segunda-feira, dezembro 01, 2014

Pedaço de asno

Gosto da expressão "pedaço de asno". O meu amigo Ferreira Fernandes, numa das suas imperdíveis crónicas no DN, utilizou-a, há dias, para crismar um determinado escriba da imprensa a que temos direito. É um qualificativo forte, mas (pensando bem!) tem algo de elegante. Ao utilizá-lo em relação a alguém, foge-se do plebeísmo, não se usa "burro", "besta" ou mero "animal", recorre-se ao termo mais erudito, hoje protegido pelo politicamento correto da preservação das espécies. Asno é, no fundo, um "upgrade". E então se se usar o apóstrofo - "pedaço d'asno" - ascendemos mesmo à nobilitação do conceito. Além disso, quem assim é designado é apenas um pedaço, um bocado, uma fatia de um asno, pelo que, numa determinada leitura, fica mesmo "à porta" de ser um verdadeiro e completo asno. Numa perspetiva menos gloriosa, poderia dizer-se que nem dessa total categoria subequídia se pode reclamar. Mas, se se olhar pelo "bright side" das coisas, numa leitura benévola, a pessoa assim qualificada não chega a ser um verdadeiro asno, o que, de certo modo, pode ser, para ela, um elogio. E, para alguns, é mesmo.

Cá por mim, aprendi de há muito uma expressão para designar esses pobres em espírito: "paralelepípedo batizado". Há décadas que ouvi esta fórmula e acho que a irrecusável solidez do conceito, associado à sua dimensão telúrica, lhe confere uma dignidade que reforça a sua autenticidade. A um paralelepípedo, na sua rusticidade, não se pode exigir que pense mas, ao mesmo tempo, o facto de ser beneficiado com um nome permite-lhe poder reivindicar-se de uma identidade própria. O que não é pouco, para certos cretinos. Na minha terra, bem para o norte, quando a bondade nos leva a escapar dos qualificativos, costumamos atirar a essas figuras uma fórmula definitiva: "quem te atasse um arado!" Fica tudo dito!

Mas tem razão, Ferreira Fernandes, seja como for que os designemos, isto está cada vez mais cheio "deles"!

O 1° de dezembro

António Barreto chamou "estupidez" à decisão governamental que eliminou o 1° de dezembro do mapa dos feriados nacionais. Eu falei em "ignorância" e "irresponsabilidade". Não fixei exatamente os termos utilizados pelos restantes oradores, como Adriano Moreira e Eurico de Figueiredo, na crítica unânime a essa medida. Foi durante a sessão organizada pela Associação dos Antigos Alunos do Liceu Camilo Castelo Branco, em Vila Real, precisamente para comemorar a data da Restauração.

Juntámos cerca de duas centenas de pessoas, unidos pelo interesse em rememorar a data, a sua simbologia, muito para além das sensibilidades políticas. É que o 1° de dezembro não é uma data apropriável pelas ideologias, muito embora o Estado Novo me tivesse feito marchar algumas vezes, de camisa verde (a minha mãe enchouriçava-me de camisolas), calção castanho curto (!!!) e um cinto com um grande S (que era de Salazar mas que a vergonha levava os prosélitos do regime a dizer que era de Serviço), de braço estendido em saudação romana (e também nazi-fascista), sob o frio matinal de uma Vila Real invernosa. Nem assim fui dissuadido de venerar o gesto histórico dos conjurados que, em 1640, recuperaram a nossa independência de Madrid.

Para o ano, espero regressar a Vila Real no 1° de dezembro, já com o feriado reposto. Voltarei a encontrar os velhos amigos na "ceia" da véspera da data, que agora se faz já com as mulheres (no meu tempo de liceu, as "ceias" eram exclusivamente masculinas), com outros pratos para além do arroz de frango (a tradição era a ceia ser confecionada com as "penosas" desviadas dos quintais, por onde nos introduzíamos nas noites anteriores). Iremos, como sempre, cantar o Hino da Restauração e berrar os Efe-Erre-Ás de regra, com a romagem à estátua de Camilo Castelo Branco, no jardim da Carreira. E, a partir de então, procuraremos fazer esquecer à cidade que foi um primeiro-ministro dela originário quem decidiu promover a suspensão da comemoração dessa data fundacional da nossa identidade e do nosso orgulho como país.

