Ser secretário-geral das Nações Unidas é um posto ingrato. A história mostra que os diferentes titulares tiveram percursos e resultados muito diversos. De certo modo, pode dizer-se que, nos tempos da Guerra Fria, onde as coisas eram "a preto e branco" num mundo Leste-Oeste, talvez fosse mais fácil exercer essas funções, bastando ser respeitador sem subserviência dos EUA e procurando estar minimamente atento aos direitos e interesses do(s) outro(s) mundo(s). Esse caminho "estreito" foi tentado por alguns SG, com relativo êxito. Nos tempos que correm, as fronteiras são mais fluídas, as certezas são menores e a unipolaridade centrada em Washington, que debilitou a imagem da ONU a um nível nunca antes visto, torna mais complexa a função, tanto mais que a Rússia atual não é "flor que se cheire" e o mundo "do Sul" se transformou numa salgalhada onde há um pouco de tudo.
A questão israelo-palestiniana é, historicamente, o maior "calcanhar de aquiles" das Nações Unidas. Qualquer secretário-geral da ONU o sabe, até porque tem de viver com um "droit de regard" permanente de Washington sobre esse tema que é quase uma política "doméstica" para qualquer administração estadunidense. Israel, que tem "na mão" as administrações americanas (agora de ambas as colorações, no passado mais os democratas, então mais permeados pelo lóbi judaico), sabe que pode contar com o imobilismo das NU e que o que de lá sair nunca afetará excessivamente os seus propósitos. Por isso age com esta impunidade.
Conheço relativamente bem Ban Ki Moon. Durante quase seis meses, demo-nos bastante, ao tempo em que era chefe de gabinete do presidente da Assembleia Geral da ONU e eu era presidente da Comissão de Economia e Finanças, uma das seis comissões permanentes dessa Assembleia. O facto do presidente da Assembleia ser o MNE da República da Coreia obrigava Ban Ki Moon a substituí-lo, com grande frequência, na coordenação do trabalho das comissões. Anos depois, quando fui a Seul representar a OSCE, era ele assessor diplomático do presidente coreano, convidou-me para almoçar e fez-me uma das mais completas e equilibradas leituras sobre o conflito entre as duas Coreias que ouvi até hoje. E recordou-me, com saudade gustativa, um prato de camarão que o nosso cozinheiro beninense fazia muito bem e que uma vez lhe ofereci na nossa residência, em Nova Iorque. Fiquei contente quando vi um homem sereno e respeitável como Ban Ki Moon ser escolhido para secretário-geral da ONU, para substituir Kofi Annan.
Imagino que para Ban Ki Monn estes dias não sejam nada fáceis, embora, à partida, ele devesse ter a consciência clara do que poderia fazer, em especial num terreno tão minado politicamente como é o processo "de paz" do Médio Oriente.
O que se passou ontem em Gaza, com o bombardeamento da escola das Nações Unidas, deveria conduzir Ban Ki Moon a um gesto que poderia ter uma utilidade bem maior do que o mero esbracejar retórico e o estafado apelo ao cessar-fogo que fazem parte da coreografia diplomática da praxe. Se Ban Ki Moon quisesse assumir uma atitude com um mínimo de eficácia, deveria provocar uma crise nas Nações Unidas, demitindo-se. Um gesto desta natureza configuraria um ato de coragem, de desassombro e de grande dignidade. Os Estados Unidos teriam um sério embaraço e o mundo compreenderia.