quinta-feira, outubro 24, 2019

10 mesas da Beira interior


Desta vez, vamos para os distritos de Viseu, Guarda e Castelo Branco. Dentre muitos outros pousos gastronómicos que poderia indicar, aqui ficam 10 casas, muito diferentes entre si, que, mesmo sem recurso aos guias da moda, me vêm à memória quando me apetece comer bem nas minhas andanças pela Beira interior, mantendo a regra de não referir mais do que um restaurante em cada localidade:

Cantinho do Tito, Viseu

Cova da Loba, Linhares da Beira, Celorico da Beira

Vallecula, Valhelhas

Restaurante da Pousada, Belmonte

Taberna A Laranjinha, Covilhã

Casas do Coro, Marialva

Entre Portas, Pinhel

Três Pipos, Tondela

Tasquinha do Matias, Ucanha, Tarouca

O Lagar, Herdade do Regato, Castelo Branco


Experimentem e digam da vossa justiça! 

Na sexta-feira, falaremos da Beira Litoral

quarta-feira, outubro 23, 2019

Maçonarias


Achei de muito mau gosto a insinuação oblíqua feita por Rui Rio, aquando do anúncio da sua recandidatura à liderança do PSD, de que Luis Montenegro é membro da Maçonaria. Como se isso fosse um crime ou um fator desqualificador de alguém.

Começo a não ter paciência para as teorias conspirativas sobre a Maçonaria, que por aí surgem com regularidade. Nunca fui tocado pelas "luzes" da subordinação espiritual ao "grande arquiteto universal" e não será por acaso que jamais alguém me aproximou a sugerir que me juntasse a esses rituais. Aliás, embora sendo para mim difícil perceber as razões que levaram muitos amigos meus a enveredar por essa opção, notei que nunca foram tentados a converter-me. Pela minha parte, também nunca lhes perguntei nada, porque nada tenho a ver com as opções filosóficas ou religiosas de cada um. Não me passa pela cabeça interrogar alguém sobre se é e por que é católico ou “testemunha de Jeová" ou se acredita no espiritismo.

A principal razão por que me incomoda esta espécie de suspeição obsessiva sobre a Maçonaria é que, durante a ditadura, sempre vi a diabolização da prática maçónica a ser titulada por quantos combatiam a democracia. Por isso, não posso deixo de considerar algo "salazarento" o movimento de opinião que, em Portugal, tenta forçar o "outing" de quantos se reunem nas várias “obediências”. Deteto neste tropismo, um tanto persecutório, o renascer de um preconceito que, antes do 25 de abril, a ditadura tinha para com as confissões maçónicas, que levou à perseguição de muitos dos seus membros e ao encerramento violento dos seus locais de reunião. E, assumindo o risco de estar a agitar a demonologia "talassa", gostava de lembrar o papel muito positivo que devemos à Maçonaria para a implantação da República, antes e no 5 de outubro de 1910.

Não é por ser mação, católico ou ateu que um cidadão é pior ou melhor que os outros. Bandidos ou pessoas de bem há-os por aí em todas as confissões, crenças ou "fezadas".

10 mesas de Trás-os-Montes e Alto Douro


Chegou a vez de Trás-os-Montes, com duas incursões ao Alto Douro, na margem esquerda do rio, nestas listas muito pessoais de 10 restaurantes por região.

Relembro a lógica: (1) Estes não são necessariamente “os melhores” restaurantes, mas apenas aqueles que sempre me sinto tentado a visitar; (2) Em regra, não se incluem casas com oferta sofisticada e culinária de “salto alto”, mas apenas com cozinha portuguesa tradicional; (3) Fora de Porto e Lisboa, só é indicado um restaurante por localidade:

Taberna do Carró, em Torre de Moncorvo

DOC, na Folgosa

Lameirão, em Vila Real

Toca da Raposa, em Ervedosa do Douro

Costa do Sol, em Vila Pouca de Aguiar

Cozinha da Clara, Quinta de La Rosa, Pinhão

Carvalho, em Chaves

Geadas, em Bragança

Castas e Pratos, na Régua

Maria Rita, no Romeu, Mirandela

Em dias anteriores, foram já publicadas as listas do Minho e do Porto. Amanhã será a vez da Beira Interior.

Aproveitem!

Sair da cepa torta


Há dias, José Sócrates criticou, num artigo publicado no Brasil, o facto de António Costa não ter renovado a Geringonça, através de um acordo escrito com o Bloco de Esquerda. É irónico ver o antigo primeiro-ministro pronunciar-se desta forma, se tivermos em conta que, do seu tempo, nenhum gesto de aproximação com a “esquerda da esquerda” ficou nos anais da nossa política caseira. Bem pelo contrário, como se lembrará a “tia” de Francisco Louçã...

Dentre os primeiros-ministros socialistas da nossa democracia, nem Mário Soares, nem António Guterres, nem José Sócrates consideraram existirem condições para derrubar o muro que separava os utentes habituais do “arco da governação” dos setores mais à esquerda. E, provavelmente, com razão.

Soares governou na Guerra Fria e trazia consigo o trauma dos embates de 1975, o que não obstou a que fosse o “povo de esquerda” a colocá-lo depois em Belém. Guterres fez um governo de centro-esquerda, única forma de potenciar o declínio do cavaquismo. Sócrates, curiosamente, partiu de uma postura que chegou a seduzir setores conservadores, para depois se enquistar num processo de autismo político que, no plano retórico, procurou, na sua fase final, colocar-se num registo de esquerda-direita. Nenhum dos três, contudo, fez qualquer gesto à sua esquerda, quiçá também pela consciência de que isso não teria a menor retribuição.

Há que creditar a António Costa a coragem desse gesto, tanto mais que ele teve lugar num tempo de particular debilidade do país na ordem financeira externa, quando Portugal estava sob severa vigilância dos seus credores, que se tinham sentido confortados por um governo que tão bem mimetizava internamente o seu receituário político. Mas tem de partilhar esse mérito: uma imensa “gratidão” é devida ao espetro que constituía a hipótese de um regresso de Passos Coelho, o mais poderoso fator que levou os comunistas a caminharem no sentido de um conjuntural “compromisso histórico”.

Escrevi “conjuntural” com plena convicção. O PCP cedo mostrou que o “negócio” de 2015, se bem que agradável às suas bases, teve um custo institucional forte e não era para repetir. Para António Costa, fazer agora um acordo isolado com o Bloco seria um gesto vão. O peso dos bloquistas, à parte alguns fogachos sectoriais, esgota-se na bancada de S. Bento. Costa sabe bem quem pode estar ao seu lado e contra si no verdadeiro desafio do novo governo: potenciar o crescimento e controlar as corporações. Sem isso, não sairemos da cepa torta.

terça-feira, outubro 22, 2019

A OSCE e a restauração do Porto


Em dezembro de 2002, a OSCE organizou no Porto a sua reunião ministerial anual. Portugal detinha a presidência anual da organização e eu chefiava o respetivo Conselho Permanente, que congregava os então 55 embaixadores de outros tantos Estados membros.

Porque a vida internacional também tem de comportar aspetos lúdicos, eu havia decidido "apresentar" o Porto às cerca de 700 pessoas que a reunião congregava. Para tal, escrevi e a OSCE publicou, ainda em Viena, um livrinho onde dava algumas dicas para visitas à cidade e, essencialmente, apresentava uma lista comentada por mim de 27 restaurantes do Porto e arredores, misturando diversos tipos de oferta gastronómica. 