Viva o 1° de dezembro!

domingo, novembro 30, 2014

Socialistas

António Costa venceu, da forma esmagadora que já se presumia, o congresso do PS. A sombra da tragédia que envolve José Sócrates pairou por algum tempo sobre o conclave socialista, mas Costa foi capaz de mobilizar as hostes e de dar um sentido de forte unidade política ao seu partido. Os "seguristas" terão sido respeitados, os "socratistas" não terão sido excluídos e só Francisco Assis terá visto o seu individualismo desenquadrado da nova liderança. O discurso de encerramento de António Costa foi uma lufada de esperança, pelo que é agora de presumir que o PS exerça, neste ano que o separa das eleições legislativas, uma oposição determinada e efetiva à maioria "sortante", como dizem os franceses. Este congresso acabou por correr muito melhor para o PS do que, à partida, se poderia esperar.

À porta do conclave ficaram dois nomes: Sócrates e Seguro.

O futuro de José Sócrates não passa pelo PS, mas o contrário não é necessariamente verdade. Se Sócrates estiver inocente e impoluto, como espero e desejo, essa será uma sua grande vitória pessoal e sairá pela porta grande, com tudo o que isso representará para o prestígio da nossa Justiça. Se acaso se viesse a provar que, no exercício de funções de Estado, Sócrates tinha cometido algum delito grave, esse já seria então um problema do qual o PS não sairia incólume. Para já, e porque o reino do "achismo" só aos especuladores interessa, aguardemos. Quanto ao juízo que os socialistas fazem do trabalho de Sócrates à frente dos governos, só posso esperar que haja seriedade, isto é, destaque público para o muito que foi feito de bom e uma reflexão serena e modesta sobre os aspectos negativos que haja a apontar. O resto é "espuma"...

António José Seguro, cujo comportamento durante a campanha interna no PS não me eximi de criticar, é uma figura de bem, cujo recato atual configura uma atitude de grande dignidade, à altura daquilo que, com grande sentido de Estado e de serviço público, executou durante os cerca de três anos do seu mandato. O PS deve a Seguro a construção, num tempo inigualavelmente difícil, de um património de ideias e propostas que, sem a menor dúvida, também estarão no centro do programa de António Costa. E fica igualmente devedor de um ato de abertura democrática do partido que permitiu o sopro de legitimidade de que António Costa é hoje beneficiário. António José Seguro pode não ter o élan mobilizador de Costa, mas é um homem respeitável que também integra a história do socialistas.

Este é o primeiro dia de um PS renovado que se espera possa estar à altura daquilo de que muita gente no país hoje espera.

António

Como o tempo passa! Há precisamente 40 anos, António Antunes - que assina simplesmente António - publicava no "Expresso" o seu primeiro cartoon. Ao longo destas décadas, o mais genial e talentoso cartoonista português fez um imenso retrato a cores do país e do mundo. Um e outro premiaram fartamente a sua obra, que hoje é conhecida por toda a parte.

Ao António, membro da nossa tertúlia da "mesa dois", deixo aqui um forte abraço de amizade e de parabéns. E resisto à quase obrigatória tentação de reproduzir aqui um dos seus desenhos - embora hesite muito quanto aos que prefiro, dentre uma obra tão rica - colocando o seu retrato, onde se destaca o permanente sorriso, mas de onde se não ouve a voz inconfundivelmente rouca, que, pelas noites do Procópio, nos traz a graça do seu humor e fina ironia.

sábado, novembro 29, 2014

O governador civil (3)

Estava-se em julho de 1969. Havia sido convidado pelo meu tio, Humberto Cardoso de Carvalho, para o acompanhar num passeio turístico com a família pelo sul de França. Colocava-se, porém, um obstáculo: eu estava em "idade militar", pelo que havia uma certa dificuldade em ser-me concedido um passaporte, necessitando de uma credibilitação prévia. Como o meu tio conhecia bem o governador civil, Torcato de Magalhães, fomos ambos por ele recebidos e o assunto resolveu-se, sem grandes dificuldades.

Fez-se a viagem. Passados dois meses, o país entrava em ebulição política com a preparação das primeiras "eleições" legislativas (à época, o regime não admitia outras e mesmo estas mereciam fortes aspas) da era Marcelo Caetano. Salazar caíra da cadeira em agosto do ano anterior, Caetano herdara-lhe o lugar, menos de dois meses depois. Durante as férias, o meu tio, que havia sido seduzido pela "abertura" política que então se anunciava aos quatro ventos, tinha-me dito que aceitara liderar a lista "marcelista" de deputados pelo distrito.

As hostes oposicionistas locais, pelo seu lado, não estavam paradas. Congregadas em torno da Comissão Democrática Eleitoral (CDE), pediram uma audiência ao governador civil para lhe fazerem a entrega formal da sua lista dos candidatos a deputados pelo distrito. Solene mas cordial, Torcato de Magalhães recebeu uma manhã três responsáveis oposicionistas: Otílio de Figueiredo, Délio Machado e... eu. Ao ver-me entrar, senti que os seus olhos se arregalaram um pouco. Então aquele miúdo (eu tinha 21 anos) que, dois meses antes, lhe fora apresentado pelo agora líder politico local do regime, integrava o núcleo duro dos próceres do "reviralho"?

