quarta-feira, março 09, 2011

Padura e Trotsky

Um romance do escritor cubano Leonardo Padura, "O homem que gostava de cães", está a ter apreciável êxito em França.

Perdi a ocasião do seu lançamento em Paris e, com isso, a oportunidade de reencontrar Padura, com quem tive uma longa e interessante conversa em Havana, há quase quatro anos, num jantar proporcionado pelo meu amigo e embaixador Mário Godinho de Matos.

Padura é uma personalidade suave, com um sorriso amigável e um modo muito sereno de olhar para a realidade do seu país. Nessa conversa em 2007, demos conta que havíamos vivido em Luanda ao mesmo tempo, na primeira metade dos anos 80. O escritor fizera parte dos "cooperantes" que Cuba enviava para apoio ao regime angolano. A certo passo da noite, perguntei-lhe se, como então se especulava, esses cubanos expatriados tinham fortes incentivos económicos, bem como de apoio às famílias que deixavam para trás, como compensação pela execução da sua missão. Confirmou-me que essas atividades lhes proporcionavam, de facto, algumas vantagens mas, enfatizou, nesse tempo havia em Cuba um alargado espírito de "missão internacionalista", que mobilizava muitos dos seus compatriotas. Para acrescentar, muito realisticamente, que, nos dias que correm, esse sentimento havia desaparecido quase por completo, pelo que era praticamente impossível recrutar técnicos cubanos para ações no exterior numa base predominantemente ideológica.

Nessa bela noite de Havana, recordo bem que Padura nos falou num trabalho em que andava envolvido, em torno de documentação de Ramón Mercader, o homem que, no México, em 1940, assassinou Trotsky, às ordens de Stalin. Mercader viveu a parte final da sua vida em Havana, onde morreu, em 1978, tendo mais tarde sido sepultado, com honras soviéticas, em Moscovo.

O livro que Padura acaba de produzir centra-se na figura de Mercader. Um amigo francês, que esteve presente no lançamento da obra em Paris, que teve lugar na Casa da América Latina, dizia-me, há dias, que ele e outros acompanhantes haviam ficado siderados quando um jornalista francês ("na casa dos 40 anos", esclareceu) lhes perguntou se sabiam como se soletrava o nome de "um tal Trotsky", que Padura referira na sua intervenção. Foi pena que ninguém lhe tivesse feito notar que, na realidade, ele ouvira mal, que Padura pronunciara "Bronstein"...

De facto, o mundo já não é o que era...

Economia

A Câmara de Comércio e Indústria Franco-Portuguesa, uma estrutura jovem mas que tem desempenhado um trabalho muito positivo de apoio e agregação dos empreendedores que ligam economicamente Portugal e a França, realizou hoje, na Embaixada, a sua assembleia geral anual. Desde que cheguei a Paris, entendi que abrir-lhe as nossas portas era o contributo mínimo que poderia prestar, para além do encorajamento que, ao longo do ano, procuramos manifestar ao conjunto das suas atividades.

No início da assembleia, falei aos associados do cenário económico em Portugal. Não escondi as dificuldades existentes, mas procurei sublinhar que estamos a fazer o nosso trabalho "de casa", com rigor, com transparência, com os números sobre a mesa, porque é à luz deles, e só deles, que queremos ser julgados. Não temos a tentação de esconder a crise que atravessamos atrás da crise internacional, mas recusamos que esta seja iludida no cômputo geral da situação, como às vezes pretendem alguns avaliadores de "rating". Falei das empresas, do otimismo que tenho visto da grande parte das que por aqui contacto, da contribuição que têm dado para os números excecionais que a nossa exportação tem revelado em tempos recentes. Abordei a questão da nossa banca, da leitura que sobre ela se faz internacionalmente e do modo como a sua situação se liga com as perspetivas de evolução da nossa dívida soberana. E falei também da Europa, das suas novas fragilidades, das suas hesitações e da esperança que continuamos a colocar nesse magnífico projeto em que nos continuamos a rever. No fundo, deixei claro que, para que as dificuldades se atenuem, todos temos de trabalhar em conjunto, remando para o mesmo lado.

"Ler"

A revista "Ler", por ocasião da publicação do seu nº 100, pediu a 100 pessoas que formulassem, em poucas palavras, uma ideia para o futuro.

Aqui vai a minha contribuição: 

"A internet tem-se revelado um decisivo instrumento para a comunicação aberta entre os cidadãos, um motor de difusão cultural e um insubstituível suporte para as redes de livre informação. A comunidade internacional deveria passar a qualificar o livre acesso informático como um dos novos Direitos Humanos."

"Cavalos de Tróia"

A imprensa tem-se feito amplo eco da notícia de que os ministérios das Finanças e dos Negócios Estrangeiros franceses foram atacados por "piratas" informáticos, que terão colocado nos respetivos sistemas "cavalos de Tróia", que permitem o acesso ao conteúdo das informações acumuladas, podendo mesmo gerir parcialmente esses equipamentos. O debate prossegue agora em torno de quem poderia estar interessado nessa intrusão.

Tenho uma experiência pessoal muito concreta de uma operação idêntica, de que foi objeto o meu computador, em Maio de 2003, ao tempo em que vivia em Viena. Uma voz amiga deu-me então discreto conhecimento de que informações oriundas do meu sistema informático estavam a ser "analisadas" por terceiros. Através de uma peritagem técnica, vim a apurar que um "cavalo de tróia" tinha sido introduzido num dos computadores, à distância, através de um processo de "bombing" informático, que tinha conseguido ultrapassar o "firewall". Denunciada e exposta a marosca - nomeadamente por um artigo de imprensa -, os responsáveis pela operação recolheram, precipitadamente, a sua "pidesca" operação. Como os deuses não dormem, tempos posteriores vieram a provar que "os cavalos (de Tróia) também se abatem". Sem ou com cunhas. 

terça-feira, março 08, 2011

"Tradução" automática

Alguns leitores têm-se mostrado divertidos com certas "soluções" que resultam da utilização do mecanismo de tradução automática que passou a estar colocado no blogue (clique, à direita, em "traduire" ou "translate" para ver a versão francesa ou inglesa do blogue).

O objetivo deste sistema (gerido por uma máquina, sem intervenção humana) é proporcionar a leitores que não tenham o português como sua língua a possibilidade de perceberem, em termos muito gerais, o assunto que é abordado em cada post. Como é óbvio, não se trata de uma verdadeira tradução, mas sim de uma mera aproximação, quase palavra-a-palavra. Devo, porém, dizer que considero o saldo global muito positivo, se aceitarmos o limitado objetivo do exercício.

Reconheço que, de facto, alguns resultados obtidos pelo mecanismo acabam por ser verdadeiramente hilariantes. Por exemplo, e como notou um atento comentador, a frase "fui beber uma bica, ali ao lado" surge, em inglês, como "I was drinking a fountain, next door"...

Diplomacia europeia

Ainda neste dia internacional da Mulher, é uma excelente notícia saber que a diplomata portuguesa Ana Paula Zacarias, que já chefiou a nossa missão na Estónia e representava Portugal no Comité Político e de Segurança, em Bruxelas, acaba de ser escolhida, por concurso público aberto aos diplomatas dos 27 países da União Europeia e aos funcionários das suas instituições, para chefiar a missão da UE em Brasília. Ana Paula Zacarias conhece bem o Brasil, onde já serviu, como Cônsul em Curitiba.

Trata-se do primeiro membro da carreira diplomática portuguesa a ascender ao lugar de chefe de uma missão da União Europeia, sendo que a representação no Brasil é considerada uma das mais importantes do novo Serviço Europeu de Ação Externa. Dois outros funcionários de nacionalidade portuguesa, João Vale de Almeida e Cristina Martins Barreira, neste caso oriundos das instituições europeias, dirigem já, desde há meses, as missões junto dos EUA e do Gabão.

Um abraço amigo e votos de boa sorte, Ana Paula!

8 de março

Faz hoje precisamente 10 anos. Lembro-me bem que desci a pé a rampa do palácio de Belém, depois do ato de transição, e fui beber uma bica, ali ao lado. Já sem horas, nem audiências. Acabara uma experiência política de mais de cinco anos. Sentia ter cumprido "com lealdade, as funções que me (haviam sido) confiadas", nesses quase 2000 dias!  E voltava a poder fazer o que, decididamente, mais gosto e sei fazer.