Porque nas organizações internacionais alguns documentos de reflexão são designados "food for thought", lembrei-me de inverter os termos e dar ao guia o título de "Thoughts for food"... Foi um êxito! Ainda recordo a perplexidade do motorista que me acompanhava: "Ontem, um delegado ucraniano, pediu a um colega meu para o levar ao "Veleiros", em Perafita. Como é que é ele terá sabido da existência do restaurante?"

Deixo aqui a capa do pequeno livro e a lista completa dos restaurantes que então recomendei, que mereciam uma descrição individualizada de algumas linhas cada. Quem conhece a oferta de restauração da cidade do Porto nos dias de hoje pode achar graça a este retrato de há 17 anos.


10 mesas do Porto


O prometido é devido! Depois do Minho, aqui deixo a indicação de 10 restaurantes do Porto e arredores (com mais dois à mistura, e logo explicarei porquê) que sempre me ocorrem, quando por ali ando e me apetece comer bem. Volto a lembrar que não se inclui aqui cozinha “contemporânea” ou “de autor”.

Ontem, a propósito da lista minhota, logo surgiram as naturais divergências, as “faltas imperdoáveis”. Ora, repito: estas não são listas dos “melhores” restaurantes mas, apenas e só, de alguns (muitos outros haveria) que me despertam memórias gustativas positivas.

Aqui ficam, pois, os “meus dez” do Porto e arredores:

Cozinha do Manel, rua do Heroísmo, Campanhã, Porto

Gaveto, em Matosinhos

Antunes, rua do Bonjardim, Porto

António, em Leça

Casa Nanda, rua da Alegria, Porto

Adega São Nicolau, rua de São Nicolau, Ribeira, Porto

Cozinha da Terra, em Louredo, Paredes

Lider, alameda Eça de Queiroz, Antas, Porto

Mário Luso, nos Carvalhos

Cozinha da Amélia, rua do Campo Alegre, Porto

Acrescento a estes 10 restaurantes outros dois, de uma natureza um pouco diferente, fugindo ao modelo de cozinha tradicional portuguesa do grupo anterior, mas que, para mim, são também incontornáveis, ambos, aliás, na zona da Foz.

Cafeína, na rua do Padrão
Wish, no largo da Igreja

Como aprendem a dizer os empregados saídos das escolas hoteleiras, quando nos deixam os pratos sobre a mesa, “espero que gostem”.

Vida nova


É saudável sentir que a classe política se renova. Ao olhar os nomes dos integrantes deste governo, e se as minhas contas não falham, creio que, das dezenas de figuras que o compõem, há já muito escassos membros dos anteriores executivos socialistas.

Apenas António Costa esteve presente, primeiro como secretário de Estado e depois como ministro dos Assuntos Parlamentares, no XIII governo constitucional, o primeiro chefiado por António Guterres, que tomou posse em outubro de 1995. 

Além dele, Augusto Santos Silva, Eduardo Cabrita, Nelson Sousa e José Apolinário integraram o segundo governo de Guterres, o XIV governo constitucional, que iniciou funções em outubro de 1999. Só Santos Silva veio a exercer então funções de ministro, tendo antes sido secretário de Estado, como os restantes.

Dentre os outros membros do próximo governo, apenas Teresa Ribeiro e João Gomes Cravinho integraram, respetivamente, os XVII e XVIII governos constitucionais, presididos por José Sócrates, ambos como secretários de Estado.

segunda-feira, outubro 21, 2019

10 mesas do Minho


Alguns amigos, que às vezes por aqui me veem citar um ou outro restaurante, têm-me perguntado se tenho alguma lista de “favoritos” e, nesse caso, se a posso divulgar.

Claro que sim! Mas permitam-me que esqueça, por completo, a “alta cozinha”, as estrelas, os chefes que estão na moda, o “fine dining”. Falemos apenas de cozinha tradicional portuguesa.

Vamos começar pelo Minho.

Aqui fica o nome de 10 - mas, claro, podiam ser 20 ou 30 - restaurantes do Minho, e escolho apenas um por localidade, que sempre me ocorrem quanto me apetece comer bem:


São Gião, em Moreira de Cónegos, Guimarães

Bocados, em Ponte de Lima

Casa de Armas, em Viana do Castelo

Adega do Sossego, em Melgaço

Dona Júlia, em Braga

Victor, em São João de Rei, Póvoa do Lanhoso

Bagoeira, em Barcelos

Caneiro, no Arco do Baúlhe, Cabeceiras de Basto

Mariana, em Afife

Costa do Vez, nos Arcos de Valdevez

Já imagino o que aí vem: “Então e o ... ?” ou “Esse já não é o que era!” e coisas assim. Pois é, mas isto é o que eu penso!

Amanhã, falaremos do Porto e arredores.

domingo, outubro 20, 2019

UKEXIT (2)


... e depois de mandar a carta já aqui antes publicada (não a assinando, acintosamente), Boris Johnson envia outra a manifestar-se contrário àquilo que foi obrigado pelo parlamento a fazer. Uma esquizofrenia política sem precedentes.

Se estivesse no lugar dos dirigentes europeus, eu seria tentado a exigir que o interlocutor britânico de Bruxelas fosse capaz de dizer-lhes qual é, afinal, a posição final que compromete o Reino Unido.

E, atendendo à clara falta de legitimidade para representar o país na ordem externa, que afeta hoje o alegado governo britânico, consideraria suspenso o processo iniciado com a invocação do artº 150, reportando “sine die” a data de 31 de outubro para o Brexit, até que, de Londres, e sem a menor ambiguidade, surgisse uma posição inequívoca sobre o que afinal querem.

É que, pensando bem, a posição de Johnson continua a não ser muito diferente da de Theresa May: acordou algo com a UE que, afinal, não consegue fazer aprovar internamente.

UKEXIT

Boris Johnson parece uma criança teimosa. Não querendo “discutir” com Bruxelas a extensão do adiamento do Brexit, mandou este texto não assinado, anexo a uma certa do seu embaixador junto da UE. No fundo, é exatamente a mesma coisa, pede o adiamento, mas mantém a “birra”. O RU é isto?

A palavra da União


No último Conselho Europeu, não foi possível encontrar consenso para, pelo menos por ora, prosseguir o processo de adesão da Albânia e da Macedónia do Norte à União Europeia. A França e dois outros países terão estado na origem desta atitude.

Os processos de adesão têm uma dimensão política, não apenas na avaliação de quem pretende entrar, mas igualmente na existência de condições para cada Estado membro vir a ratificar futuramente o acordo de adesão - o que terá sempre de ser feito por unanimidade. Para cada uma destas questões há tempos de análise e decisão.

A União tem critérios claros sobre quem é elegível para ser seu membro, não só quanto ao espaço geográfico abrangível como quanto ao preenchimento de condições de diversa natureza, dentre as quais os chamados “critérios de Copenhague” não são os menos relevantes. A escolha dos novos “sócios” não se faz por acaso, obedece a regras e tem de ser muito transparente.

Depois de iniciado, o processo passa a ter uma dimensão exclusivamente técnica, que compete à Comissão gerir, num processo dividido em ”capítulos”, que se vão “fechando” à medida que os países candidatos fazem prova de terem feito as mudanças e adaptações que lhes são exigidas. Tudo sob critérios muito objetivos, com escassa margem para subjetividade.

Pode perceber-se que se “jogue”, por vezes, com o fator tempo para tratar um determinado processo de adesão, mas é indigno de uma UE, como entidade internacional com palavra, ser vista a frustrar a vontade política de parceiros que tiveram a coragem de fazer reformas, algumas das quais com preço interno elevado, para depois se verem confrontados com uma recusa incompreensível, difícil de explicar às suas opiniões públicas, com impactos sérios sobre a credibilidade interna dos seus dirigentes. O caso na Macedónia do Norte é, neste caso, paradigmático: o país foi mesmo obrigado a mudar a sua designação para poder ser elegível, num processo interno “doloroso”.