Acabada a cena, Torcato de Magalhães telefonou de imediato ao meu tio que, com toda a naturalidade, lhe respondeu que já sabia da minha opção e que "o rapaz tem todo o direito de ter as suas ideias". O governador civil deve ter ficado um pouco confundido. 

sexta-feira, novembro 28, 2014

O governador civil (2)

Esta é uma história que faz parte da mitologia de Vila Real e, ainda há semanas, a ela se referiu no Facebook o meu amigo Carlos Leite, um vilarealense "exilado" no refastelo do sol da Grécia.

Nos anos 50 do século passado, o Governo civil de Vila Real era chefiado pelo coronel Augusto Sequeira, um grande homem de bem a que me ligaram laços de amizade e grande simpatia, e a cuja comemoração do centenário de vida tive mesmo o privilégio de assistir. Era um "craveirista", um próximo de Craveiro Lopes, o presidente pouco cómodo de quem Salazar acabaria por se desfazer em 1958, optando por essa figura de antologia anedótica que se chamou Américo Tomaz.

Augusto Sequeira recebia nesse dia, em Vila Real, o então ministro do Interior, Trigo de Negreiros, um homem originário de Mirandela que também viria a cair politicamente em 1958. Passeavam-se os dois pelas ruas da cidade, numa tarde seca de inverno, aproximando-se a certa altura da Pastelaria Gomes, então (e ainda um pouco agora) o eixo social do burgo. À chegada à esquina no edifício, preparando-se para entrar no café, o valpacense Sequeira comentou alto, para Trigo de Negreiros, com a cumplicidade regional que os unia:

- Está um frio tipicamente transmontano!

Antes que Negreiros pudesse retorquir, a um gandulo de samarra que se encostava à esquina, fumando uma perisca, e quase sem os olhar, saiu esta frase que ficou nos anais locais:

- Transmontano o c...o ! Está mas é um frio f...o !

A doutrina divide-se sobre a sequência do episódio. As versões mais reviralhistas dão conta do rapaz ter sido encaminhado por um cívico para a esquadra da PSP, ali perto, por baixo do Governo civil. Leituras benévolas dão incidente por findo com uma repreensão risonha feita ao atrevido pelas figuras políticas. 

Uma coisa não mudou: passei há pouco pela esquina da Gomes e, embora não ousando a mesma ênfase lexical, sou levado a concluir que o famoso anónimo dos anos 50 do século passado continua a ter a sua razão...

quinta-feira, novembro 27, 2014

O governador civil

No tempo "da outra senhora", o lugar de governador civil, em especial na província, era um posto de alguma importância. Os ministros viajavam pouco, Lisboa podia ficar longe e competia aos governadores informar sobre a realidade local e representar localmente o governo. Porque os autarcas eram nomeados pelo partido único, cabia aos governadores - homens da estrita confiança do governo - um papel decisivo na seleção dos presidentes dos municípios e suas vereações. Daí a importância objetiva desses chefes dos distritos, que alguns relativizavam com maior ou menor simpatia, que a outros enfatuava o porte.

Em Vila Real, recordo-me das caras de vários governadores do Estado Novo. Deles me ficou a imagem de que se passeavam pelas ruas com alguma pompa, acompanhados de figuras, figurantes ou mesmo figurões locais, ungidos da vaidade de serem vistos a fazer parte do serralho do poder. O "senhor governador" era, sem exceção, o centro dessa coreografia, revelando o seu ascendente por um pormenor que, para mim, foi sempre significativo: se, durante o passeio, para sublinhar um argumento, ele decidia travar o passo, logo o rebanho à volta suspendia a marcha e atentava nas importantes palavras que sua excelência entendia relevar. E, ao seu estugar do andamento, todos os outros o seguiam. Se Roland Barthes passasse então em frente à Gomes ou na rua Central, retiraria dali um capítulo para os seus estudos de semiologia. No mínimo, dedicaria uma das suas "Mitologias" a essas curiosas figuras que compunham a teatralidade político-social da ditadura.