Nesse dia, acabavam as infernais horas perdidas em aeroportos e aviões ("ao menos, aqui não há telemóveis"), as refeições à pressa, os insípidos quartos de hotel, a leitura ansiosa dos jornais ("olha! Há aqui uma crítica à nossa política europeia"), as maratonas bruxelenses, a análise, pela madrugada dentro, dos diplomas para aprovar "em Conselho", a agenda diária cada vez mais esgotante. Mas, também, as coisas conseguidas, os magníficos e dedicados colaboradores (em especial colaboradoras, já que a esmagadora maioria foram mulheres, e hoje é o dia delas!), os muitos amigos descobertos e conquistados, a certeza de que as posições portuguesas foram sempre defendidas tão bem quanto sabia e me foi possível, o privilégio de poder ter tido um "outro" olhar sobre o país.

Mas não se confunda nada disto com poder. Na maioria dos casos, neste tipo de posições, em termos de exercício efetivo de poder, o que se pode fazer é relativamente pouco: ou não há dinheiro, ou não há gente adequada e disponível, ou o peso do "sistema" nos impede, ou é a lei que não deixa. E, quase sempre, não se pode aplicar a máxima de Correia de Oliveira: "o que é legal faz-se por despacho, o que é ilegal faz-se por decreto". Não é assim, em democracia.

Olhando hoje para trás, sem a mais leve nostalgia, reconheço que foi um período muito interessante, embora, com toda a certeza, bem mais longo do que teria sido desejável. No geral, não me arrependo minimamente do que fiz, mas, em perspetiva, soubesse eu, à partida, o que sabia à saída, faria algumas coisas de uma forma bem diferente. Mas, em política, tal como no futebol, "prognósticos só no fim do jogo".   

segunda-feira, março 07, 2011

Transferências televisivas

As nossas televisões entraram numa maré de transferências, na sua área informativa. Os "craques" são "roubados" de umas às outras, a salários que a moral pública acha conveniente esconder, não vá alguém lembrar-se da crise.

Não está em causa a competência dessas pessoas, caso contrário não seriam recrutadas por tais vultuosos valores. São profissionais experimentados, com provas dadas. Só podemos desejar que façam um bom trabalho, que mostrem equilíbrio e isenção de julgamento, que consigam colocar-se acima quer das pulsões populistas quer de outras mais domésticas.

Neste tempo de transição - e valendo-me do meu estatuto de estrangeirado -, gostaria de lembrar às nossas figuras da informação televisiva duas realidades que por aqui se vêem e que por aí se não praticam:
  • os telejornais, em sociedades modernas, não duram mais de 30 minutos, com os diretos a raramente excederem um minuto. E não conheço país do mundo onde os treinos dos "grandes" do futebol sejam objeto de cobertura diária nos noticiários generalistas à hora de almoço.
  • nenhum regime democrático que eu conheça coloca os temas políticos do alinhamento noticioso a serem comentados, obrigatoriamente, por porta-vozes de todos os partidos representados no seu parlamento. É que, salvo em Portugal, há uma diferença entre informação e tempo de antena.
Infelizmente, estou certo que nenhum dos responsáveis pela nossa informação televisiva vai ter coragem para acabar com estas duas tristes realidades, entre outras típicas do "nacional-televisionismo" luso. Melhor: adivinho mesmo que terão sido escolhidos porque, implicitamente, se sabe que não ousarão tocar neste estado de coisas.

País em défice

É necessária uma experiência intergeracional para se entender bem o papel desempenhado, entre nós, pelo festival musical da Eurovisão. Há menos de um ano, falei aqui de tempos idos e do modo como o país se colava emocionalmente aos seus intépretes, eleitos como valentes guerreiros, enviados para alheios e hostis terrenos de luta.

Esse período passou, hoje o festival da Eurovisão vale apenas o que vale e há anos em que nem noto que passa na televisão. Mas talvez poucas coisas simbolizem melhor o "país em défice" em que hoje vivemos do que a qualidade dos intérpretes que, este ano, "representarão" as cores portuguesas. 

Ao observar o vídeo do grupo, sinto-me tentado a reconhecer que ele é, de facto, a melhor tradução lusa dos "Village People", que pretendem caricaturar. E ao ler a "letra" da canção, que nos traz os tempos de abril numa versão "Zé Chunga", sinto saudades do "Serafim Saudade". 

Se não fosse obsceno misturar coisas sérias com estas patetices, apetecia-me lembrar o "18 Brumário de Luis Bonaparte", onde Karl Marx escrevia que a história acontece como tragédia e repete-se como farsa. Este, pelos vistos, é o tempo dos farsantes.

... e a Líbia aqui tão perto

A embaixada portuguesa em Paris ocupa, quase por completo, um pequeno quarteirão triangular (poderá dizer-se isto?). E escrevo "quase" porque um dos cantos não nos pertence, é um edifício propriedade do governo líbio. Até há meses, funcionou ali a sua embaixada em França, que entretanto se mudou para outras instalações. Como curiosidade, note-se que a Líbia é o único país do mundo que não designa por embaixadas as suas representações diplomáticas. Aqui em Paris, por exemplo, é o "Bureau Populaire de la Grande Jamahirya Arabe Libyenne Populaire Socialiste".

Há dias, no edifício, aparentemente não ocupado, surgiu pendurada uma estranha bandeira, que causou perplexidade no nosso pessoal. Acabo de passar por lá e verifiquei que se trata da velha bandeira líbia, usada após a independência e anterior à revolução de 1969, que levou ao poder o coronel Mouammar Kadhafi. Essa é a bandeira que tem sido utilizada pelos revoltosos no país e dela deixo aqui registada a imagem.

domingo, março 06, 2011

Medeiros Ferreira

José Medeiros Ferreira é uma personalidade marcante da democracia portuguesa. Dirigente do associativismo universitário, na crise académica do início dos anos 60, e opositor à ditadura, viria a fazer um tempo de exílio, de onde, promonitoriamente, teorizou o modelo de revolta que o 25 de abril viria a seguir. Foi ministro dos Negócios Estrangeiros e deputado, dedicando-se, em paralelo, a uma carreira académica de mérito na área da historiografia contemporânea, com as questões militares e as relações internacionais no centro prioritário dos seus interesses. 

O seu pendor heterodoxo e a insistência, quase obsessiva, na livre independência crítica poderão ter contribuído para que tivesse passado ao lado de posições que merecia ter ocupado na nossa vida pública, no que o país muito teria beneficiado. Esse mesmo tropismo, associado a uma gestão peculiar de algumas das suas opções cívicas, colocou-o, frequentemente, em conflito com certas personalidades ou linhas políticas, obrigando-o a percursos bastante solitários. Mas, paradoxalmente, esse seu "defeito" é a face mais sedutora da sua forte identidade pessoal, servida por uma inteligência fina e aguda, mas quase sempre pouco complacente, como as suas aventuras pela blogosfera e pela imprensa espelham.

No passado, nem sempre estivémos de acordo, mas julgo que nos encontraremos sempre numa certa forma de ver o país e os seus interesses, no preito à amizade e na alegria de saber que ambos pensamos pela nossa própria cabeça, sem receio de dizer alto as ideias, mesmo que elas pontualmente não coincidam ou possam incomodar terceiros. E quem partilha o mesmo barbeiro pode também dar-se ao luxo de sair por vias opostas na 2ª circular.

Neste momento em que um livro celebra o seu importante percurso académico, tendo servido de pretexto para ter sido homenageado por um grupo de colegas e admiradores, aqui deixo um forte e solidário abraço ao José Medeiros Ferreira.

A tia Zé e a Líbia

Ao ver as notícias sobre os combates na cidade líbia de Brega, não pude deixar de lembrar-me da minha velha tia Zé.

Estávamos em torno da televisão, nesse agosto de 1968, em Viana do Castelo. As imagens eram da entrada das tropas soviéticas em Praga, com a subida dos tanques pela praça Venceslau, sob protestos populares.

A tia Zé vivia, desde sempre, num mundo diferente, um pouco alheado, distante daquele que nos mobilizava, frente ao televisor. Não era dada a seguir eventos noticiosos, nem  sentia estímulo para participar em quaisquer conversas que excedessem o quadro familiar ou das amizades. Por uma vez, porém, os nossos comentários e exclamações, bem como a notória brutalidade do que observava, tê-la-ão feito compreender que alguma coisa não ia bem, lá pelo mundo exterior. A certo ponto, numa pausa do noticiário, ao entrar na sala com o tradicional café de saco, de cuja feitura não prescindia, a velha senhora deixou escapar: "As coisas estão mal lá por Braga, não estão?"