Esteve muito bem António Costa ao exigir que a União esteja à altura da sua palavra e não seja um joguete nas mãos de alguns dos seus sócios mais poderosos. A UE ou é uma pessoa de bem ou acabará por confirmar a imagem negativa que muitos dela cultivam.

A “Delícia” e a crítica


Já por aqui falei, por mais de uma vez, de Fortunato da Câmara que, no “Expresso” herdou, já há bastantes anos, a difícil tarefa de substituir essa figura referencial da crítica gastronómica portuguesa que dá pelo nome de José Quitério. 

Num estilo pessoal diferente, mas igualmente com um rigor extremo, aliado a um conhecimento muito raro nos cultores deste tipo de escrita, uma análise feita por Fortunato da Câmara a um restaurante é, para mim, uma garantia de isenção, qualidade e orientação. 

Sigo-o todas as semanas e nunca - repito, nunca - uma sua indicação me desiludiu. Nos anos em que também andei, de forma despretensiosa, por aquelas andanças críticas, muito aprendi com ele. 

Ao lado de Fernando Melo e de Manuel Gonçalves da Silva, Fortunato da Câmara é, nos dias de hoje, o meu “farol” nesta constante e bela “angústia para o jantar” - para citar o título de uma obra de ficção de Luis Sttau Monteiro, ele próprio um crítico gastronómico que assinava “Manuel Pedrosa”.

Trago hoje aqui o nome de Fortunato da Câmara porque, no “Expresso” de ontem, ele faz uma análise crítica a um restaurante de comida tradicional portuguesa que aprecio e que entendo merecer bem o destaque que o semanário lhe concede: a “Marisqueira Delícia”, em Moscavide. 

Ver um restaurante desta natureza ser sublinhado por um dos mais relevantes críticos gastronómicos portugueses é não só a verdadeira prova da “democraticidade” da nossa crítica mais exigente mas, igualmente, um sintoma claro de que a verdadeira qualidade pode ser encontrada em mesas de todos os escalões.

Posso confirmar: a ”Delícia” é um pouso de cozinha bem honesta, uma casa de ambiente solto e com preço justo para uma marisqueira - o que, como se sabe, não é muito fácil de encontrar. 

É muito bom que, para além do mundo dos chefes e do nomes sonantes das casas de restauração, também possamos apoiar quem se mantém, com pertinácia, até em lugares geográficos um pouco periféricos, a executar uma culinária que honra da gastronomia portuguesa. Como é o caso da “Delícia” de Moscavide.

sábado, outubro 19, 2019

Snooker


Às vezes, pergunto-me o que me levará a passar horas, entrando pela madrugada, vidrado na televisão, a ver grandes torneios de “snooker”. E aos anos que isso acontece!

Creio que foi quando vivi em Londres, nos anos 90, que este meu vício começou, seduzido um dia por aquele jogo geométrico, de tensão calma, onde a precisão se junta à inteligência. Os comentadores eram, quase sempre, magníficos, pedagógicos, aprendi com eles a decifrar os segredos daquela arte e a história da modalidade. E o mais curioso é que nunca vi um jogo ao vivo, o que torna esta minha mania ainda mais bizarra.

Esses eram então os anos de ouro de Stephen Hendry que, com aquele ar permanentemente ensonado, se batia com Jimmy White, cujo aspeto e cabelo “rough”, denunciavam, melhor do que tudo, a óbvia base social de recrutamento daquele jogo. Estava então a nascer esse génio que iria ser Ronnie O’Sullivan, cujas primeiras vitórias me recordo terem coincidido com o tempo em que o seu pai estava na prisão. Era também o início do declínio de um imenso jogador que foi Steve Davis.

Para mim, têm sido décadas a ver excelente “snooker”, jogo que nunca me atrevi a tentar jogar, salvo em alguns obscuros cafés de província, porque o “sapateiro” que sou não deve ir “além da chinela” e eu nunca passei de um sofrível praticante de bilhar livre.

Hoje, depois de assistir, deliciado, à sessão dura nos Comuns sobre o Brexit, não encontrei nada melhor do que o English Open para compor a minha tarde.

sexta-feira, outubro 18, 2019

O “Choco” e a escada


“O menino quer que, amanhã, lhe guarde o Expresso? É que se esgota!”. A frase, dita pelo Fernando “Choco”, naquele quiosque improvisado junto ao mercado de Vila Real, traduzia, simultaneamente, a escassez de exemplares dos semanários que chegavam a Vila Real e o carinho, vindo da infância, com que, pelo “senhor Fernando”, sempre me habituei a ser tratado. Noto que o “menino”, à época, era já um quarentão tardio.

De onde terá nascido o nome de “Choco”, associado ao Fernando, que era Cardoso de apelido? Sempre me perguntei, sem resposta e, claro, sem nunca ousar tratá-lo como tal.

Comecei por conhecê-lo numa “venda” que tinha na antiga descida do Pioledo para a rua de Santo António. Mais tarde, abriria uma minúscula mas muito popular loja de jornais e tabacaria na rua Central, entre o Salgueiro relojoeiro e o Lousada da tipografia. Por esse tempo, muito sob a mão da sua mulher, manteve uma bela casa de petiscos, na Rua das Pedrinhas, em cuja cave, para onde se entrava por um alçapão, me recordo de ter estado em grandes tainadas. Finalmente, creio que acabou a vender jornais e revistas, na loja junto ao mercado, de que fui fiel cliente, quando passava pela cidade.

O Fernando “Choco” pode ter feito tudo isso e muito mais na vida, recordando-o a cidade na sua moto, com uma caixa atrás, com que ia buscar os “rolos dos jornais” ao comboio, para nos alimentar a sede das notícias de Lisboa.

Porém, se houve um amor definitivo na vida do Fernando esse foi o Sport Clube de Vila Real. Aí fez tudo: de guarda do campo a roupeiro, de massagista a (creio, mas posso estar enganado) adjunto de treinador. Há imensas fotografias de equipas do Sport Clube em que surge o Fernando “Choco”, em algumas delas, ao que recordo, de boina basca. 

Por que  me lembrei hoje do Fernando “Choco”? Porque, ao rever fotografias guardadas, descobri esta que tirei uma noite, há uns anos, à escada de pedra que une o Campo do Calvário, onde o Sport Clube jogou por décadas, e o Jardim da Carreira.

Tudo bem, mas o que é que o ”Choco” tem a ver com a escada? Tudo. Por muito tempo, eu vi aquele homem, durante os jogos de futebol, a ter de descer (e, depois, subir) aquela imensa escada, sempre que o Cesteiro, o Castanheira, o Bibelino ou qualquer outro alvinegro davam um pontapé esquinado que fazia a bola sair por alto, pelo lado do peão, a caminho do jardim.

Ao miúdo que eu então era impressionava imenso ver aquele homem nessa tarefa humilde, essencial mas nada gloriosa, de ir buscar a bola “lá baixo”, ao meio dos namorados entretidos a arrulhar pelas tardes domingueiras do Jardim da Carreira.

Agora que o Sport Clube faz 100 anos, que tal homenagear a memória de um dos seus mais dedicados servidores?

quinta-feira, outubro 17, 2019

A diplomacia e o Brexit


O bom senso parece ter acabado por prevalecer na negociação do Brexit. O regresso a uma fórmula que Theresa May tinha rejeitado - que cria um regime específico para a Irlanda do Norte dentro do Reino Unido - pode ter sido a chave do sucesso.