Porque me lembrei disto agora? Porque passei, há minutos, junto a um desvio para a aldeia de Moura Morta, entre Castro Daire e Lamego, e recordei-me que havia uma figura dessa aldeia que vinha com frequência a Vila Real e que, pela sua pose e ar majestático era conhecida na cidade, jocosamente, como o "governador civil de Moura Morta". Mas não tinha o exclusivo do apodo: um comerciante de Lordelo, às portas de Vila Real, aliás homem simpático e agradável, possuidor de uma "bela figura" e andar pausado, foi também, durante anos, conhecido como o "governador civil" de Lordelo. De certo modo, estas designações acabavam por ser um implícito reconhecimento do prestígio do cargo.

Com a chegada da democracia, os governadores civis deixaram de ter alguma "graça" - e que me perdoem alguns bons amigos que exerceram esse cargo. Com os autarcas a serem as figuras centrais do jogo político local, esses representantes do poder central foram sendo limitados nos seus poderes. O governo que aí anda decidiu mesmo acabar com eles. Não sou nostálgico, mas a entrada de um governador civil da "outra senhora" na Gomes era um espetáculo!

"Com amizade"


Há pouco, o Cante Alentejano foi considerado pela UNESCO como "património mundial". Aqui deixo uma história alentejana, e não só.

No auge dos tempos revolucionários de 1975, o Alentejo vivia sob as movimentações da Reforma Agrária, com a ocupação das propriedades rurais e o ataque aos respetivos detentores - os "grandes agrários", tidos como historicamente responsáveis por graves injustiças sociais e económicas, autorizadas e protegidas pela lei e pela repressão policial, durante a recém-abolida ditadura. "A terra a quem a trabalha" era o lema que dava corpo a um movimento tendente a forçar uma reversão de poder, onde o Partido Comunista Português teve grande influência, nele se destacando a criação das UCP's (Unidades Coletivas de Produção), estruturas emblemáticas no novo modelo produtivo em expansão nas grandes propriedades. A realidade agrária alentejana iria ter impactos muito fortes nos equilíbrios da governação do país, podendo considerar-se que, durante vários anos, marcou fortemente a evolução da política interna portuguesa, muito embora o saldo final de toda essa turbulência tenha ficado muito longe dos objetivos revolucionários originais.
 
Com a Reforma Agrária a marcar então, quase quotidianamente, a agenda política nacional, passava-se, na televisão portuguesa, um fenómeno bizarro, quase marginal mas que, visto à distância, não deixa de ter alguma curiosidade. Sobrevindo do tempo anterior ao 25 de abril, mantinha-se na grelha de emissão da RTP o programa "TV Rural", dirigido pelo engº Sousa Veloso, uma figura sorridente e cordial, que anos de presença regular no écran haviam transformado num visitante virtual da casa de todos os portugueses. E de que falavam os programas de Veloso? Da "outra" vida rural, da "lavoura", de experiências agrícolas e de práticas de produção tidas por exemplares. Enquanto no Alentejo arrancavam as campanhas mobilizadoras para a viabilização produtiva das UCP's ou das novas cooperativas, Sousa Veloso mostrava-nos, impávido aos ventos da Revolução, a glória da pêra-rocha do oeste, a safra desse ano dos melões de Almeirim, os resultados do combate ao míldio nas uvas do Dão ou as novas técnicas usadas no azeite da terra quente transmontana. Nem uma palavra sobre o Alentejo!
 
Sousa Veloso morreu hoje, aos 88 anos. Era um homem simpático, sorridente, que se despedia sempre dos espetadores "com amizade". Hoje, despedimo-nos nós dele.

Alemanha


Ontem, durante a manhã, intervim num debate na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, organizado pelo respetivo Instituto Europeu. Um parêntesis para fazer notar o notável trabalho que, desde há vários anos, Eduardo Paz Ferreira tem vindo a desenvolver com sua equipa do Instituto. Muito lhe devemos por ter aí criado um espaço ímpar de reflexão sobre a Europa e os nossos desafios - e desencantos - no seu seio.