Se a boa da tia Zé, com o seu mau ouvido, não tivesse deixado, há décadas, de cuidar dos dias dos outros,  imagino que hoje, ao escutar notícias sobre as movimentações militares em torno de Brega, voltaria a inquietar-se.

sábado, março 05, 2011

Juventude


Leio que os três promotores iniciais da manifestação de jovens prevista para dia 12 de Março, destinada a consagrar o protesto da chamada “geração à rasca”, são licenciados em relações internacionais. Sou levado a supor que algum deles possa ter pensado que, um dia, chegaria a ser diplomata. Também por esta razão, não posso deixar de ter uma certa simpatia pelas suas preocupações. Mas, sem querer ser paternalista, a sua iniciativa suscita-me algumas interrogações.

Reconheço, sem dificuldade, que a vida não está fácil para as novas gerações – e não só em Portugal. A democratização do ensino leva hoje às universidades uma cada vez maior percentagem de população jovem, sem que isso se traduza na sua automática empregabilidade. A retração no crescimento limita o emprego e as exigências de competitividade conduzem à opção por formas de recrutamento marcadas por elevada precariedade e instabilidade contratual.

Num tempo em que, internacionalmente, se tende a dizer que Portugal deve aceitar um receituário laboral marcado por uma maior flexibilização do mercado de trabalho, a auto-qualificada “geração à rasca” afirma o seu desejo de “direito ao emprego, o fim da precariedade e o reconhecimento das qualificações espelhado em salários e contratos justos”. Temo que estejamos perante um perigoso “wishful thinking”, induzido por algum irrealismo programático. Os tempos da densificação do modelo social em que se apoiava esse tipo de cenário idílico de segurança laboral já lá vão. Com o Estado a limitar o seu próprio crescimento e a caminhar para modelos de contratação menos constrangentes, com as empresas a tentarem garantir ganhos de competitividade para fazerem face à globalização, pergunto-me se será viável - embora fosse, sem dúvida, mais do que desejável - promover garantias ao primeiro emprego como as que são reclamadas.

Há dias, na UTAD, universidade a cujo Conselho Geral presido, pediram-me para fazer uma palestra sobre uma temática ligada a questões estratégicas internacionais. No final, dentre as cerca de duas centenas de auditores, muitas perguntas surgiram, algumas bem longe do tema da minha intervenção, centradas na própria condição laboral futura dos nossos estudantes, no termo dos seus cursos. Devo dizer que fiquei algo angustiado por não conseguir produzir respostas concretas para esses problemas, que reconheço como muito prementes e quase existenciais para esta geração.

O grupo Deolinda fez um tema musical que parece estar a converter-se no hino conjuntural deste movimento. Ele aqui fica registado. 

sexta-feira, março 04, 2011

Os livros e as vidas

Há dias, Pacheco Pereira, num artigo no “Público”, falava de um tema em que partilhamos um interesse em comum: livros. E perguntava-se, já não sei bem porquê, sobre o número de livros que cada um de nós pode vir a ler na vida – número que contrasta com a imensidão de algumas bibliotecas pessoais, impossíveis de serem "consumidas" pelo proprietário (como será, com certeza, o caso da famosa e gigantesca biblioteca do próprio Pacheco Pereira, na Marmeleira).

Esta é uma questão que já coloquei muitas vezes a mim mesmo, tendo chegado a conclusões similares às de Pacheco Pereira.

Há um raciocínio simples: se alguém, entre os 15 e os 75 anos (as idades são flexíveis, mas trata-se de uma média de 60 anos de leitura), tiver lido, com regularidade, dois livros por semana, sabem quantos livros leria no final? 6.240 livros! Pacheco Pereira chegava a uma cifra similar, concluindo, com equilíbrio, que o número máximo real não pode mesmo passar dos cinco mil livros lidos, em toda uma  vida. E, para isso, teria de ser um excelente e regular leitor. Não deixava, porém, de notar que, quando falamos de um “livro”, tanto podemos estar a referir-nos a um pequeno volume de dezenas de páginas como a um calhamaço hermético que se aproxima dos milhares de folhas.

Então, por que diabo, eu, que, em regra, não chego a ler dois livros por semana (quem me dera!) e que ainda tenho mais de uma década antes de atingir a tal idade, possuo já cerca de uma dezena de milhar de livros, na minha biblioteca?

Por razões muito simples e que, sem dificuldade, assumo: porque tenho imensos livros que comprei, na expectativa de vir a ler e que não li (e, dentre eles, muitos que nunca lerei); porque há outros que deixei a meio (por cansaço ou porque outros se tornaram mais urgentes); porque me ofereceram livros que não faziam parte das minhas prioridades de leitura (e que, por isso, não li); porque não consigo arranjar coragem para “desfazer-me” dos livros que tenho; porque, apesar de isso ir contra o mínimo de bom-senso, guardo aquilo a que Jaime Gama chama os “não-livros” (catálogos das coisas mais bizarras, obras de propaganda sobre países, livros turísticos, coletâneas oficiosas de discursos, etc). Também porque tenho muitas obras de referência - enciclopédias, dicionários, prontuários, guias e outras obras para mera consulta, que não justificam leitura completa. E porque sou um masoquista que se dedica compulsivamente à “etnologia” política, desde já previno que também tenho, lá por casa(s), coisas como todos os quatro volumes de “Últimas décadas de Portugal”, de Américo Tomás, o “Livro Verde”, do coronel Muhamar Khadafhi e outras pérolas de qualidade similar, que a injustiça fez escapar ao Nobel.

Os livros e as bibliotecas são, assim, uma perdição que merece toda a minha indulgência.

Deixo-os com uma historieta a propósito de livros. Um dia, um grande amigo meu, leitor compulsivo mas com certa moderação no que adquire e guarda, visitou a imensa biblioteca de uma conhecida figura portuguesa, que, orgulhosamente, lhe mostrava as dezenas de milhares de volumes de que era possuidor. A certo passo desse “tour du propriétaire”, o dono da biblioteca perguntou ao meu amigo: “E você? Tem muitos livros?”. Ele respondeu-lhe, com uma ponta de ironia: “Aí uns seis mil. Não mais. Mas li-os todos…”  

A lingua e as comunidades portuguesas

Em outubro de 2010, participei num seminário em Lisboa sob o tema "Língua Portuguesa e Culturas Losófonas num Universo Globalizado", promovido pela União Latina e pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Na altura, deixei neste blogue apenas o "esqueleto" da minha intervenção, feita de improviso. Alguns comentadores pediram-me o texto, que eu não tinha em forma escrita. Surgiu agora publicado um volume com as contribuições apresentadas nesse encontro, que inclui a que então fiz e que pode agora ser lida também aqui.

quinta-feira, março 03, 2011

Zero

Esta é uma história clássica do MNE.

O novo embaixador chegava a esse posto periférico, vindo do outro lado do mundo, de outra capital de idêntica dimensão. Tratava-se de uma figura que a maioria dos colegas conhecia apenas pelo nome, lido nas burocráticas páginas do "Anuário". Vivendo há muito no estrangeiro, era tido por um solitário, por não ser um homem de lóbis ou de grupos de amigos. Profissionalmente, parecia já acomodado à "slow lane" de um percurso diplomático que até começara bem, mas cuja visibilidade se fora atenuando, com o passar dos anos. Nos tempos que então corriam, parecia apostado em manter-se o mais discreto possível, "desaparecendo" perante Lisboa. Nele se tinha esfumado qualquer vestígio de ambição.

O secretário de embaixada - o único outro diplomata em serviço no posto, como sucede na esmagadora maioria das nossas representações -, que o acolhia, muito poucos dados de personalidade pudera obter sobre o seu novo chefe, apenas lhe tendo chegado que se tratava de uma figura algo peculiar no respetivo comportamento. Assim, a sua curiosidade era imensa. Cabendo-lhe servir, nos anos seguintes, sob a orientação desse embaixador, teria de estar muito atento às suas "manias", cujo controlo era essencial para um bom entendimento futuro.

No caminho do aeroporto para a residência oficial, a conversa foi vaga, sobre o clima e coisas assim. Mas, a certo ponto, as questões de serviço surgiram, perguntando ao secretário:

- E como vai a embaixada em matéria de ofícios e telegramas expedidos ? Tem alguns números do "tráfego"?

(Os "ofícios" são as comunicações escritas, enviadas pela mala diplomática semanal, e, por regra, não têm um caráter urgente. Os "telegramas" são comunicações com um grau de prioridade bastante maior. Têm esse nome porque, no passado, eram expedidas por essa via. Mais tarde, passaram à forma de textos por telex. Atualmente, seguem por e-mail. Em geral, os "telegramas" são expedidos de forma cifrada, por forma a evitar que sejam lidos por quem, eventualmente, intercepte as comunicações).