Dentro da muito má notícia que é a saída do Reino Unido da União Europeia, provocando o sensível enfraquecimento desta (financeiro, militar, geopolítico, etc), este parece ser (digo, parece, porque os detalhes são complexos) um compromisso aceitável, um imenso alívio face à crise que um rompimento sem acordo provocaria.

Recordo que foi graças a uma laboriosa negociação que isto foi conseguido. A diplomacia está, assim, de parabéns!

O euro


É com muito prazer que irei moderar o painel de encerramento da Conferência “The euro 20 years on: the debut, the present and the aspirations of the future”, sobre a dimensão geopolítica do euro, organizada pelo Banco de Portugal, no próximo dia 15 de novembro, integrado por Paul de Grauwe, Carlos Moedas e Wolfgang Munchau.

Ver o programa aqui.

Ranhoso



“Um dia ranhoso” era expressão com que, na minha juventude, se qualificava um dia como o de hoje

Relações internacionais


Haverá sempre uns maduros, que, à medida que os anos passam por eles, mais fingem “adolescer” pela afirmação de uma esforçada iconoclastia, que acharão muito bem que se “rompa” com o formalismo e se chame ”os bois pelos nomes”.

A esses agradará, estou certo, o estilo desta carta de Trump ao seu homólogo turco. Tenho, porém, a absoluta certeza de que esta peça envergonha a esmagadora maioria dos profissionais americanos de relações internacionais.

Jesus!


Nunca pensei ter curiosidade de ir saber, de madrugada, o resultado de um jogo do campeonato brasileiro. Mas fi-lo, há pouco, para ver como acabou o Fortaleza-Flamengo. E fiquei satisfeito por constatar que a equipa de Jorge Jesus, não obstante não poder contar com cinco titulares, conseguiu mais uma vitória, aproximando-se assim, a passos largos, da conquista do “Brasileirão”.

A carreira brasileira de Jesus está a ser uma coisa magnífica! Ver um treinador português singrar num ambiente marcado por um futebol de matriz tão diferente é uma grande notícia, que creio estará a fazer muito bem à comunidade portuguesa e luso-brasileira do outro lado do Atlântico, muito para além das suas afinidades clubistas. 

Não devemos comemorar os “não-eventos”, mas quem conhece alguma coisa do mundo luso-brasileiro contemporâneo perceberá o que quero dizer quando afirmo, com convicção, que um eventual fracasso clamoroso de Jorge Jesus seria uma coisa bastante negativa. E mais não digo.

quarta-feira, outubro 16, 2019

Na “Gomes “ com Capoulas Santos


Sai do governo, nesta nova etapa, o meu amigo Capoulas Santos. Há quase um quarto de século, estivemos juntos em dois governos, ele inicialmente como secretário de Estado de Gomes da Silva, depois ele próprio ministro.

Por mais de cinco anos, encontrámo-nos muito nas lides europeias, onde a Agricultura é uma temática da maior importância, representando uma fatia muito significativa dos fundos recebidos por Portugal. Guardei uma grande admiração pela competência e pertinácia de Capoulas Santos. Os excelentes resultados que o nosso país quase sempre conseguiu obter, numa Política Agrícola Comum que não estava originalmente desenhada para os nossos interesses, muito se ficam a dever a este político de imagem modesta e de grande eficácia funcional.

Há semanas, cruzei-me com Capoulas Santos, algures no seu Alentejo. Foi então, com surpresa, que o ouvi dizer-me: “Um destes dias, tenho de ir consigo a Vila Real. Tenho lido tantas histórias que você tem escrito nas redes sociais sobre a cidade, que tenho a impressão que já a “conheço” muito bem. Mas precisamos de ir lá juntos, para eu apreciar melhor”.

Não se admirem se, um destes dias, eu e Capoulas Santos estivermos sentados na Pastelaria Gomes, para um covilhete ou uma crista de galo.

Uma outra América



Será necessário regressar aos tempos de Nixon e do “Watergate” para se encontrar um tempo em que um presidente norte-americano surja, aos olhos públicos, tão acossado politicamente. O ambiente que, menos de três anos passados sobre a sua tomada de posse, rodeia Donald Trump é marcado por uma crispação quase sem precedentes, com impacto na malha parlamentar, onde quase se não vislumbra uma réstia de compromisso institucional entre as bancadas.

É justo dizer-se que, antecedendo a sua posse, estava já criada a ideia de que uma figura como Donald Trump se iria tornar numa personagem política controversa. O multimilionário palavroso e fanfarrão cedo deixou claro que não estava disposto a ficar aculturado pelo sistema e que, pelo contrário, era o próprio modelo de presidência que tinha de se adaptar a ele. E, nesse domínio, não desiludiu as expetativas.

Trump é um presidente que fez a deliberada opção de governar sob permanente tensão. Cortando, com os seus constantes “tweets”, a dependência dos meios de comunicação tradicional, colando estes a uma leitura da realidade que apelidou de “notícias falsas”, Trump cria, a toda a hora, a sua própria verdade e espalha, com a maior impunidade, falsidades que, na boca de qualquer outro político, seriam o caminho para o imediato descrédito. Trump tem com ele um eleitorado potencial que está pouco preocupado com a descolagem da verdade que o presidente projeta e, muito mais, que vive confortado com a certeza de que ele continuará a ser a barreira segura contra os receios que povoam o seu quotidiano.

Quando, há dias, o presidente decidiu abandonar à sua (má) sorte os curdos, que tinham ajudado os EUA a travar os demónios do extremismo islâmico, que havia sido uma óbvia resultante longínqua da aventura iraquiana de Bush filho, Trump nem por um segundo pensou no cinismo do gesto. Refletiu, isso sim, que isso responde a uma opinião pública interna que vive um tempo de tropismo isolacionista. Trump sabe que, ao fazer regressar ”our boys”, satisfaz um eleitorado que o elegeu também para isso. E que, também por isso, talvez o volte a escolher.

Mas a América não foi sempre assim?, perguntarão alguns realistas. Talvez, mas, antes, tinha algum cuidado em disfarçar. Trump é a cara descarada da vergonha perdida de uma América egoísta e autocentrada que, pelo menos com ele, está rapidamente a desperdiçar a autoridade moral que lhe assegurava a liderança de um mundo que, também graças a ela no passado, podia chamar-se a si próprio de livre.

terça-feira, outubro 15, 2019

O combate de um governo


É muito interessante a composição deste novo governo. A meu ver, António Costa deu quatro sinais básicos. 

O primeiro, com a promoção de Pedro Siza Vieira a seu nº 2, foi mostrar um governo “business friendly”, trazendo a economia e o crescimento para o centro das suas preocupações. Siza Vieira tem uma boa imagem no mundo empresarial. Se a isto somarmos a recusa frontal em abrir a porta à discussão da legislação laboral, como o Bloco de Esquerda propunha, há aqui um evidente sinal dado à iniciativa privada.

O segundo é o da afirmação de força perante as corporações. Médicos e enfermeiros devem ter ficado tão “contentes” como os professores, ao saberem que voltam a ter à sua frente Marta Temido e Tiago Brandão Rodrigues, dois ministros algo desgastados, mas que Costa insistiu em “proteger”. A continuidade de Eduardo Cabrita vai no mesmo sentido. É, a meu ver, um forte sinal de que Costa “vai à luta”. 