O tema ontem foi a Alemanha e a Europa que a Alemanha pretende. Tentei "perceber" Berlim, interroguei-me sobre se há uma bem definida estratégia alemã para a Europa ou se a Alemanha vive ainda numa relativa "navegação à vista", fruto da falta de estabilidade do próprio processo europeu, sob pressão da crise. Fui pela última hipótese. Referi que o conceito das "duas Alemanhas" já não é apenas o das que antecederam a queda do muro: para o projeto europeu, houve uma Alemanha ao tempo em que havia muro (solidária, pró-federal) e há hoje uma outra Alemanha no cenário pós-unificação (seria a unificação alemã o verdadeiro objetivo por detrás do "europeísmo" alemão?), em especial pós-alargamento, marcada por algum dirigismo paternal/autoritário e pela indisponibilidade de "pagar" a Europa. Discorri sobre o alargamento e sua génese, bem como o seu efeito sobre o equilíbrio interno europeu. Discuti a atual unipolaridade do poder europeu - o diretório hoje é apenas a Alemanha - e o sentimento de desconfiança/hostilidade que Berlim suscita (embora cada europeu tenha "a sua Alemanha", em função da experiência histórica diferenciada de cada um), por virtude da sua cada vez mais obstinada "rightousness" face aos "pecadores" da periferia. Perguntei-me até onde a Alemanha poderá querer forçar a introdução de um modelo institucional europeu de direção centralizada e em que medida isso não poderia criar a ideia de que as ordens constitucionais ficarão hierarquizadas (o que diz o tribunal de Karlsruhe é já hoje mais respeitado do que o que estatui o nosso tribunal constitucional - até pelo nosso governo). E, naturalmente, questionei se esse caminho não levará a uma perda de legitimidade dos poderes nacionais cuja representação no poder central europeu se sente progressivamente debilitada. Fui de opinião de que a "grande coligação" no poder em Berlim acaba por ter um efeito nefasto na diversidade do debate político interno na Alemanha, sendo a classe política alemã claramente culpada de uma falta de pedagogia sobre a opinião pública doméstica, que pudesse sublinhar as vantagens (únicas na Europa) que o país retira do projeto europeu. Falei dos efeitos da "décrochage" de poder formal com a França e dos malefícios, cada vez mais evidentes, do Tratado de Lisboa. Idem sobre a escassez de visão estratégica da Alemanha na questão ucraniana, onde, a meu ver, se deixou levar pela agenda primária anti-russa da Europa na vizinhança direta de Moscovo, promotora da posição irresponsável que a União Europeia tomou face ao poder em Kiev, que acabou por facilitar a deriva autoritária de Putin. Comecei e terminei com uma mensagem de fé nas virtualidades da democracia alemã, de que estou plenamente convicto.

O video da minha intervenção pode ser visto aqui.

A imprensa e o processo Sócrates

Vai ser muito interessante - melhor, já está a ser - seguir o comportamento dos diversos meios de comunicação social no acompanhamento do processo de José Sócrates. 

Alguns jornais foram beneficiados por informação privilegiada no dia da detenção do antigo primeiro-ministro, oriunda da investigação, com o objetivo de credibilizar as teses da acusação. A similitude daquilo que foi publicado pelo "Sol" e pelo "Correio da Manhã" revela bem essa origem comum. A SIC e, ao que me lembro, a TVI tiveram apenas direito ao "leak" da chegada de Sócrates ao aeroporto, aliás mal aproveitado. De certo modo, houve alguma naturalidade na escolha dos jornais privilegiados: o "Correio da Manhã" é o órgão que maior atenção dedica às questões criminais e a jornalista do "Sol" tem um histórico assinalável nesse domínio.

Fica claro que, tomada que foi a decisão de deter o antigo primeiro-ministro e atenta a expectável repercussão política e social que esse ato sempre provocaria, os acusadores sentiram necessidade de publicitar, simultaneamente, os fundamentos em que assenta o processo, como forma de rodear a decisão de alguma legitimidade. Assim, e contrariamente a outros casos em que o jornalismo de investigação teve um papel fundamental, desta vez os jornais e as televisões começaram por operar exclusivamente com base naquilo que os "deep throat" da polícia ou da magistratura lhes transmitiram. Não sendo profissionalmente "glorioso", sempre é melhor que nada. E, de passagem, também não vale a pena sermos ingénuos ao ponto de pensar que o "inquérito" que a Procuradoria-Geral da República vai lançar para tentar "descobrir" os responsáveis pelas "quebras do segredo de justiça" terá alguma consequência. É como se tentássemos olhar para as nossas próprias costas...

O tema promete não esmorecer nos próximos tempos. Aliás, o surgimento da carta de José Sócrates, que parece denunciar a sua intenção de intervir ativamente por via mediática, numa forma pouco vulgar de "defesa" pública, acaba por tornar-se muito interessante para a imprensa, que agora passará a aguardar os "próximos capítulos". A comunicação social vai ser sujeita a um constante teste sobre o rigor da suas análises, sobre a sua maior ou menor disposição para resistir aos "fait-divers", sobre a sua capacidade de identificar factos concretos e de saber separá-los de meras suposições. Esperam-se dias movimentados na frente jornalística, agora que um novo "nicho" temático se abriu.

quarta-feira, novembro 26, 2014

"Crónica das minhas teclas"


Logo à tarde, pelas 18.30 horas, no Palácio da Independência, no largo  de S. Domingos, em Lisboa, vou apresentar o livro de Henrique Antunes Ferreira, "Crónica das minhas teclas", que também prefaciei.