O secretário hesitou. Havia-se preparado para muitos temas, mas não estava à espera de uma questão quantitativa tão detalhada. Puxou pela memória e lá disse uns números aproximados, na casa de algumas dezenas, em cada caso. Dar-se-ia o caso do embaixador ser um furioso produtor de telegramas? Há colegas que vivem nessa angústia permanente, que inflacionam a produção informativa para terem números superiores aos de outros postos, e que, em especial no final do ano, procuram ridiculamente bater records. Seria ele desses?

Não era. Porque, de imediato, ao embaixador saiu-lhe esta "pérola", que ficou para sempre nos anais da "casa":

- Saiba o meu amigo que o  número ideal, para uma embaixada, seriam "zero" ofícios e "zero" telegramas. Isso significaria que não haveria necessidade de comunicações entre o posto e a "secretaria de Estado" (nome que damos ao MNE em Lisboa), que as relações se passariam sem a nossa intervenção, que nada haveria que reportar e que Lisboa nada precisaria de nós. Esta hipótese, contudo, só existe em tese, porque há sempre fatores a justificarem contactos, através de ofícios e telegramas.  Mas devemos reduzir as comunicações ao mínimo possível.

O embaixador não se terá dado conta que esse seu modelo de funcionamento minimalista, se levado ao extremo, justificaria o próprio encerramento das embaixadas que o praticassem.

Contudo, não conseguir essas "performances" não é sinónimo de o não tentar. Dois anos depois, em meados do ano, o telegrama em que o embaixador anunciava a partida do secretário, colocado noutro posto, iria ter o nº ... 25!

Annie Girardot (1931-2011)

Annie Girardot desapareceu há dias. Teve uma carreira irregular, perdendo-se frequentemente por várias obras menores, nas quais, porém, nunca deixou de refletir a sua grande classe. 

Uma amiga lamentava ontem que eu não tivesse referido a sua saída de cena, talvez porque ela é uma das imagens de memória para uma certa geração francófona e francófica a que ambos pertencemos.

Aqui a recordo, no magnífico "Rocco e i suoi fratelli", de Visconti.

Gente de abril

Uma vez por outra, quando as coisas se propiciam, junto-me a um grupo de antigos oficiais milicianos que, com outros amigos "do quadro", se encontra em torno de um bem disposto e solto almoço.  Foi o que ontem aconteceu.

Une-nos a fidelidade ao 25 de abril - em que quase todos, cada um a seu modo, participámos -, embora os nossos caminhos, por essa época, nem sempre tivessem sido exatamente os mesmos, pelo que alguns nos conhecíamos então menos bem. Os anos foram-nos aproximando, diluindo postos e idades, facilitando o entendimento.
 
Será a nostalgia de um tempo de ilusões perdidas que nos volta a juntar, a memória dessa espécie de adolescência política, que agora revisitamos? 

Não sei, nem sequer sei se tem alguma importância descobrir qual a motivação que nos agrega, muitos na "reserva", outros na reforma e uns quantos, por algum tempo mais, no ativo. Apenas fica bem claro, para todos nós, que apreciamos a mútua companhia e que, com cambiantes não necessariamente homogéneas na leitura do presente e do caminho que até aqui nos conduziu, nos continuamos a rever nessa magnífica aventura de 1974.

quarta-feira, março 02, 2011

O meu "spread"

Ao notar, por estes dias, o gozo alarve de alguns blogueiros e afins, que se deliciam com qualquer sinal que indicie a necessidade de Portugal vir a ter de recorrer a ajuda externa, sem cuidar minimamente das profundas consequências negativas que decorreriam para o nosso país de um tal cenário, apenas degustando, por antecipação e com total irresponsabilidade, as decorrências políticas que pudessem satisfazer os seus ódios mesquinhos de estimação, sou levado a constatar que, entre mim e essa gente, existe, na bolsa de valores nacionais, (e para usar, em sentido figurado, um termo que excita esses figurões) um imenso e insanável "spread".

terça-feira, março 01, 2011

A carta da Líbia

Naquela segunda metade da década de 70, as relações entre Portugal e os países árabes iam de vento em popa. Não tardariam, contudo, a ser afetadas (apenas um pouco), por virtude da decisão política de Lisboa de vir a estabelecer relações diplomáticas a nível de embaixada com Israel (embora a nossa representação em Telavive acabasse por só ser aberta em ... 1991!).

Como jovem diplomata, eu era então secretário de um grupo de trabalho com nome pomposo - CICEPMOM (Comissão Interministerial para a Cooperação Económica com os Países do Médio Oriente e do Magrebe) -, criado pelo ministro Melo Antunes, presidido pelo engenheiro Torres Campos e integrado por uma dezena de pessoas, entre as quais o também engenheiro António Guterres. Os mercados árabes, diluídas que estavam as anteriores reticências políticas face a Portugal, no pós 25 de abril, mostravam-se um terreno promissor de negócios, em especial para o setor de construção civil e obras públicas.

A Líbia era um desses novos horizontes de trabalho económico externo, como  já referi aqui. Um dia, algures no segundo semestre de 1978, na velha "EAA" (repartição da África e Ásia da DG dos Negócios Económicos), fui chamado ao telefone ("ó doutor, é um inglês para si!", berrou, lá de dentro, uma das senhoras do "apoio"). Quem me falava, do aeroporto de Lisboa, era um diretor-geral do ministério dos Municípios líbio, que eu havia conhecido, meses antes, em Tripoli. Informou-me que era portador de uma carta do titular daquele ministério para o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros, José Medeiros Ferreira: tinha instruções para fazer entrega pessoal da missiva. Ambos se tinham conhecido numa visita a Lisboa e o ministro português havia sido fundamental para o reforço das relações económicas bilaterais entre os dois países.

Contactado o gabinete do ministro, fiquei a saber que este tinha partido, na véspera, para Nova Iorque, a fim de assistir à Assembleia Geral das Nações Unidas. E que - curiosamente! - iria encontrar-se naquela cidade, no dia seguinte, com o MNE líbio. Nestas condições, que significado poderia ter uma carta, enviada por intermédio de um correio personalizado, subscrita por outro ministro líbio - aquele por quem passavam os principais contratos que estávamos prestes a assinar com as autoridades do país? Era urgente clarificar isto.

O chefe (interino) do gabinete do MNE, Carlos Neves Ferreira, cedeu-me um carro para eu ir buscar o diretor-geral líbio ao aeroporto. Trouxe-o às Necessidades, fomos explicando que o nosso ministro estava em Nova Iorque mas prometemos que lhe daríamos conta, de imediato, da mensagem do ministro dos Municípios líbio. Entregou então a carta, em envelope fechado. Acompanhei-o de volta ao aeroporto, de onde partiu para Madrid. Dei o assunto por encerrado, no que me respeitava.

Puro engano. Retornado às Necessidades, sou, de novo, chamado ao gabinete do ministro, onde me foi exposta uma dificuldade, que eu tinha de encontrar maneira de superar: a carta estava escrita em árabe! Era necessário traduzi-la. Eu que me desenvencilhasse, como pudesse.

Com a "criança nos braços", com Nova Iorque à espera de novidades, não sabia bem como proceder. Não conhecia nenhum falante de árabe, em quem pudesse ter confiança, em Lisboa! Tinha alguns amigos em embaixadas de países árabes em Portugal, mas a Líbia era já, à época, um país fora do "mainstream" político do mundo árabe, pelo que não podia correr o risco de colocar em mãos adversas uma informação que, pela urgência e pela forma como nos fora transmitida, teria de ter, seguramente, alguma importância e delicadeza.

Foi então que me lembrei que, nos meus tempos de universidade, havia conhecido um especialista em língua e cultura árabe, o professor Dias Farinha. Descobri-o pela lista telefónica e fui visitá-lo a casa, numa das torres do Restelo. Expliquei-lhe o nosso embaraço e o pedido de urgente ajuda que lhe formulávamos. A resposta foi menos direta do que eu pensava: a especialidade do nosso professor era o árabe clássico, pelo que precisava de algumas horas para, com apoio de dicionários, "trabalhar" o texto.

Ao final dessa tarde, regressei. E foi então que constatei, pela tradução feita, que a carta era, nem mais nem menos, um montão de banalidades e lugares-comuns, de formulação de votos pelo prosseguimento das boas relações que eram mantidas entre os setores técnicos nas áreas onde Portugal se preparava para atuar na Líbia, da grande importância que Tripoli atribuía a um entendimento cada vez mais profundo com o nosso país, etc, etc. Tudo "langue de bois".

Eu estava siderado, e preocupado. Inquiri do professor Dias Farinha se, de facto, ele estava bem seguro de que a carta não era mais do que "aquilo", se não havia alguma mensagem subliminar ou se, afinal, eu podia assegurar ao meu ministro que o texto era, como se constatava, mera "conversa fiada". O especialista garantiu-me que sim.