Para proteger, mas desta vez o governo, Costa insistiu na manutenção de Francisca Van Dunen na Justiça. A contestação à ministra é escassa, ela própria é oriunda do Ministério Público e a sua margem de interlocução com o setor continua a ser muito importante, em tempos de contestação corporativa mas, igualmente, de processos “quentes” que encherão as capas do Correio da Manhã nos tempos que aí vêm.

O terceiro é a decisão de retirar ao Ministério das Finanças a Administração Pública, lugar onde, ciclicamente, esta temática vai parar. Mas, talvez mais importante do que isso, é a escolha de Alexandra Leitão, a cara vitoriosa da questão dos “contratos de associação”, para chefiar esse novo ministério. Ela é alguém que, com indiscutível competência, aí lutou pelo setor público e que agora terá a seu cargo as relações com os sindicatos desse setor. Mário Nogueira já deve estar a explicar a Ana Avoila com o que pode contar. Esperam-se tempos interessantes, mas nada fáceis, neste setor.

O quarto é uma clara nota de renovação, que seguramente a lista de secretários de Estado acentuará. Neste movimento, Costa perde três excelentes ministros: Vieira da Silva, Ana Paula Vitorino e Capoulas Santos, mas abre caminho ao futuro. É assim que são promovidas “rising stars”, como Mariana Vieira da Silva, que sobe a ministra de Estado, da já referida Alexandra Leitão, bem como da nova ministra do Trabalho Ana Mendes Godinho. A larga distância das outras formações partidárias, o Partido Socialista, pela mão de António Costa, está a abrir a porta a uma nova geração.

Uma nota final. É uma excelente notícia a permanência no governo, agora como ministros de Estado, de Mário Centeno e de Augusto Santos Silva, duas figuras que, cada um no seu setor, tiveram um “percurso limpo” e de imensa qualidade nesta difícil prova de obstáculos que foram estes últimos quatro anos. 

Santos Silva prescinde do lugar de nº 2, o que revela o grande sentido de Estado que sempre tem sido o seu, preparando-se para a importante tarefa da presidência portuguesa da União Europeia em 2021. Está por saber se, com a ascensão de Siza Vieira, o MNE virá a perder a tutela da AICEP.

Centeno, como já referido, aceitou ficar sem a Administração Pública, mas vai ficar na memória histórica da anterior legislatura como a principal “estrela” do processo de credibilização do país na ordem internacional.

Era expectável a continuação dos restantes ministros. Desconheço as novas caras, salvo André Caldas, que pode ser uma boa surpresa.

António Costa fez agora um governo de combate. E só se fazem governos desta natureza quando se pressente que a luta vem aí. Acho que Marcelo Rebelo de Sousa, ao não ter mostrado, de forma deliberada, o menor sorriso nas imagens televisivas a anteceder o encontro ao final da tarde de hoje com Costa, ao contrário da cara confiante deste último, revelou que já percebeu tudo.

O novo Maigret


Rowan Atkinson encarna o inspetor Maigret numa série inglesa de que ontem vi os primeiros episódios. 

Numa primeira nota, há que dizer que Atkinson confirma, uma vez mais, ser um excelente ator. Este papel dramático prova, se necessário fosse, que ele está muito longe de ser apenas o Mr. Bean ou o Johnny English. 

Numa segunda nota, deve dizer-se que os episódios estão muito bem construidos, excelentemente realizados, como o ingleses de há muito nos habituaram. 

Numa terceira e última nota, há que constatar que “aquele” Maigret pouco ou nada tem a ver com as personagens de Georges Simenon, com os ambientes a que os seus livros nos habituaram, com o próprio ritmo narrativo do escritor. 

Aquele não é o meu Maigret, que conheço muito bem, dos muitos livros que li e o têm por principal figura. Mas admito que outros pensem o contrário. Dito isto - e não é nada contraditório -, recomendo vivamente esta série, esta peculiar leitura anglo-saxónica da obra de um dos maiores escritores policiais do mundo.

segunda-feira, outubro 14, 2019

Catalunha

Sinto ter muito pouco a dizer, a propósito da decisão dos tribunais espanhóis sobre os secessionistas da Catalunha. A decisão não me surpreendeu, à luz das leis espanholas, que são as relevantes na matéria. Um gesto de atenuação da pena por parte do rei, que se mostrou muito inábil no início deste processo, seria, contudo, bem vindo, para provocar alguma acalmia nas tensões. Oficialmente, por parte de Portugal, só espero uma atitude: contenção no discurso e respeito absoluto pela unidade espanhola. O nosso único interlocutor peninsular é Madrid. Ponto. Espero, aliás, que as pessoas tenham sentido da medida nas suas reações, preocupando-se talvez um pouco mais com o drama curdo, onde morre gente “como tordos” a toda a hora, em face da inércia palavrosa da Europa. E mais não digo, sabendo que, com o que acabo de escrever, não irei ser muito popular. Mas não ando aqui para isso, como já devem ter percebido.

A difícil partida


Naquele ano político decisivo que foi 1980, António Ramalho Eanes deslocou-se à Noruega, numa visita de Estado, como presidente da República, retribuindo a que o rei Olavo V fizera ao nosso país, dois anos antes. Recordo que a Noruega havia sido dos países que mais tinham auxiliado, económica e tecnicamente, o novo regime democrático português.

Eu estava há um ano colocado na embaixada em Oslo, onde só havia dois diplomatas: o embaixador e eu. A montagem dessa visita foi assim um trabalho muito intenso, embora facilitado pelo espírito prático dos noruegueses.

Em Portugal, as coisas estavam a ferro e fogo, entre o presidente e o governo da Aliança Democrática (AD), presidido por Sá Carneiro, ao ponto do ministro dos Negócios Estrangeiros, Freitas do Amaral, se ter feito substituir na delegação pelo secretário de Estado, Azevedo Coutinho, e de nenhum outro membro do governo ter sido indicado para acompanhar o presidente. Muito pouco tempo depois, a AD iria lançar a candidatura de Soares Carneiro para tentar evitar a reeleição de Eanes. Sá Carneiro morreria num desastre aéreo em dezembro, Eanes seria reeleito ainda nesse mês e a AD, como projeto político, iniciava ali o seu inexorável declínio.

Era visível, nessa visita à Noruega, a tensão entre a “entourage” do presidente e o pessoal político afeto ao governo, com a nossa pequena embaixada no meio daquela contenda surda, por vezes a receber ordens contraditórias, o que nos não tornava a vida fácil. 

A visita, essa, correu lindamente. Entre Eanes e o rei Olavo V passava uma forte simpatia, não obstante as conversas serem sempre feitas através de intérpretes. 

No último dia, já no aeroporto, toda a comitiva portuguesa tinha já embarcado no avião da TAP, ficando a aguardar Eanes e a sua mulher, que a regra mandava serem os últimos a entrar. O nosso chefe do Protocolo de Estado, Ary dos Santos, aguardava na base da escada do avião.

Na sala VIP, além do rei e dos príncipes noruegueses, Eanes e a senhora estavam acompanhados apenas por diplomatas noruegueses, pelo nosso embaixador e por mim. 

Eanes estava com visível pressa. Tinha combinado fazer uma paragem em Bona, na Alemanha, para falar com Helmut Schmidt, uma iniciativa de política externa que se sabia desagradar imenso ao governo de Sá Carneiro. O presidente tinha tomado essa decisão a curto prazo, informando o governo à última da hora. Muita da tensão na delegação portuguesa, percebemos então, advinha daí.

Contudo, por uma razão que ninguém explicava, o presidente e o rei continuavam na sala VIP e o avião não arrancava. Não era, com certeza, uma questão de “slot” aéreo, porque este tipo de voos têm prioridade, em especial num aeroporto tão pouco intenso de movimento, como era o de Fornebu. Seria falha de comunicação entre os dois serviços de Protocolo? A verdade é que estava tudo parado.