Carnaval

 
Aquele jovem empresário, homem de "boas" famílias, era um deslumbrado: muito dado "ao social", adorava as colunas da então "Olá" e o ensejo a estar presente em ocasiões oficiais. Um dia, conseguiu um convite para ir "ao café", num jantar de Estado na Ajuda, uma espécie de "terminação" para aqueles a quem não saía a "sorte grande" de obterem um lugar à mesa da refeição.

Deu-se então conta de que não tinha nenhuma condecoração com que pudesse alindar a vistosa casaca que alugou para a ocasião. Achou que isso lhe dava um ar de "pelintra". E teve uma ideia: havia lá por casa uma condecoração elevada, que, em tempos, um presidente da República dera ao seu pai. Decidiu-se a usá-la. Ficava-lhe "a matar"!

Já nos corredores do palácio, teve o azar de dar de caras com o chefe do Protocolo de Estado, homem sabedor das grandes honrarias cerimoniais, pessoa conhecida da sua família. Num segundo, lembrou-se logo de que o diplomata, seguramente, não iria acreditar que ele pudesse ser o possuidor daquela comenda. Num acesso de prudência, o nosso homem entendeu então que seria melhor "abrir o jogo" e confessar que trouxera uma condecoração "da família", mas que não lhe pertencia.

O chefe do Protocolo, olhou-o, severo, e retoquiu simplesmente: "Não faz mal! Assim como assim, já falta pouco tempo para o Carnaval..."

terça-feira, novembro 25, 2014

O Tribunal


Eu era miúdo, mas lembro-me como se fosse hoje. Todas as manhãs, numa camioneta de caixa aberta com longos bancos, chegavam os operários que tinham a seu cargo as obras do novo Tribunal de Vila Real. À época, era uma forma vulgar de transporte de trabalhadores. Porém, havia algo de diferente: quatro homens fardados ocupavam os cantos da caixa da viatura. Os operários eram os presos da cadeia da cidade.

A direção desses presos, a organização e planificação do seu trabalho, passou por alguns meses a ser assegurada por um homem que também estava naquela prisão, acusado, creio, que de uma qualquer fraude. A sua preparação académica dava-lhe um estatuto diferente, pelo que me recordo que se movimentava na obra com muito maior à vontade que os restantes presos. Era uma pessoa de Viana do Castelo, que aí tinha sido antigo colega de escola primária do meu pai. Durante os meses em que permaneceu em Vila Real, o meu pai fez questão de o visitar, com alguma regularidade. Ouvi-o então dizer: "Antes de tudo é um amigo, para além dos erros que possa ter cometido na vida". Neste dia em que, se fosse vivo, o meu pai completaria 104 anos, recordei-me desta sua lição.

"As curvas do mundo"

No âmbito da série "Falemos dos outros", organizada por Fátima Pinheiro, tem lugar nesta terça-feira, pelas 21.30 horas, na Casa-Museu Medeiros e Almeida, na rua Barata Salgueiro, próximo da Cinemateca Nacional e da Sociedade Nacional de Belas Artes, um debate entre mim e Jaime Nogueira Pinto sobre o críptico tema "As curvas do mundo".

A avaliar pelo que a Fátima adianta no seu blogue, a conversa promete. Senão, leiam:

"Vou perguntar-lhes pelas curvas de Portugal e do mundo. Estas semanas foram um shot delas. E para shot, shot e meio. Eles são pessoas para isso e muito mais. Acham normal que, em véspera de eleições, cada dia da semana seja um dia em que se descobre mais "uma falha" desta governança? Que os bandidos estão todos deste lado, e os xerifes, de botim a luzir (nada melhor que um par de sapatos bem tratados, nisso concordo), sejam todos uns inocentes e heróis? E que o justos paguem tudo? Ou que um roseiral seja um paraíso de odores "incênsicos", ao passo que um laranjal, apenas um titanic de interesses manhosos e cretinos finalmente a afundar-se de vez?"

Reputação

Portugal é um país frágil. Tem uma história antiga, existe no imaginário internacional como um país simpático, de gente cordial e modesta, que o mundo se habituou a encontrar espalhada por esse mesmo mundo, como se isso fosse a sua sina. A glória do seu império passado sublinha hoje ainda mais a modéstia desta nação que, há séculos, segue como a mais pobre de toda a Europa ocidental. Às vezes, nuns assomos, consegue concitar alguma atenção: é uma revolução quase sem sangue, é uma exposição universal conseguida, é um escritor que ganha um Nobel e outro que desassossega as consciências, é a boa coreografia de uma presidência europeia ou de uma performance internacional, é o ser a pátria de um desportista ou de um treinador de nomeada, é o seu sol agradável, é a canção nacional que rima connosco. Esses e outros arroubos, prestigiantes, rapidamente são abafados pelo regresso ao retrato que, aparentemente, nos define: um país que declinou sem remissão desde a perda do Brasil, incapaz de sustentar o sucesso, com defeitos comportamentais endémicos.