Lá regressei às Necessidades, informou-se a nossa missão na ONU e o ministro português deve ter concluído, shakespeareanamente, sobre o alarme dos seus colaboradores em Lisboa: "much ado about nothing".

A historieta não acaba aqui. Em 2001, quando fui representar Portugal na ONU, ao cumprimentar o meu colega líbio, julguei nele reconhecer uma cara familiar: era o antigo ministro líbio dos Municípios, de seu nome Abuzaid Dorda. Nada mais nada menos que o subscritor da carta que tanto trabalho me havia dado. Tornámo-nos bons amigos. Nestes dias, tenho-me perguntado: que será feito dele?

Em tempo: infelizmente, as notícias que dele me chegam não são as melhores, como se pode ver aqui.

"Ilhados"

Passageiros "ilhados", segundo a imprensa brasileira.

A língua portuguesa deve muito à criatividade do Brasil.

segunda-feira, fevereiro 28, 2011

Jantar de fim-de-semana

Era sempre assim, lamentava-se o embaixador. Os nacionais do país em que estava acreditado só convidavam para as suas casas durante os fins-de-semana. Quando muito, na sexta-feira à noite. Isso destruía-lhe o sossego do sábado e do domingo, que tanto prezava, utilizado para passeios pelos arredores da capital. Mas, que se havia de fazer?!, era quase sempre assim...

Pelo menos, naquele sábado, os anfitriões seriam um casal simpático, com o qual os embaixadores se haviam cruzado diversas vezes e que tinham já ido jantar à embaixada. A informalidade do convite levava a que não tivessem recebido sequer um cartão escrito, mas uma simples indicação do endereço, surgida numa conversa no meio de uma receção. Sendo assim, seria adequada a hora escolhida para aparecerem? Que tipo de vestuário seria mais próprio? Era uma pena não terem esclarecido isso, a tempo. Pelo sim pelo não, o embaixador levava um "blazer" com gravata. Se a informalidade fosse muita, logo poderia tirar o adereço do pescoço... ficando com o traje a que os brasileiros chamam "esporte fino".

O embaixador e a sua mulher tocaram à porta. Tiveram esperar alguns minutos. (Ora bolas! Parece que chegámos demasiado cedo). Seria o dono da casa, ele próprio, a vir abrir a porta, conduzindo-os para a sala. Estava de "jeans" e "pullover" (Que chatice! Viémos um pouco 'overdressed'). Foi muito simpático e, rapidamente, ofereceu bebidas. A dona da casa demorou um pouco mais a aparecer e, quando surgiu, denotava ter-se arranjado um tanto à pressa. (É isso! Chegámos muito cedo. Das próximas vezes, temos de saber a hora exata). A embaixatriz tinha-lhe trazido flores, que a senhora agradeceu muito.

A conversa fluiu, durante as horas seguintes. Os anfitriões eram gente interessante e culta. E muito mais simples do que os embaixadores supunham. A dona da casa, a certo passo, deslocou-se para a cozinha. Afinal, seria ela própria quem faria o jantar. (Que casal encantador!). A embaixatriz ofereceu-se para ajudar e o embaixador acabou também por ir abrir o vinho, selecionado na pequena adega, numa incursão feita com o dono da casa. O jantar, muito simples mas saboroso, acabou por ser bastante tardio, num ambiente verdadeiramente familiar. (Gente muito agradável e simples! Mas, claramente, esperavam-nos mais tarde).

E a noite chegava ao fim. Os embaixadores agradeceram a simpatia do jantar, sublinhando, com sinceridade, o caráter intimista do acolhimento, dizendo as tradicionais amabilidades sobre as capacidades culinárias da dona-da-casa e sublinhando, com sinceridade, o excelente ambiente que haviam partilhado.

Foi então, à saída, que o anfitrião comentou: "Amanhã, domingo, teremos cá os embaixadores franceses e também um casal de médicos, nossos amigos". (Por que diabo se lembrou agora de nos revelar quem serão os hóspedes de amanhã?). "E, como lhe disse na semana passada, cá os esperamos também. Oito e meia é uma boa hora?"

O meu Óscar

Geoffrey Rush, em "The king's speech"

domingo, fevereiro 27, 2011

Hierarquia

Entrava sempre para o tarde. Era uma figura de recorte antiquado, com o cabelo oleado, puxado para trás, risca bem marcada. Dizia-se que não "regulava" bem e, de facto, a sua cara não convidava a grandes familiaridades. O olhar era fixo, mas logo fugidio, não sorria muito e falava ainda menos. Sabia-se que tinha tido uma carreira sofrível, povoada de incidentes de comportamento, marcada por um crescente destrambelhamento, fruto ou razão de crises familares. A sua ascensão à categoria de conselheiro, que à época permitia chefiar missões diplomáticas, era mais do que improvável.

E, dessa forma, por ali estava ele, "velho primeiro secretário" (como então se dizia de outros em idênticas circunstâncias), naquela repartição secundária do MNE, sem grandes tarefas atribuídas, até porque a experiência provara que, para além da irregularidade da sua prestação, dava mais trabalho corrigir o que fazia do que fazer as coisas por ele. 

Desde o início, recebera com indisfarçada incomodidade a nova colega que integrara o serviço, do grupo das primeiras mulheres diplomatas que haviam sido admitidas no ministério. Não se dera sequer ao trabalho de ser simpático com ela, como que reagindo ao convívio de géneros que, pela primeira vez, a profissão lhe impunha. E apenas grunhia um som indecifrável, quando esta, pacientemente, lhe dava os bons-dias, remetendo-se depois a um silêncio que a prudência geral do pessoal da sala não ousava quebrar.

Por tradição, à época, cada repartição tinha direito a um "Diário de Noticias", que o contínuo religiosamente levava ao chefe, no gabinete ao lado. Quando, por uma qualquer razão, este não estava ao serviço, o jornal era trazido para a sala, onde a sua leitura era partilhada.

Um dia, a recém-admitida "adida de embaixada", ao entrar na sala comum dos funcionários, viu o "Notícias" sobre uma mesa e, sentando-se no único sofá existente, decidiu passar uma vista de olhos pelo jornal. Estava ela a meio da leitura quando irrompeu na sala o nosso bizarro diplomata. Ao passar em frente à colega, agarrou o jornal e arrancou-lhe das mãos, exclamando, com ar grave: "Eu sou o primeiro secretário!", como que sublinhando o facto de, formalmente, estar a assumir a  direção, em lugar do ausente chefe da repartição. E sentou-se, refastelado, na cadeira de braços da sua secretária, abrindo o jornal sobre a mesa.

O estupor apossou-se da jovem colega, que não esperava tal indelicadeza e que, num assomo de coragem, se preparava para reagir à grosseria. Quedou-se, porém, pela intenção, ao ver o "velho primeiro secretário" tirar do bolso do casaco nada mais nada menos que uma pistola, que colocou, displicente, ao lado do jornal.

Tempos depois, o homem desapareceu da circulação. Nunca houve notícias concretas sobre o tipo de tratamento a que veio a ser sujeito no Júlio de Matos. Por estas e por poucas outras, o seu nome ficou para sempre na memória da casa.    

sábado, fevereiro 26, 2011

Portugueses

Ela era lindíssima, muito bem “desenhada”, bielorussa, com vinte e poucos anos, funcionária da missão da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), em Bishkek, no Quirguistão. Chamava a atenção de toda a gente. 

Estávamos num jantar oferecido pelo chefe da missão a cinco embaixadores, idos de Viena, numa viagem de duas semanas que fazíamos por todos os países da Ásia Central. (Para que não fiquem dúvidas: fiz essa deslocação à minha custa).

O ambiente era descontraído, numa espécie de taverna típica, um pouco fora do centro da cidade, creio que perto de uma estância de ski. Não havia protocolo, a ocupação das mesas era informal, "free seating".

A bela bielorussa sentou-se ao meu lado, anunciando, alto: "Eu fico aqui, para falar com o embaixador de Portugal". Desfiz-me num deliciado sorriso, perante a onda de ironia invejosa da esmagadora maioria dos parceiros (pelo menos) masculinos do repasto. A bielorussa logo esclareceu, contudo, as suas castas intenções: "Tenho a maior admiração por um grande escritor português e quero falar sobre a sua obra. Tenho a certeza que o embaixador o conhece bem".

