quarta-feira, fevereiro 23, 2011

23 de fevereiro

Faz hoje 30 anos que a recém-restaurada democracia espanhola passou pelo seu maior teste. Um setor das Forças Armadas, esperando poder contar com a complacência conjuntural de diversas áreas partidárias e, essencialmente, com o beneplácito real, pretendeu instituir um governo com chefia militar, que responderia ao que entendia ser a incapacidade do executivo (aliás, demissionário) de Adolfo Suarez. As coisas, felizmente, não correram bem para os golpistas e a Espanha pôde prosseguir na construção da sua magnífica democracia.

Nesse tempo, eu vivia na Noruega. Por esses dias, em casa do meu colega espanhol em Oslo estava, de visita, uma sobrinha do promotor militar da revolta, o general Milans del Bosch. Recordo a noite de 23 de fevereiro, em que as incessantes repetições televisivas do "todo el mundo al suelo!", do "carabinero" Tejero eram interrompidas por chamadas telefónicas angustiadas de e para Madrid, na tentativa de saber mais pormenores sobre o evoluir da crise - com os presentes a disfarçarem, delicada e educadamente, o radical contraste das suas posições. E comigo a fazer brindes íntimos, a comemorar a derrota dos golpistas.

Hoje sabemos bastante mais sobre a "tejerada", sobre o papel central do general Armada em todo o golpe, sobre o tempo e o modo do rei nessas horas e, também, sobre a atitude - não tão clara quanto seria de esperar - de alguns partidos políticos, que viriam a revelar-se centrais na nova democracia espanhola. Para a história do momento, ficou o gesto valente de Adolfo Suárez, de Gutiérrez Mellado e de Santiago Carrillo, as três únicas pessoas nas bancadas das Cortes espanholas, entre algumas centenas, que revelaram coragem física e dignidade cívica, ao recusarem esconder-se sob as mesas, como lhes era ordenado pelos invasores do parlamento.

Nestas três décadas, li muita coisa sobre a transição espanhola e, em especial, sobre esse dia decisivo, as mais das vezes através de relatos de personalidades políticas da época. Há uns meses, um amigo espanhol, num congresso em Badajoz, recomendou-me a obra "Anatomia de un instante", de Javier Cercas. Não tendo conseguido então a versão original espanhola, comprei, há meses, uma tradução francesa e não dei por mal empregue o tempo da sua leitura. O autor não é um historiador e, ao que parece, tinha inicialmente a intenção de escrever um romance baseado no evento. Talvez por essa razão, o seu texto tem um ritmo muito diferente do tradicional, ao utilizar um método pouco comum de abordagem do fenómeno "23 de fevereiro", enveredando por uma segmentação do papel de cada uma das três personagens políticas acima referidas, tratando-as na sua contextualização própria, recortando-as psicologicamente, no seu brilho e nas suas sombras, sem, porém, perder o cenário global de fundo. E, não sendo, na base, um historiador, Cercas não esquece nunca os factos.

Aprendi imenso com este livro, o que significou dessacralizar algumas figuras, assumir as suas fraquezas mas, ao mesmo tempo, descortinar outros atores que só são secundários para a má historiografia. Não é um livro fácil, em especial para quem não seja iniciado na história contemporânea espanhola e, em especial, na trama do 23-F, mas, para mim, foi uma obra fascinante.

9 comentários:

patricio branco disse...

Uma boa sugestão, ir folhear o livro de javier cercas numa livraria.
Estas histórias dos golpes têm sempre muitos contornos que não vêm à luz, por vezes nunca se sabem, sobretudo os mais pessoais e intimos dos conspiradores e executores, quem eles convidaram, papeis passivos, ambíguos, etc.
Neste, passando-se em espanha,tem muito de quixotesco tambem, para o observados externo: na invasão, ocupação e sequestro das cortes o quijote foi antonio tejero, que em vez de ir contra os moinhos foi contra o hemiciclo. Depois, ali esteve horas e horas à espera que os outros fizessem algo para o golpe avançar e ir ganhando adeptos, incluindo o rei. Há uns 2 anos os espanhóis fizeram uma serie de televisão em 3 ou 4 episódios de 1 hora relatando o golpe, com actores parecendo-se o mais possivel com os protagonistas da intentona. Sai dali bem, alem do rei, o chefe civil da casa real sabino qualquer coisa, recentemente falecido.

Helena Oneto disse...

... "revelaram coragem física e dignidade cívica"... que bom ler estas palavras de novo!

Anónimo disse...

Também um dia memorável para mim...

Permita-me...

Pari
o meu
Primeiro
livro em branco
Acabado no inicio
Iniciado como Fim
Argumento Interminável

À
Primeira
Página

Sorri,

como quem lê, Ateu

Um primeiro passo lento
Do maior amor o derradeiro
Nosso Deus, memorável, apeadeiro

A folha
é o sonho,
Que desfolho

seja qual for;

Deixo Acontecer

E a capa

Honra olhar e Amor
leve e dura,
esbatida, agora pura

Foge de mim, já é Ela
livre caminha sem sentinela

Seja quem For


Escapa...

sempre a amanhecer...




À Minha Filha
Daniela seixas
que hoje...

dia 23 faz 23 anos

Como te amo Querida
Isabel Seixas

Olindo Iglesias disse...

De facto, o papel do Rei espanhol foi absolutamente fundamental, como foi a ação de Adolfo Suárez e de Gutiérrez Mellado, alías, ambos sendo agraciados pelo Rei com os títulos de Duque e Marquês respetivamente.

Resta-nos esperar que neste Portugal tão mal governado possamos um dia próximo termos novamente a chefia do Duque de Brangança como Rei de Portugal.

Anónimo disse...

Perante tais versos, há pouco que possa escrever que fique à altura. Por isso fico-me pela simplicidade do mais sincero obrigado pelas palavras de hoje e principalmente pelas de sempre*

Daniela Seixas

Helena Sacadura Cabral disse...

Parabéns amiga Isabel por esse dia que começou há 23 anos...
O aniversário dos filhos é o nosso também que, com dor, os parimos!

Maria disse...

Tinha lido no "Independent" uma boa critica ao livro,na traducao inglesa "Anatomy of a moment" . Tenho-o na minha lista de compras numa proxima ida a Piccadilly "Waterstones". Na semana passada houve um debate com o autor no South Bank Centre. Nao consegui ir por estar "otherwise engaged" mas teria gostado.Ainda nao tenho o dom da omnipresenca...

Maria Crabtree

Alcipe disse...

Cara Maria Crabtree
Gostaria de conhecer a relação familiar que tem (ou não) com o grande Crabtree. Isso ajudaria as minhas investigações genealógicas. Muito obrigado.

a) Alcipe

Julia Macias-Valet disse...

http://www.youtube.com/watch?v=Pcc0_8i0CYs

As imagens trazem-nos sempre recordaçoes. A foto do blog de hoje recordam-me os meus trajectos 10 anos antes (em 1971) entre a avenida Menendez Pelayo (com passagem pelo Retiro) e a Sastreria do meu padrinho a dois passos do Teatro de la Zarzuela (para o qual ele realizava fatiotas). Os leoes das Cortes eram o meu local preferido de brincadeira durante o trajecto.

Caro embaixador, como quem nao quer a coisa, la nos pôs outro leaozito "no boneco"; )))

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...