Enquanto Manuela Eanes, num sofá, falava com a princesa, nora do rei, Eanes, de pé, ao lado do monarca, estava visivelmente enervado. No estranho eclipse dos intérpretes, ambos quase se limitavam a sorrir um para o outro. Nestas ocasiões, os minutos parecem muito longos - e aqueles estavam a sê-lo. 

Constatando o constrangimento do nosso presidente, acerquei-me dele e disse-lhe, discretamente: “Senhor presidente, se quiser que eu traduza alguma coisa...” Como o rei falava um excelente inglês, eu podia facilitar uma interlocução, numa conversa de circunstância, por uns minutos.

O presidente olhou-me, estático e, num tom militar, mas bem compreensível em face daquele impasse que o estava a irritar, disse-me: “O que eu quero é ir-me embora!” 

Não sei se Olavo V, provavelmente tão farto de esperar como Eanes, percebeu o sentido daquilo que interpretei como uma ordem. Fui ter com o chefe do Protocolo norueguês, que estava num canto a “fazer sala” com o nosso embaixador e, para espanto do meu chefe, disse-lhe que era imperioso apressar as coisas. 

Como por milagre, tudo entrou em movimento. Aparentemente, estava toda a gente à espera que alguém tomasse uma iniciativa. E Eanes e a senhora lá embarcaram.

Quando o avião descolou (a regra é o pessoal da embaixada esperar para ver o avião “rodas no ar”), o meu embaixador, Cabrita Matias, lançou uma frase que eu ouviria muitas vezes durante o tempo em que com ele colaborei, sempre que algum visitante oficial português partia: “Mais uma lebre corrida!” E lá íamos à residência do embaixador beber uma taça de champanhe, com que ele sempre fazia questão de celebrar o regresso ao nosso “business as usual” na terra dos fiordes.

domingo, outubro 13, 2019

As saudades de um poeta


O antigo ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, também diplomata e poeta, escreveu este soneto delicioso à Geringonça que agora nos deixa:

Geringonça infiel que te partiste
tão cedo desta vida, de repente,
faz reviver em nós o amor ardente
do fulgor que nos deste e a que fugiste.

Se dos paços perdidos que correste
os passos refizeres, novos, frementes,
não esqueças que a nós já não consentes
o calor da esp’rança que acendeste.

E se achas que pode merecer-te
alguma coisa o eco que ficou
desta voz que pudemos of’recer-te,

vê que tudo o que o teu brilho nos deixou
durará mais que o tempo de perder-te,
pois no nosso futuro já pousou”

Negociação


Foi numa sala do Altis, em Março de 1976. 

Frente-a-frente, estavam delegações de Portugal e de S. Tomé e Príncipe, país recém-independente. O tema era o chamado "contencioso financeiro" e, no caso específico, os arranjos necessários para garantir a transferência dos descontos para a segurança social feitos pelos funcionários públicos portugueses, durante os últimos meses do regime colonial, que se encontravam depositados no Banco central de S. Tomé.

As conversas estavam a decorrer bem, até que um zeloso membro da nossa delegação, que estava no uso da palavra, decidiu suscitar, sem conhecimento do secretário de Estado que a chefiava, o seguinte tema: haveria cerca de 800 contos de descontos feitos pelos agentes da Direcção Geral de Segurança (novo nome dado à PIDE), a polícia política do regime derrubado no 25 de Abril. Portugal pretendia que o Governo santomense entregasse esse dinheiro.

No cômputo geral do que estava em jogo, o montante era perfeitamente irrelevante e só um espírito "picuínhas" e burocrático, sem o menor sentido diplomático, teria tido a peregrina ideia de solicitar a respectiva restituição. Tecnicamente, o problema poderia ter algum sentido, mas, politicamente, num tema tão delicado, era uma atitude completamente desastrada. E aquela era uma discussão também política.

Antes que o chefe da delegação portuguesa pudesse aperceber-se da dimensão da patetice que acabara de ser dita pelo burocrata, o seu homólogo santomense levantou-se e declarou que, perante uma atitude deste teor, que considerava como ofensiva, o seu país abandonava as conversações.

Ficámos todos em sobressalto. As relações com o novo governo santomense eram excelentes e um incidente destes era mais que escusado. A delegação de S. Tomé e Príncipe seguiu, naturalmente, o seu chefe, e levantou-se da mesa. Do lado português, ainda um pouco aturdidos, fizémos o mesmo.

Todos? Não! O governante português que dirigia a nossa delegação não só não se levantou como, para grande surpresa de quem o olhava como o possível salvador da situação, esperando que ele alcançasse rapidamente o seu homólogo santomense, que já abandonava a sala, e o convencesse a retomar o diálogo, foi-se "enterrando" na respectiva cadeira, com metade do corpo a deslizar mesmo sob a mesa das negociações. Que diabo era aquilo?!

O espectáculo era surreal e ninguém percebia o comportamento do nosso político - um homem competentíssimo, que mais tarde iria ter uma carreira destacada no Portugal democrático. A sua cara denotava embaraço e, pouco a pouco, fomo-nos dando conta de que, afinal, procurava algo debaixo da mesa.

A explicação foi dada em segundos: o nosso governante havia tirado os sapatos durante a reunião de trabalho. Com os momentos precipitados que tinham acabado de suceder, ao procurar calçá-los, terá acabado por lhes dar um pontapé e enviado ainda para mais longe, pelo que toda a sua estranha coreografia não representava senão o seu denodado esforço para se calçar, antes de ir tentar uma "démarche" diplomática. De facto, em peúgas, seria um pouco estranho estar a promover um diálogo político...

Tudo acabou em bem, os sapatos apareceram, os santomenses regressaram à mesa negocial e lá descalçámos mais essa bota...

sábado, outubro 12, 2019

Agora, foi-se o Chico


O Chico era um pouco mais velho do que eu. No liceu, a diferença de idades era um fator decisivo na formação dos círculos de amigos. O Chico, contudo, simpatizava comigo e, com os anos, fui-me aproximando daquele tipo divertido, que morava na rua Central e namorava então com a Astride, filha da dona Judite, senhora que tinha trazido meia Vila Real ao mundo, comigo incluído. O namoro com a Astride, que foi coisa séria, acabou por não durar, como é da lei da vida, e cada um foi para seu lado. O Chico, diga-se, era homem para afivelar, por vezes, um ar carrancudo. Era temível nas sessões de pancadaria, por exemplo, quando uma qualquer excursão, vinda de Chaves ou de algures (mas, em especial, de Chaves, claro), desaguava na avenida algum pessoal atrevido, que se metia com as pequenas da Bila. Aí, o Chico passava-se! Mas havia nele um outro Chico, também “gentleman”, de um outro modo. Ainda o estou a ver, elegantíssimo, cabelo brilhante, vestido de presidente da Academia, de capa-e-batina, faixa ao peito, nos efe-erre-ás gritados dos degraus da Capela Nova. Ah! Já me ia esquecendo! Ao Chico, toda a gente chamava Chico “Pança”, por razões mais do que óbvias de avantajamento abdominal. Mas sempre nas suas costas, claro! É que constava que ele ia aos arames com a designação, coisa que nunca corri o risco de testar, não fosse dali voar um bufardo dos antigos. Quando fui para a tropa, em Mafra, dei um dia de caras, num corredor do quartel, com o Chico, que ali era oficial. Demos os abraços da praxe, como se estivéssemos na esquina da Gomes. Ele tinha, entretanto, “metido o chico”, que é como quem diz, no jargão da época, tinha saído de miliciano para o quadro profissional. E logo fomos, creio que nessa mesma noite, fazer um jantar, a recordar o Bertelo, o padre Henrique e a Cardoa, ao “Frederico”, um restaurante em frente ao convento, então tido pelo melhor bife da região. Depois, com os anos, perdi o Chico “Pança”, Martins de seu nome, de vista. Para sempre. Falavam-me que estava na GNR. Nunca tive a sorte de o encontrar nas tertúlias onde alguns vilarrealenses, em que às vezes me incluo, se emborracham de nostalgia e de histórias de outras eras. Há muito que o sabia doente. Agora, dizem-me que o Chico morreu. Deixo-lhe aqui o abraço possível, do tamanho do (velho) Circuito, que, lá por Vila Real, era, no nosso tempo, a medida de todas as coisas e o espaço por onde, em noites cálidas, circulavam em conversas muitos dos nossos sonhos.