Preparei-me, intimamente, para lhe explicar a grandeza dos sinos ou os encantos da biblioteca de Mafra, a pretexto do "Memorial do Convento", de José Saramago. Ou, no caso de ser Lobo Antunes, tentaria contextualizar uma literatura angustiada, nascida nos traumas da guerra colonial, como em "Os cus de Judas”, embora o significado de um título como esse levasse mais algum tempo a detalhar. Não estava a ver que outro escritor português pudesse mobilizar o interesse de beldades de Minsk e arredores. Embora longe de ser um alargado conhecedor daqueles autores, o que sabia dava-me para garantir uma dose mais do que suficiente para uma agradável conversa.

Foi então que a jovem me lançou um desafio impossível: "Conhece bem a obra do Paulo Coelho, com certeza! É o maior escritor português, não é? Li tantos livros dele...” Passaram muitos anos e, daquele jantar pelas terras da Rota da Seda, só me ficaram memórias vagas. De uma coisa tenho a absoluta certeza: Paulo Coelho, durante esse repasto, foi um português dos sete costados.

O "Expresso" e eu

Hoje, o "Expresso" publica o seu nº  2000 (2000 sábados! Mais de 38 anos!). Ao constatar isso, dou-me conta de uma outra realidade: nunca deixei de ler nenhum dos números do jornal, desde o seu célebre nº 1 até ao que hoje me chega às mãos. Não falhei um único número. Tenho disso absoluta certeza.

Em 1973, quando foi criado, o "Expresso" representou um choque de modernidade sem par na imprensa portuguesa (como o "Público" o seria, anos mais tarde, para a imprensa diária). Para além de ter introduzido, entre nós, a "moda" dos jornais semanários (até então, só havia revistas), ao jeito britânico do "Observer" ou do "Sunday Times", o jornal significava então a abertura de um espaço crítico que passava as margens formais do regime, estimulando os que, dentro dele, punham em causa o seu percurso e, simultaneamente, abrindo os espaços possíveis a quem a ele se opunha. O 25 de abril deve alguma coisa ao "Expresso".

Com a Revolução, o jornal passou a ser uma tribuna determinante, por onde passava - e onde se "fazia" - muita da política portuguesa da época. Tudo o que era opinião relevante teve acolhimento do "Expresso" e muitas das grandes notícias que fizeram sensação foram anunciadas pelo jornal. Navegando sempre num espaço político que, de forma simplificada, poderemos designar como de "bloco central", o "Expresso" cuidou sempre em nunca calar, sectariamente, outros setores. Bem pelo contrário, por vezes deu-lhes uma voz bem superior àquilo que eles representavam ou representam.  

Como disse, li todos os números do "Expresso", embora com desigual atenção. Em Lisboa, porque o compro sempre tarde e sem lugar certo, chego a correr seca-e-meca para encontrar um exemplar. No estrangeiro, chegou-me muitas vezes por "mala diplomática" a Oslo, a Luanda, a Londres, a Nova Iorque, a Viena ou a Brasília. Mas procurei-o também em Bruxelas ou em Genebra, em estadas mais prolongadas por essas cidades. Em Paris, compro-o, ainda no próprio sábado, num quiosque perto da Étoile. Se acaso me falha um jornal, movo mundos-e-fundos (e até meto "cunhas", junto de amigos) para arranjar o número que está em atraso. E que leio sempre, nem que seja duas ou três semanas depois.

Escrevi, fui entrevistado e fui criticado no "Expresso". Nele tive e tenho amigas e amigos, pessoas que muito respeito profissionalmente. Desde logo, o seu fundador Francisco Pinto Balsemão, uma das figuras fundacionais da nossa democracia. Durante muitos anos, a leitura do "Expresso" foi-me fundamental e até "urgente". Depois, com o tempo e a concorrência, acho que o "Expresso" deixou, cada vez mais, de ter muitas "caixas" apelativas; pior, passou a criar (não foi o único) algum sensacionalismo artificial. E passou a ser lido com mais rapidez, com o que isso significa de menor atenção.

Com todos os seus defeitos - e, de certo modo, eles têm vindo a aumentar*, diga-se em abono da verdade -, continua a ser um jornal necessário. Eu, pelo menos, com maior ou menor gosto,  talvez já por mero vício, não passo sem ler o "Expresso".


*em tempo: desde o momento em que escrevi este texto, tenho a sensação de que o jornal melhorou substancialmente.

sexta-feira, fevereiro 25, 2011

Abébias

- "Não dou abébias, prontos!"

Confesso que não percebi, à primeira, a frase-exclamação do taxista, que havia "fechado" ostensivamente a entrada de um carro na fila onde íamos, na Fontes Pereira de Melo, à chegada ao Marquês. O homem mantivera-se calado desde o aeroporto, naquele silêncio ofendido com que essa inenarrável espécie que são os "taxistas das chegadas" por vezes nos presenteia, como retribuição pelo facto de lhes termos tirado da sorte um turista incauto, com quem faria um involuntário "sightseeing" por Odivelas, num percurso até ao Rossio. 

Em fundo sonoro, André Vilas-Boas explicava, em tom catedrático, do tipo "sucedâneo de Mourinho", as subtilezas da passagem da eliminatória. Como vingança pelo facto de eu o ter obrigado, por duas vezes, a baixar o som da conferência de imprensa (que durou todo o tempo da viagem), o motorista tinha aberto a sua janela, por onde expelia o produto da sua tosse, deixando entrar o frio desse fim de tarde de Lisboa.

- "Nunca mais dou abébias! Aqui há uns dias, deixei entrar uma fulana na minha fila e um gajo arrebentou-me logo a traseira. Tenho o outro carro na oficina vai para vinte dias. Foi em Santa Iria da Azóia. Agora, eles que se amanhem. Não dou mais abébias..." 

E com este discurso reiterado à saciedade, em versões diversas em que a inabalável recusa das "abébias" sempre figurava, a que se somaram comentários impublicáveis sobre polícias e outros sobre o ódio aos peões ("nas passadeiras, comigo, estão lixados! Se esperam que eu seja bonzão, bem podem tirar o cavalo da chuva! Levam com um farolim no olho, ai isso é o mais certo!"), lá consegui chegar a casa. Uhf!

O que é o problema do défice, comparado com isto?

quinta-feira, fevereiro 24, 2011

Crónicas do inesperado

Da minha passagem pelo Brasil trouxe a certeza de que é por lá que existem os melhores cronistas da língua portuguesa. De Nelson Rodrigues a Ruben Braga, de Fernando Sabino a Carlos Heitor Cony, de Millôr Fernandes a Luiz Fernando Veríssimo - o Brasil detem alguns dos grandes mestres na arte de contar uma boa história, com espírito sintético, com adjetivação q.b., com riqueza lexical, sentido de ritmo e "crescendo" de densidade narrativa, tudo servido por um sábia subordinação ao respeito pela oralidade.

Há dois dias, por amável e inesperada oferta do autor, chegou-me às mãos "Crónicas do inesperado", de Renato Prado Guimarães, que me conheceu através deste blogue. Trata-se de um volume editado pela Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo, em 2009, ilustrado por belas fotografias de Marcos Vilas Boas, onde são reunidas mais de 40 deliciosas crónicas, espelho de uma vida rica e atenta, em que a experiência diplomática tem um papel maior. É que o autor, com um "background" de jornalismo profissional na "nata" da imprensa paulistana, é embaixador aposentado do serviço diplomático brasileiro, residindo atualmente na Alemanha. E, tal como alguns dos grandes mestres que atrás referi, é possuidor de uma escrita ágil, fluente e culta, através da qual desenha, a traço fino, vivências riquíssimas, que conosco partilha, com grande elegância estilística.

Sem o menor exagero, quero dizer que foi dos livros que mais prazer me deu ler, nos últimos meses. Com a devida vénia, a necessária e completa citação da fonte  e a indulgência do autor, vou-me permitir, daqui a uns dias, transcrever aqui alguns extratos deste excelente livro.

quarta-feira, fevereiro 23, 2011

Pseudónimos

Ontem, no "Le Monde" um grupo de diplomatas, sob o pseudónimo de "Groupe Marly", expressou uma violenta crítica contra a política externa francesa. É muito raro os profissionais da diplomacia virem a terreiro desta forma. Mas não é inédito, quer em França, quer noutros países.

Portugal não tem essa tradição, até porque, por uma regra com escassas (e lamentáveis) exceções, as grandes orientações assumidas, em democracia, em matéria de política externa tendem a corresponder a um alargado consenso político.

No final dos anos 80, alguns diplomatas no ativo sentiram, contudo, a necessidade de se expressarem coletivamente, sob pseudónimo, em artigos de imprensa - neste caso por motivos que relevavam da defesa de importantes interesses profissionais. O pseudónimo utilizado por esse grupo foi "Luiz da Cunha", nome de uma figura tutelar da carreira diplomática portuguesa, que acabou a sua carreira como embaixador em Paris.

