Já falei neste blogue, por mais de uma vez, do dia 28 de setembro de 1974 (em especial aqui e aqui).
Recordo hoje um episódio vivido na sequência dessa data marcante para a Revolução portuguesa.
O general Spínola, presidente da República, na ressaca dos acontecimentos e das manifestações desse dia, havia convocado o Conselho de Estado, para 30 de setembro. Fora anunciado que, nessa altura, faria uma comunicação ao país, em transmissão pela televisão e rádios, diretamente de Belém.
Eu estava pelo palácio da Cova da Moura, onde era adjunto da Junta de Salvação Nacional, a que Spínola presidia e que, como tudo indicava, acabaria em breve a sua existência. Juntámo-nos uns tantos, de tendências político-militares bastante diversas e até antagónicas, em torno de um televisor, para ouvir a intervenção do chefe de Estado.
Os tempos eram muito tensos, o ambiente político era de cortar à faca. Naquela sala estava gente cujo futuro iria ser, a partir desse dia, muito díspar. Lembro-me que havia por lá um general, regressado de Angola, que sabíamos ser um "spinolista" ferrenho, que estava acolitado por figuras que não conhecíamos, com cara patibular, de quem tinha ficado do lado dos derrotados nas batalhas das vésperas. Todos antecipávamos as palavras do "velho" (como os "spinolistas" gostavam de chamar à sua figura tutelar). A ideia mais comum era a de que se demitiria em direto das funções, mas outros cenários, nomeadamente de alguma "resistência" à recente derrota nas ruas dos seus apaniguados, ainda eram plausíveis.
O discurso começou, com a voz rouca do general, naquele registo épico e um pouco teatral que era o seu, a dramatizar, como era de esperar, a situação política, na exata linha das suas anteriores frustradas tentativas de fazer levantar a suposta "maioria silenciosa" do país. O diagonóstico que saía da sua boca era ácido e impiedoso para os vencedores dessas horas. Todos olhávamos o aparelho de televisão mas, verdadeiramente, policiávamo-nos pelo canto do olho, sabendo que cada um "lia" as palavras de Spínola de forma diferente. Para mim, como militar "a prazo", que me via do lado vencedor da contenda, o momento era excitante.
A certo passo da intervenção, mas ainda antes do anúncio da demissão do "caco" (como Spínola também era conhecido, por virtude do seu monóculo), um homem da Marinha, o Duarte Lima (não, não é esse!), não se conteve e fez ecoar pela sala alguns adjetivos qualificativos, muito pouco abonatórios do presidente da Junta de Salvação Nacional, a cujos quadros pertencíamos e em cuja sede estávamos. Praticamente, ninguém o acompanhou na expressão vocal dos sentimentos que o motivavam, os quais, no fundo mas apenas no íntimo, eram partilhados pela maioria dos presentes. Mas, com os diabos!, Spínola era um derrotado daqueles dias e havia outras maneiras de "explorar o sucesso", tanto mais que "não se dispara sobre ambulâncias". O Duarte Lima, porém, estava imparável, indignado com os ataques de Spínola ao MFA, e não se calava, nos insultos que ia proferindo, em crescendo. O general, a alguns metros dele, fervia de raiva, potenciada pela impotência que Spínola confessava no seu discurso. Os seus escassos acompanhantes remoíam em silêncio.
Quando tudo terminou, quando Spínola anunciou a sua demissão, todos nos levantámos, ainda um pouco aturdidos com o início de uma nova fase da Revolução que o seu gesto prenunciava. O tal general, lívido, passou pelo Duarte Lima e, num assomo de autoridade, lançou-lhe: "Você devia ter vergonha sobre o que disse". A compostura militar impôs-se e o Duarte Lima não reagiu. Ou melhor: deixou sair da sala o superior e comentou para nós: "Estive para o mandar à ....". Mas não mandou. E ainda bem.
9 comentários:
Senhor Embaixador,
Não podia ter escolhido melhor fotografia para ilustrar este episodio que a sua fabulosa memoria nos restitui a cores e com son:)! Spinola tinha sempre esta cara, antes e depois do 28 de Setembro.