“I’m back!”


Sexta-feira à noite. “Jantamos em casa?” Era só o que faltava! 

Antes, havia sido uma semana de hospital, de tabuleiros cinzentos, talheres em envelopes de papel, sopas sempre iguais (ou era eu que as via como tal), pratos sem pinta de graça, que chegavam cobertos por uns “pudins” de plástico translúcido, sobremesas em que o mais sexy que nos era oferecido era uma maça assada. Eu bem me tentava convencer que não estava ali como crítico da “Evasões” ou da “Epicur” (que já deixei de ser) ou de júri do “Lisboa à Prova” (que atribui “garfos”, função onde ainda faço uma “perninha”) ou de membro da direção da Academia Portuguesa de Gastronomia, mas, muito prosaicamente, para tratar de um joelho. Mas qual quê! A certa altura, dentro daquelas quatro paredes, perdi mesmo o apetite. Como sou um bocado hipocondríaco (nem só o Marcelo tem esse direito, ora bem!), pensei logo que, para além da camoeca na articulação, me tivesse “dado alguma”. Olhava de viés os tabuleiros, tirava uma peça de fruta e mandava o resto para dentro. Com mais quinze dias, como alguém me dizia com ironia estética, estaria com o peso ideal. (Verdade seja que seria a mais cara dieta de Lisboa - e mais não digo).

Regressado finalmente a casa, com uma canadiana de cada lado, também regressou logo o apetite: afinal, era o ambiente do hospital o culpado pelo fastio. Retomei as vitualhas correntes do lar, só não indo mais vezes à cozinha pela noite (ao pão, ao chocolate, às bolachas, ao queijo, ao salpicão) porque ela fica no andar de cima e as canadianas, até lá chegar, fazem pela escada um restolho que denuncia o meu caminho de Damasco para o pecado da gula. E logo eu, que sou, por natureza, muito envergonhado com os meus pecados. Diferentemente do hospital, tenho de admitir que as coisas, em casa, começaram a ter o seu sabor próprio. Mas, claro, continuavam ainda a ser diferentes do ambiente dos restaurantes, um vício pessoal antigo. 

Até ontem! Ontem, passava já das oito da noite, Portugal já vencia o Luxemburgo, enterrado num sofá, deu-me um “vaipe” e telefonei para um restaurante. Um dos bons, claro, porque só se vive uma vez e, segundo alguns amigos, esta é mesmo a última! Estava cheio! Era sexta à noite! Como quem não quer a coisa (mas quer), “deixei cair” o meu nome na conversa. Porque, do outro lado, estava gente conhecida e simpática, logo uma mesa surgiu, como por milagre. Foi um “golpe” algo anti-democrático? Talvez, mas assumo-o, em “estado de necessidade”. Arranjou-se mesmo uma excelente mesa. Chegado ao restaurante, bem instalado, com duas canadianas e uma portuguesa ao lado, “desbundei” (isto diz-se?): pão, patés, manteigas (tudo aquilo de que o meu colesterol gosta), umas boas entradas, um prato magnífico, um belo vinho “à maneira”, um queijo da serra no ponto, acabando com um bom whisky, para “desinfetar” e tirar o gosto ao café. 

Pronto! Vinguei-me de duas semanas em que me senti quase “recluso”. No final, no ar já frescote da noite lisboeta, lembrei-me da última frase de Paul Newman no “The colour of money”: “I’m back!”. Já não era sem tempo, caramba!

sexta-feira, outubro 11, 2019

Da bandeira e outras coisas

O tempo está para temas quentes. Começou com a gaguez da nova deputada do Livre, agora é tempo de se falar da bandeira da Guiné-Bissau que, para escândalo de alguns, surgiu nas comemorações da sua eleição. Vamos a isso, sem receios. Não vou utilizar o léxico do politicamente correto, vou dizer as coisas com a linguagem da conversa comum, que é a minha.

Começo por notar que, se Portugal estivesse em conflito político aberto com um qualquer país, eu sentir-me-ia chocado que surgisse uma bandeira desse Estado num ato público português. Era, no mínimo, um gesto agressivo, por muito que preze a liberdade de expressão. E indignar-me-ia.

A Guiné-Bissau, porém, é um país amigo, de onde tem vindo para Portugal muita e boa gente, que aqui ajuda à nossa diversidade, que aqui honestamente trabalha, que aqui continua a habituar os portugueses a viverem com a diferença, o que muito contribui para a nossa riqueza cultural - embora, pelos vistos, ainda não o suficiente para convocar a tolerância em muitas cabeças.

Que uma cidadã oriunda da Guiné-Bissau consiga singrar na sociedade portuguesa e, para além de uma carreira académica de relevo, tenha conseguido ser uma das 230 pessoas que os portugueses escolheram para os representar, isso deveria, na minha modesta opinião, constituir um orgulho nacional, um preito à nossa política de integração. Um país que andou pelo mundo tem obrigação de ficar contente que esse mundo, onde também se fala a sua língua, aqui se acolha e viva.

Não necessito que um cidadão deixe de sentir-se e dizer-se guineense quando adquire nacionalidade portuguesa, como não espero que um luso-descendente, dos muitos milhares que encontrei na minha vida diplomática, bem integrados e que hoje são também orgulhosos brasileiros ou franceses, “esqueça” de onde veio. Ficaria triste se isso acontecesse.

Faço parte de um Portugal que gosta de ver as ruas cheias de gente “de fora” - negros, indianos, asiáticos ou brancos. Gosto muito de ouvir um caboverdeano ou um timorense ou um brasileiro dizerem “tenho a nacionalidade portuguesa”. Sou de um país que tem uma “alma” nacional muito larga, que não vive em trincheiras de um nacionalismo serôdio.

Que uma cidadã da Guiné-Bissau - ou de Angola, ou de Timor ou do Brasil - sinta orgulho em exibir a bandeira do país de onde é originária, sublinhando que mantém carinho pelas suas origens, isso pode escandalizar alguém? Suspeito, aliás, que se a nova deputada fosse branca (e, em especial, se fosse um homem) e a bandeira exibida fosse a do Brasil todo este sururu não tinha surgido.

Se um português eleito para um qualquer cargo nos Estados Unidos, na França ou na Sildávia, exibir a bandeira da terra dos seus pais ou onde ele próprio nasceu, destacando assim a sua fidelidade afetiva ao lugar de onde vem, o que pode isso soar a estranho? É alguma deslealdade face ao país que o elege um cidadão assinalar de onde veio e o carinho que continua a sentir por esse lugar?