23 de fevereiro

Faz hoje 30 anos que a recém-restaurada democracia espanhola passou pelo seu maior teste. Um setor das Forças Armadas, esperando poder contar com a complacência conjuntural de diversas áreas partidárias e, essencialmente, com o beneplácito real, pretendeu instituir um governo com chefia militar, que responderia ao que entendia ser a incapacidade do executivo (aliás, demissionário) de Adolfo Suarez. As coisas, felizmente, não correram bem para os golpistas e a Espanha pôde prosseguir na construção da sua magnífica democracia.

Nesse tempo, eu vivia na Noruega. Por esses dias, em casa do meu colega espanhol em Oslo estava, de visita, uma sobrinha do promotor militar da revolta, o general Milans del Bosch. Recordo a noite de 23 de fevereiro, em que as incessantes repetições televisivas do "todo el mundo al suelo!", do "carabinero" Tejero eram interrompidas por chamadas telefónicas angustiadas de e para Madrid, na tentativa de saber mais pormenores sobre o evoluir da crise - com os presentes a disfarçarem, delicada e educadamente, o radical contraste das suas posições. E comigo a fazer brindes íntimos, a comemorar a derrota dos golpistas.

Hoje sabemos bastante mais sobre a "tejerada", sobre o papel central do general Armada em todo o golpe, sobre o tempo e o modo do rei nessas horas e, também, sobre a atitude - não tão clara quanto seria de esperar - de alguns partidos políticos, que viriam a revelar-se centrais na nova democracia espanhola. Para a história do momento, ficou o gesto valente de Adolfo Suárez, de Gutiérrez Mellado e de Santiago Carrillo, as três únicas pessoas nas bancadas das Cortes espanholas, entre algumas centenas, que revelaram coragem física e dignidade cívica, ao recusarem esconder-se sob as mesas, como lhes era ordenado pelos invasores do parlamento.

Nestas três décadas, li muita coisa sobre a transição espanhola e, em especial, sobre esse dia decisivo, as mais das vezes através de relatos de personalidades políticas da época. Há uns meses, um amigo espanhol, num congresso em Badajoz, recomendou-me a obra "Anatomia de un instante", de Javier Cercas. Não tendo conseguido então a versão original espanhola, comprei, há meses, uma tradução francesa e não dei por mal empregue o tempo da sua leitura. O autor não é um historiador e, ao que parece, tinha inicialmente a intenção de escrever um romance baseado no evento. Talvez por essa razão, o seu texto tem um ritmo muito diferente do tradicional, ao utilizar um método pouco comum de abordagem do fenómeno "23 de fevereiro", enveredando por uma segmentação do papel de cada uma das três personagens políticas acima referidas, tratando-as na sua contextualização própria, recortando-as psicologicamente, no seu brilho e nas suas sombras, sem, porém, perder o cenário global de fundo. E, não sendo, na base, um historiador, Cercas não esquece nunca os factos.

Aprendi imenso com este livro, o que significou dessacralizar algumas figuras, assumir as suas fraquezas mas, ao mesmo tempo, descortinar outros atores que só são secundários para a má historiografia. Não é um livro fácil, em especial para quem não seja iniciado na história contemporânea espanhola e, em especial, na trama do 23-F, mas, para mim, foi uma obra fascinante.

Pastoral

Nunca tinha pensado que poderia vir a ter o ensejo de ler uma Pastoral sobre o Sporting.

Com o devido respeito, aqui deixo o piedoso e oportuno pronunciamento.

Em tempo - Alguém notou que "Mubarak se demitiu antes de Paulo Sérgio, embora do ponto de vista humanitário os pretextos para as respectivas demissões sejam equivalentes."

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Líbia

Os acontecimentos na Líbia recordam-me, inapelavelmente, outros tempos.

Num final de tarde de 1977, à chegada a Tripoli, tudo começou a tornar-se-nos estranho, logo à saída do avião. O funcionário líbio que aguardava a delegação portuguesa, com uma cara de poucos amigos, acompanhou-nos, sem um gesto de menor simpatia, para a longa fila que antecedia a verificação dos passaportes. E aí nos deixou, indo colocar-se do lado de fora da infernal alfândega. Por lá nos aguardava, passada que foi uma boa meia-hora de trapalhadas burocráticas. Bela ajuda!

A delegação técnica portuguesa, que eu integrava, era composta por três elementos. Vínhamos mandatados para colocar as assinaturas finais nos protocolos para obras de construção civil e obras públicas que, desde há uns meses, estavam a ser negociados entre entidades portuguesas e a administração líbia.

Tudo começara no ano anterior, em 1976. Uma missão oficial líbia, que se deslocara a Lisboa para um congresso partidário, fora recebida protocolarmente no Ministério dos Negócios Estrangeiros, pelo secretário de Estado, João Lima. As relações entre Lisboa e Tripoli eram mínimas. A Líbia tinha uma embaixada em Lisboa, chefiada por um encarregado de negócios, mas Portugal não tinha qualquer representação na Líbia. E foi com alguma surpresa que vimos então entrar alguns membros da delegação líbia, sobraçando uns estranhos tubos de cartão (lembro-me de um comentário: "serão tapetes?"). O mistério iria esclarecer-se, minutos depois: os visitantes traziam projetos de obras públicas, para a construção das quais pretendiam contratar empresas portuguesas. Era a forma como queriam demonstrar o interesse em reforçar as relações bilaterais.

A capacidade lusa de improviso torna-nos, embora raramente, capazes de ações expeditas e eficazes. Foi o que aconteceu. Em poucas horas, montámos um programa para a delegação, com a tradicional visita ao LNEC e a algumas empresas. E, também com uma incomum prestreza, cerca de um mês e pouco depois, por decisão do ministro José Medeiros Ferreira, uma delegação portuguesa, creio que composta por 8 pessoas, de diversos setores técnicos (engenharia, banca, obras públicas) partiu para a Líbia.

Fui encarregado de representar o MNE nessa delegação. Eu era então um jovem diplomata, com pouco mais de um ano de casa. E logo constatei, com o orgulho dos novatos, que iria ser o primeiro funcionário diplomático português a visitar, em representação do MNE, esse país do Magreb.

Essa visita de 1976 durou quase 20 dias e os seus resultados não podiam ser melhores. Conseguíramos lançar as bases para uma futura presença empresarial portuguesa na Líbia. Recordo que fomos então recebidos com "tapete vermelho", desde a chegada ao aeroporto até à nossa partida, rodeados de todas as atenções.

Precisamente pelo contraste com esse precedente, os três integrantes desta nova missão, que haviam feito parte da delegação anterior, estavam muito surpreendidos com a frieza com que, menos de um ano depois, estavam a ser tratados. E mais admirados ficámos quando, em lugar do razoável hotel onde antes nos haviam colocado (Tripoli não tinha, à época, boas instalações hoteleiras), nos enviaram para um subúrbio, bastante distante do centro, onde nos foi proporcionado um alojamento bem medíocre. 

Durante três dias, fomos sujeitos a um completo isolamento, agravado pela retenção dos passaportes e dos bilhetes de avião. Além disso, não havia então telemóveis e as comunicações telefónicas com Lisboa revelaram-se impossíveis. A nossa perplexidade era imensa. Estávamos totalmente sem contactos, num país de língua estranha, havíamos perdido já as reservas de voos e, acima de tudo, ninguém nos dizia nada. Restava-nos ir testando as diferenças entre o "couscous" do almoço com o "couscous" do jantar e medir a muito discutível qualidade dos refrigerantes que nos serviam, constatada, como é óbvio,  a rigorosa impossibilidade de acesso a qualquer álcool.

Até que, ao final do quarto dia, apareceu para me ver o antigo encarregado de negócios líbio em Lisboa. Em termos veementes, manifestei-lhe o nosso desagrado e a nossa surpresa com o acolhimento que nos estava a ser dado, em completo contraste com o do ano anterior. E perguntei-lhe, de forma um pouco brutal, se, como parecia, estávamos a ser "reféns" e de quê. 

Senti que o homem ficou um tanto tocado com a minha forte reação, a qual, aliás, tinha por objetivo evitar que ele fosse confrontado com o estado de bem maior exasperação do chefe da delegação, que tencionava fazer um "casus belli" da situação bizarra em que nos encontrávamos.

E foi então, na conversa com esse colega líbio, que percebi, a razão de tudo.

- Você deve compreender que, depois das declarações portuguesas em Copenhaga, tenha havido uma reação da nossa parte, disse-me o diplomata.

- Declarações em Copenhaga? A que é que se está a referir?