Ainda hoje se diz na ilha da Madeira que o nosso clima quente/húmido foi a razão porque o General pedia sempre em maior número tropas que viessem da ilha, para embarcarem para a Guiné. Aquele bafo de África só pára quando embate nas rochas da Madeira. No Porto da Cruz, o General fez a instrução primária, aonde vivia com os avós para fugir às andanças na Metrópole que provocara a subida ao poder do "rei-Sidónio". Outro rei haveria de mandar mais tarde na Guiné: Spínola. Muitos naturais das margens do Curobal e do Saltinho o tratavam assim, sempre que aparecia um médico ou um enfermeiro para cuidar de algum doente. Havia ordens do General para que fossem evacuados os naturais da Guiné para a capital quando corressem perigo de vida. Sei que aconteceu algumas vezes por altura do parto de algumas das mulheres do interior. População que deu cobertura a idas/vindas à Guiné do lado... Facto que deu os seus resultados depois e, ainda alguns encontros de políticos influentes depois do 25 de Abril. Qualquer madeirense servia; fortes e espadaudos ou os "pilecas" fraquinhos como aquela que descreve o Eça... Serviam para a enfermaria, cozinha ou ida às compras a Bafatá, mesmo que não tivessem a altura e o peso para "ficarem dentro". Mais uma vez na história do povo madeirense alguns foram escolhidos pelo clima agreste ou pela frugalidade que a ilha lhes deu desde o berço... O General e a ilha da Madeira. Pouco se tem escrito sobre os "tristes" que da tropa não se livraram, por ele ser um grande estratega!
O General Spinola teve três fases: a do militar da Guiné; a do "Portugal e o Futuro" - que não o 25 de Abril; e a do 28 de setembro...
José Barros
Bons, ou maus tempos, tão magnífica e descritamente retratados e revividos por quem os sentiu e foi deles testemunha ocular. Obrigado por mais esta peça inédita.
O abraço do,
Gilberto Ferraz
Parece-me que o comentador José Barros tem razão!
Efoi precisamente nesta noite que eu e os meus 9 irmãos vimos a nossa casa ser invadida por militares de cabelo comprido e barba por fazer, armados de metralhadora, ameaçando dar um tiro no nosso cão, e mandando-nos sentar a todos e às criadas na sala sempre apontando-nos as armas. Eu que sou o mais velho tinha 17 anos e a minha irmã mais nova apenas 5. Revistaram-nos a casa toda furiosos pelo meu Pai, que iam prender, não estar lá. Ainda partiram umas gavetas que estavam fechadas à chave e depois frustados vieram embora.
O "crime" que o meu Pai tinha cometido era pertencer à Legião Portuguesa. Nunca vi o meu Pai participar em qualquer actividade "legionária" e a unica coisa da Legião que usava era a carta militar que acho lhe dava imenso jeito sempre que era parado por um Policia.
Graças a um grande amigo dele comunista foi avisado do que se ia passar e quando o copcon lá chegou a casa já ele estava em Espanha há mais de 24.00h . Não tenho assim a menor saudade desse dia 28 de Setembro, pelo contrário, tive medo, muito medo.
interessantes a entrada e os comentários e testemunhos tanto de jtmb como o anónimo referindo a madeira.
Nesse dia 28 de Setembro fui com a minha mulher e dois casais amigos ao falecido Teatro Adoque ver a revista "Pides na Grelha" (como éramos todos tão ingénuos).
Depois da revista rumámos à Cervejaria Edmundo, em Benfica, onde ficámos até perto da uma da manhã. Só depois, quando já no carro, a caminho de Carcavelos, onde então residia, liguei o rádio, fiquei a saber do reboliço que ia por Lisboa e arredores.
Mas dessa vez não encontrei nenhuma barreira. Já em casa, fiquei quase toda a noite ouvindo na rádio o desenvolvimento das "operações".
Mas, "prontos", esses sustos já passaram e, agora, os mesmos estão outra vez a mandar nisto, nos "criados", com o sucesso que se vê.
Abraço, senhor embaixador.
MB
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