Dirão alguns: mas essa cidadã critica publicamente o racismo que existe na sociedade portuguesa. “And so what?” E se acaso fosse um deputado branco, aqui nascido, a constatar, alto e bom som, essa realidade - a de que, entre nós, há racismo, discriminação e xenofobia? Era mais aceitável? Só por ser uma cidadã originária de um país africano já não o pode fazer? Há algum “capitis diminutio”, como se se dissesse “já bastou ser aceite como deputada em Portugal, não tem o direito de criticar o país que lhe deu esse estatuto”?

Cheira-me que todo este escândalo em torno da deputada do Livre acarreta, atrás de si, muito preconceito, bastante xenofobia e algum racismo. Posso estar enganado, mas acho que esta polémica e todo este debate vão acabar por ser salutares, porque vão deixar muito claro que o Portugal velho, do patriotismo primário, que andava escondido nas graçolas discriminatórias, mesquinhas e medíocres, vai ficar exposto de uma vez por todas.

Joacine Katar Moreira pode vir a fazer muito bem ao arejamento das cabeças deste país. Eu, apesar de tudo, acredito sempre na vitória das luzes sobre as trevas.

Adeus, Geringonça!


Quando António Costa, naqueles dias tensos de 2015, deu indícios de poder vir a fazer um acordo parlamentar com o Bloco de Esquerda e o PCP (e com essa ficção chamada PEV), deu um passo maior do que muitos estavam à espera. Eu, por exemplo. 

Para um país cuja credibilidade perante os credores era então muito frágil, com o exemplo grego a não ajudar à imagem do “sul”, temi que o “espetro” da esquerda radical na soleira do poder em Lisboa pudesse vir a provocar sobre nós uma onda negativa, com efeito nesses mercados que, por muito diabolizados que sejam, existem mesmo e têm de ser tidos em conta. 

Trazer a “esquerda da esquerda” para um “programa comum” (o que isto lembra, a quem tem boa memória!), ainda que limitado, era uma aposta bastante arriscada. 

Mas António Costa tinha razão: era possível estabelecer uma plataforma que, simultaneamente, garantisse poder vir a utilizar uma margem do crescimento previsível da economia, para recuperar rendimentos perdidos durante os tempos tristes da “troika” e dos seus amigos, e, simultaneamente, cumprir o essencial dos compromissos que o país (porque era o país e não um qualquer governo em especial) tinha com a Europa e com o FMI.

Os eleitorados da “esquerda da esquerda” gostavam da ideia da Geringonça, parte deles ainda traumatizados com as consequências de as suas direções partidárias terem votado, em 2011, ao lado da direita, o derrube de um PEC IV que, viesse a ter o destino que tivesse, era contudo uma esperança que, politicamente, lhes não cabia a eles pôr fim. É que, como imediata consequência, saiu-lhes na má rifa Passos Coelho e a vontade de ir além da dieta da “troika”. A abertura para a Geringonça, do lado dessa esquerda, foi isso mesmo: tudo menos a direita!

A Geringonça foi o que foi. O principal usufrutuário, a grande distância, foram os portugueses, o bem-estar de muitos, em especial de quantos antes tinham sido mais vitimados pela política desumana da direita. Como partido, o PS foi quem mais ganhou com o “negócio”, embora muito menos do que estaria à espera, creio eu. O PCP foi o principal perdedor. O Bloco ficou ela-por-ela. 

Agora, para o futuro, cumprido já pelo PS o máximo que poderia fazer sem colocar em causa os seus princípios - e o seu equilíbrio interno, de que Costa continua a ser o único garante -, partimos para um tempo novo: acordos caso-a-caso. É um cenário muito mais complexo para gerir, mas não é de todo impossível de levar a cabo com êxito. Se a conjuntura externa se não degradar, se a direita se não reencontrar em torno de pretextos internos para explorar, as coisas podem caminhar bem, pelo menos até depois das presidenciais, onde se espera que o coração de Marcelo - um “padrasto” da Geringonça - continue a bater no sentido do interesse do país.

A Geringonça, essa, acabou. A situação está agora mais imprevisível, mais perigosa para António Costa. Mas o que é a vida política sem riscos, não é?

Adeus, Geringonça! Vamos ter saudades tuas.

Para o que der e vier


No Palácio das Necessidades de outros tempos, havia umas curiosas figuras, uns diplomatas com carreiras pouco notáveis, a quem, por prudência, nunca tinham sido atribuídas especiais responsabilidades ou que, tendo-as algum dia tido, não haviam estado à altura daquilo que lhes fora pedido. Colocados por isso, no seu regresso a Lisboa, em repartições secundárias, pouco tendo que fazer, pairavam pelas salas para belas conversas, contando histórias e alimentando a curiosidade dos neófitos recém-chegados à casa. 

Era aquilo a que alguns chamavam os “velhos ministros de segunda”, isto é, funcionários que tinham categoria hierárquica de “ministro plenipotenciário de segunda classe“, a mínima para chefiarem uma embaixada, mas que o bom-senso recomendava que fossem mantidos, tanto quanto possível, pela “secretaria de Estado”, nome pelo qual os serviços lisboetas no MNE são conhecidos no jargão diplomático. Um dia, num qualquer “movimento”, lá iriam para uma sinecura periférica, graças ao apelido ou a um diretor-geral amigo.

Nesse entretanto, as geografias lúdicas de eleição dessas figuras eram uns sofríveis sofás de napa clara que abrilhantavam as nossas salas de trabalho. Tratava-se, quase sempre, de gente muito simpática e agradável. Abancavam por ali, fumando às vezes o seu cachimbo ou a sua boquilha, saltitando a conversa entre os cinco ou seis colegas que, à sua revelia, procuravam trabalhar. Eles “faziam sala”, lembravam episódios, tentavam ser pedagógicos com os jovens colegas que lhes ouviam, fascinados, histórias apimentadas ocorridas em postos bizarros, locais onde às vezes tinham criado a fama que acabara por transformar o seu currículo num cadastro profissional que traziam colado ao nome.

Uma dessas personagens, um dia, resolveu teorizar sobre política externa. No tema, o nosso homem era um elaborado cultor da inércia. Desenvolvia uma teoria segundo a qual a ação era quase sempre o caminho para o erro. “Em política externa”, dizia ele, “as mais das vezes a atitude mais prudente é nada fazer”. E explicava porquê: “Quase nada depende de nós. Quem decide as coisas que importam no mundo não é sensível a uma voz fraca como a do nosso país”. Alguém cuidou então em inquirir, já no limiar da ousadia : “Mas, nesse caso, o que é que andamos aqui a fazer?” O nosso homem não se desmanchou: “Estamos aqui para o que der e vier”. E, com o sorriso esfíngico e bigode de coronel das Índias, fechou atrás de si a porta e deixou-nos a digerir a, seguramente sábia, metáfora.

Tenho por aí visto os cultores da máxima “menos Estado, melhor Estado” - a que quase sempre se esquecem de acrescentar “e o que sobrar que seja para nós” - proporem uma redução da estrutura diplomática, talvez por que também achem que são os outros que, no fundo, decidem a nossa vida. Se um país como Portugal tivesse ficado à espera da História, a sua capacidade de autodeterminar a sua vida estaria hoje reduzida a zero. A diplomacia é o contrário da inércia, é o risco da ação, pela avaliação constante do modo de defender os nossos interesses na teia dos interesses globais. Numa coisa o meu velho colega tinha razão: a nossa diplomacia aí está, desde sempre, para o que der e vier.

Caras da diplomacia

Os diplomatas, enquanto carreira profissional, são regularmente objeto de alguns preconceitos, o mais das vezes expressos em forma de graças...