A Europa trouxe um dia um sopro de esperança a este país frágil, recém-orfão das suas colónias. Pareceu que tudo ia mudar, da paisagem às mentalidades. Na frase que melhor nos define, os portugueses pensaram, em uníssono: "agora é que é!". Não foi. Nessa maratona de obstáculos, ficámos para trás e, à primeira borrasca, revelou-se a nossa impreparação para as exigências da prova. 
 
Teve de vir a "troika" dos credores, com a qual um governo de saída mal negociou. Com ela, vieram as exigências do ajustamento, perante as quais um outro governo, mais subserviente, se ajoelhou. O país humilhou-se, a dívida aumentou, o governo fez peito para a foto sincrónica do défice, ajudado pela emigração e pelo desenrascanço das empresas. Os mercados, que não são parvos, rapidamente perceberam que se tratava apenas de uma cosmética leve, que as estruturas e as mentalidades não tinham mudado, que nada de fundo estava resolvido, que Portugal era basicamente o mesmo, de Soares a Cavaco, de Sócrates a Passos. Nem é necessário recorrer ao dito escatológico de Brito Camacho.
 
Graças a Draghi, o país estava assim em precário sossego financeiro. Um dia, numa hecatombe anunciada, cai o grupo financeiro mais estruturante do sistema, num novelo de fraudes. De seguida, a gloriosa empresa nacional de telecomunicações, metida em cavalarias baixas com emergentes em crise, cai em maus lençóis. Surge uma rede criminosa de corrupção, em que parece estarem envolvidas altas figuras da administração. Na sequência, um ministro cai. Nem uma semana era passada e é detido um antigo primeiro-ministro, acusado de várias malfeitorias. 
 
Se, apesar do efeito reputacional destes eventos, o país não se afundar perante o mundo, só uma conclusão é legítimo tirar: já não somos nós que nos sustentamos perante o mundo, é apenas a nossa irrelevância no jogo global que nem sequer nos permite sermos sujeitos da nossa própria crise. Porventura, é melhor assim.
 
Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

segunda-feira, novembro 24, 2014

Serviço público

Foto de António Manuel Pinto da Silva
De um aeroporto europeu, aqui fica um aviso à navegação: não confiem totalmente nos "cartões" de embarque eletrónicos nos vossos iPhones. Não é que eles não funcionem, o problema é que, se acaso a bateria do aparelho se esgota, podemos arriscar-nos a ficar completamente ilegais no meio de uma aerogare, sem conseguir provar como ali chegámos e, claro, sem possibilidade de embarcar. Já se tinham lembrado disso? Sei do que falo...

"Uma Alemanha Europeia ou uma Europa Alemã"

 
"Nos anos cinquenta do século passado, o grande escritor alemão Thomas Mann falava do dilema que se colocaria à Alemanha: ser uma Alemanha Europeia ou criar uma Europa Alemã. Sessenta anos depois, a Alemanha impôs à União Europeia uma política de austeridade com resultados económicos profundamente negativos e que ameaçam prolongar-se por décadas. Ao mesmo tempo, a chanceler e o governo alemão não hesitam em criticar opções de política interna dos Estados, como ficou patente com o comentário sobre o número de licenciados portugueses. É tempo de fazer um balanço: temos uma Alemanha Europeia ou uma Europa Alemã? "
 
Este é o texto introdutório de um debate que, no dia 26 de novembro, a partir das 9.30 horas, no auditório da Faculdade de Direito de Lisboa, irá ter lugar.
 
Integro o primeiro painel, com o José Loureiro dos Santos, Reinhard Naumann e António Menezes Cordeiro. No segundo painel, intervirão Francisco Louçã, Ricardo Cabral, Pedro Brás Teixeira e Eduardo Paz Ferreira. 

A Voz de Trás-os-Montes

 
É uma excelente notícia o regresso de "A Voz de Trás-os-Montes", o semanário vilarealense que esteve sem se publicar por cerca de três meses.
 
A suspensão da publicação da VTM tinha levado o "Notícias de Vila Real" a passar de quinzenário a semanário. A concorrência entre os dois jornais pode assim, se bem gerida, transformar-se numa importante mais-valia para a cidade.
 