- Então não sabe?! O seu primeiro-ministro anunciou, durante uma reunião da Internacional Socialista, na Dinamarca, que Portugal ia estabelecer relações a nível de embaixada com Israel. O mundo árabe e o meu governo ficaram ofendidos, claro!...

Assim fora, de facto. O Dr. Mário Soares decidira o início de uma mudança de política face a Israel, a qual, aliás, não deixaria de ter algumas consequências políticas internas, levando (entre outras razões, ao que parece) à demissão do ministro Medeiros Ferreira (ver aqui). Mas a última coisa com que o Dr. Mário Soares sonharia é que, no dia seguinte àquela sua declaração, uma delegação portuguesa ia aterrar no maior adversário norte-africano de Israel!

Fiz ver ao meu colega líbio a insensatez da nossa "quarentena" - a qual, repeti, a nossa delegação quase era obrigada a interpretar como um "rapto", dado que, sem bilhetes nem passaportes, estávamos tecnicamente impedidos de sair do país. Assim, para além das consequências práticas para aquilo que nos tinha levado à Líbia, adverti de que estavam criadas as bases para um "sério incidente diplomático".

Creio que o diplomata líbio mediu bem a situação e disse ir fazer o possível para a resolver de forma expedita. E fez. Para a história (com "h" pequeno), acabámos por ser recebidos logo no dia seguinte, assinámos os acordos, embora com alguns curiosos incidentes de percurso à mistura, que não vêm para o caso. 

Depois dessa visita, muitas obras públicas foram construídas na Líbia por mãos portuguesas, naquele que foi um excelente exemplo de "diplomacia económica", embora com alguns quase "reféns" à mistura...

Como disse, os tempos são hoje outros, lá pela Líbia. Eu recordei os meus.

domingo, fevereiro 20, 2011

Euro

Há quatro anos, quando vivia no Brasil, fui convidado para fazer uma palestra na universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Antes do evento, foi-me oferecido um almoço, por responsáveis e professores. A certo passo da refeição, um docente canadiano, atirou-me, de chofre:

- A vossa zona euro está a dar sinais de degradação. A Alemanha e a França começam a não conseguir cumprir os critérios de convergência. Quantos anos mais Portugal conseguirá resistir, antes de ser forçado a abandonar a moeda única?

Confesso que fiquei aturdido. Até então, nunca ninguém me tinha colocado semelhante questão, que, à época, me parecia sem o menor sentido.

Recordo-me bem do que respondi:

- O custo que poderá representar, para Portugal, a tomada de medidas que venham a revelar-se necessárias para se manter na zona euro será sempre muito inferior àquele que o país teria de suportar se acaso viesse a ter de sobreviver fora dessa mesma zona, de regresso a uma moeda nacional.

O mundo deu, entretanto, muitas voltas e a discussão sobre a nossa posição face à "eurozona" anda agora por aí. Mas continuo a acreditar piamente na resposta que então dei.

Mísia

... e, regressando ao fado, noto que Mísia voltou a Paris, para um espetáculo em que deu voz a textos escritos por mulheres portuguesas, que intitulou "Senhora da noite". Por lá se encontram versos de Agustina, Hélia Correia, Lídia Jorge, Adriana Calcanhoto, Amália e da própria Mísia.

Ontem, como me dizem que aconteceu nos restantes dias, o magnífico teatro Bouffes du Nord estava a abarrotar, com o fiel público que Mísia soube por aqui criar e que lhe correspondeu em pleno. À sua cuidada presença em palco, servida por um bom apoio instrumental, Mísia soma uma capacidade muito rara de comunicação com a plateia, onde sempre se insere uma atenção particular aos portugueses presentes.

Surpreende-me sempre a ousadia da cantora, que teima em seguir um caminho exigente e inovador em matéria de poemas e, frequentemente, na própria seleção das músicas, embora seja cada vez mais constante o recurso a temas tradicionais, em detrimento do "outro fado" que ensaiou em alguns dos seus primeiros discos. O que, para o meu gosto, é uma boa notícia.

Em tempo: a pedido, aqui fica um belo fado de Mísia.

Resignação II

"Estivemos no limite da banca rota", escreveu a agência estatal Lusa, julgando citar Pacheco Pereira.

Manifesto a minha solidariedade pessoal com a opção do jornalista: sempre é preferível ter a "banca rota" do que cair na "bancarrota".

Não se pode... ensiná-los? Ou será já irremediavelmente tarde?

Resignação

"Notícias às 24", RTPi, há minutos: "O presidente Saleh, do Iémen, anunciou que se vai resignar dentro de dois anos".

E nós, resignamo-nos com este "jornalismo"? 

sábado, fevereiro 19, 2011

João Moniz

Há já algum tempo, tive uma mostra sua na Embaixada. Na sexta-feira, fui ver os seus novos trabalhos, nas paredes do Consulado-Geral de Portugal em Paris, na exposição "Singularités du blanc", que é possível visitar até 11 de março.

João Moniz trabalha entre Lisboa e Paris. Nesta sua nova série, a cor desempenha um papel cada vez mais relevante, sobre o seu branco tradicional.

Cristina Branco

Uma das maiores vozes do nosso fado regressa agora com um novo disco, chamado "Não há só tangos em Paris". 

Pois não, também há por aqui fados e, na minha muito pessoal opinião, pena é que a fadista os não privilegie nos seus discos e no seu percurso musical. É que se a sua inegável versatilidade lhe facilita tomar outros caminhos, para além do fado, talvez Cristina Branco um dia venha a perceber - como outros cantores portugueses tardiamente entenderam - que a fidelização de um público se faz pela afirmação de uma identidade específica. O ecletismo é uma virtude, mas a virtude nem sempre é popular.

sexta-feira, fevereiro 18, 2011

Carta de Inglaterra

Para um diplomata, o regresso a uma cidade onde viveu estimula um inevitável (e às vezes obsessivo) exercício de comparação das duas realidades temporais. No meu caso, sinto também um incontrolável tropismo para fazer juízos pessoais de valor sobre as permanências e as mudanças. Feitios...

Sucedeu-me agora com Londres, em dois dias que por lá passei.

Gostei de passear na calma de algumas ruas de Kightsbridge ou no bulício da Oxford Circus, de voltar a testar os sentidos no majestoso Food Hall do Harrods, de comprar chás bizarros no Fortnum & Mason, de me "atulhar" de livros na serenidade civilizada da Waterstone's de Picadilly, de apreciar as montras de fatos em Saville Row e das lojas de camisas em Jermyn Street. Não gostei de ver a Ryman, onde comprei as minhas primeiras "agendas-para-ano-e-meio", ter sido substituída por um loja de tecidos, de ver fechado para sempre o Oriel de Sloane Square, onde almoçava a lavar o olhar nas belezas londrinas, ao primeiro sol da primavera, de concluir que destruíram a casa de Park Lane onde Edgard P. Jacobs colocou o professor Mortimer a morar, no "A marca amarela". Gostei de ver a noite da City transformada numa festa que não existia no meu tempo, de sentir que o Peter Jones continua orgulhosamente impermeável à mudança, e que, poucos metros adiante, numa transversal a King's Road, a John Sandoe persiste com a mais criteriosa (e que só é anárquica para os não iniciados) escolha de livros de toda a cidade. Gostei de regressar à poeira de pub do Granadier, de ler que Taki segue politicamente incorreto e reacionário no insubstituível The Spectator, que o Evening Standard, apesar de gratuito, continua a dar razão a quantos acham imprescindível um jornal da tarde e de confirmar que, em matéria de rigor financeiro os motoristas de táxis londrinos batem bem a Standard & Poor's. E gostei, muito!, de rever amigas e amigos de sempre, essas âncoras, dispersas mas sempre sólidas, de uma vida de andarilho.

E, claro!, gostei de estar com mais de duas das quatro centenas de colegas "scholars" da Crabtree Foundation, no jantar anual de gala, que, desde 1954, sempre tem lugar na 4ª feira mais próxima do Valentine's Day, nessa perene instituição que se dedica ao culto da etérea memória de um homem que tem um passado cada vez mais cheio de futuro, que dá pelo nome de Joseph Crabtree. E, embora com o peso da especial responsabilidade que incumbe a um "foreigner" (não devemos ser mais de uma dezena, num mar de "bifes"), não direi que não tenha gostado da surpresa de ser entronizado como presidente anual da Crabtree Foundation, para 2011/2012. O Bartolomeu Cid dos Santos, por cuja mão entrei para este clube de culto, há quase duas décadas, deve estar a rir-se a bom rir...

Bebinca

Há já um tempo que não comia bebinca. Imagino que tenha sido por me ouvirem dizer que tinha saudades desse doce goês que tive o privilégio d...