores Ibárruri, um dos mais marcantes dirigentes comunistas espanhóis. Seria também um dos obreiros da transição e, nessa qualidade, alguém a quem a Espanha democrática deve bastante.

Diabolizado pela velha direita espanhola, pela suas alegadas responsabilidades na chamada "matanza de Paracuellos", durante a Guerra civil, Carrillo acabou por transformar-se numa das estrelas do "eurocomunismo", essa deriva de moderação ideológica e de afastamento face a Moscovo, que se espalhou por alguns partidos comunistas europeus, a que o PCP ficou orgulhosa e naturalmente imune. Aliás, as relações entre Santiago Carrillo e Álvaro Cunhal nunca foram as melhores e vale a pena ler, nas memórias do primeiro, entre outros episódios curiosos, o relato de um encontro noturno entre ambos, na serra de Sintra, ao tempo das ditaduras ibéricas.

As ligações de Carrillo com Portugal não se ficaram por essa relação. Depois da Guerra civil, nos anos 40, Carrillo viveu por uns meses no Estoril, sob disfarce de um industrial uruguaio de conservas. E as suas relações sociais da época levaram-no a visitar fábricas na zona de Setúbal, com a ajuda do então ministro português da Marinha, com quem teve um encontro e que era, nem mais nem menos, o futuro presidente Américo Tomaz. Sempre achei magnífica a ironia deste episódio.

Na frustrada tentativa de golpe militar de extrema direita, em 23 de fevereiro de 1981, a vida de Carrillo esteve por um fio. Quando Tejero entrou nas Cortes e intimou "todo el mundo al suelo!", nem "todo el mundo" se curvou à ordem: o chefe do governo, Adolfo Suárez, e o seu ministro da Defesa, Gutierrez Mellado, recusaram obedecer, como as conhecidas imagens mostram. Mas essas imagens não revelam que, ao lado das centenas de cabeças que cumpriram a ordem de Tejero e se refugiaram por detrás das bancadas, houve só um outro homem que não se baixou: Santiago Carrillo. Um gesto, talvez para a História.

De Carrillo ficou-me também uma cena que ele relata do primeiro encontro que teve com o rei Juan Carlos, depois da legalização do PCE. Ao aproximar-se do soberano, ouviu este, ao saudá-lo, tratá-lo por "Don Santiago". Nesse instante, Carrillo entendeu que acabava de aceder à família política da nova Espanha democrática.  

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...