No próximo fim de semana, quando por lá for para as comemorações do "Primeiro de dezembro", logo verei como "param as hostes" jornalísticas na capital de Trás-os-Montes.

domingo, novembro 23, 2014

O pingo de solda

Na minha infância, o meu pai contava uma história que, na minha família, ficou conhecida como "o pingo de solda".

Uma senhora queixara-se à polícia de que dois trabalhadores, que tinham ido fazer um trabalho elétrico a sua casa, se tinham envolvido numa acesa disputa, com agressões e insultos mútuos, diante dos seus filhos muito jovens. A cena fora tão violenta e a linguagem tão desbragada e vernácula que a senhora entendeu por bem chamar a polícia. (Estamos a falar de outros tempos, em que estas coisas escandalizavam). E os operários foram levados para a esquadra.

Lá chegados, os visados estiveram muito longe de confirmar a versão da senhora. E um deles explicou, cândido: "As coisas não se passaram assim. O que ocorreu é que o meu colega, o Alberto, que estava no alto de uma escada que eu segurava, soldava uns fios. Inadvertidamente, sem a menor intenção, deixou escapar da máquina com que trabalhava um pingo de solda, incandescente, que me caiu no pescoço. Confesso que isso me incomodou um pouco! Daí que eu tivesse exclamado: "Ó Alberto! Vê lá se, para a outra vez, tens mais cuidado! Nada mais!" ".

O grau de plausibilidade da cena era mais do que evidente.

Lembrei-me disto ontem, ao ler no "Expresso" a justificação dada por Ricardo Salgado para o facto de ter recebido do empresário José Guilherme uma "oferta" de 14 milhões de euros (isso mesmo!). 

A história é interessante. Salgado revela ter dado a Guilherme "alguns conselhos pessoais sobre a evolução da economia em geral e dos mercados para onde pretendia alargar a sua atividade". Perante uma intenção de Guilherme de investir num determinado país, Salgado tê-lo-á dissuadido e aconselhado outro mercado, onde o empresário acabaria por ter "enorme sucesso". Guilherme, naquilo que Salgado descreve como uma "demonstração aliás muito caraterística do seu caráter grato e generoso", quis "manifestar o seu reconhecimento pela ajuda" prestada pelo banqueiro. E resolveu oferece-lhe a quantia de 14 milhões de euros, mas só após "reiterada insistência", a que Salgado se viu constrangido a vergar-se. Depois, como naturalmente pode acontecer nestas coisas de dinheiro, Salgado esqueceu-se da "prenda" numa conta no Panamá, não a declarando no IRS, mas isso é apenas um pormenor despiciendo.

Esta cena tem uma plausibilidade idêntica à da história do pingo de solda. A similitude é que quer os operários quer o banqueiro tiveram de prestar declarações à polícia. A diferença é que, se bem me lembro, na história do pingo de solda os operários acabavam presos.

O Camilo

Há quase quatro décadas, o Alfredo Magalhães Coelho e eu resolvemos elaborar, para distribuição entre os amigos, uns guias de restaurantes, de um tamanho de bolso, com indicações sobre preços, pratos mais típicos mas, igualmente, com dias de encerramento, telefones, facilidades de parqueamento e até indicações sobre os melhores acessos. Saíram vários números (lembro-me, pelo menos, de termos publicado os do Minho, Trás-os-Montes, Alentejo e Algarve). Os exemplares muito limitados, algumas escassas dezenas, e cada zona tinha a sua cor de papel. Os guias, escritos em 1987/88, no meu primeiro computador, foram um imenso sucesso e muita gente continuou a fotocopiá-los por alguns anos (o que é perigoso, porque este tipo de indicações é rapidamente "perecível" com o tempo).

Ajudava-nos nesta tarefa o Camilo, um funcionário simpatiquísimo da primeira estrutura do MNE para os assuntos europeus, um ás da reprografia, que foi a alma logística da operação. Ele era o nosso "editor"! Voltámos a cruzar-nos várias vezes durante a minha relativamente longa passagem pelo palácio da Cova da Moura, nos anos 90. Entretanto, havia-o perdido de vista, há muito. Acabam de me informar que morreu hoje. Deixo um abraço sentido à Família desse amigo, que comigo também fez parte da equipa pioneira, criada na avenida Visconde Valmor, que "arrancou" com a presença de Portugal nas instituições comunitárias, no dia 1 de janeiro de 1986.

Jogos de guerra ou brincar com o fogo

(Vai para 10 anos (3.2.2015), publiquei aqui este texto, sob o título em epígrafe. Nos dias de hoje, imagino que a sua leitura possa chocar ...