terça-feira, julho 22, 2014

O xadrez angolano


Aquele telefone, num móvel situado atrás da minha mesa de trabalho na embaixada em Luanda, raramente tocava. Era uma linha direta que eu ia distribuindo aos novos conhecimentos que fazia  pela capital angolana, esse posto que o MNE me destinara no ano da graça de 1982, depois de três anos na Noruega, onde "aterrara" poucas semanas antes.

Naquele dia, o telefone tocou:

- Bom dia! Daqui Sande Lemos. Estás bom? Nunca mais nos vimos, desde o jantar em casa da Luthgarda. Temos de fazer um almoço, um destes dias, no "grill" do Trópico, para pôr a conversa em dia.

Para não parecer indelicado, não retorqui que não estava a identificar a pessoa com quem falava. O nome "Sande Lemos" dizia-me alguma coisa: era uma família conhecida de Lisboa, mas não me recordava ter-me cruzado em Luanda com alguém com esse apelido, no escasso tempo que levava da cidade. Mas podia ter acontecido! De facto, eu estivera num jantar em casa de uma amiga chamada Luthgarda e almoçava, com frequência, no "grill" do hotel Trópico, onde aliás estava provisoriamente instalado. Por isso, a minha resposta, dada na passada, foi prudente, evitando mesmo o "tu" que me era proposto:

- Bom dia! Vai-se andando, com muito trabalho. Tudo bem?

- Meu caro. Queria pedir-te se me poderias despachar dois vistos para Portugal, em "passaportes de serviço", que já estão aí pela embaixada há já uns dias. É gente aqui da secretaria de Estado dos Desportos e conseguiram-se dois "OK" na TAP para esta noite. Achas que podes "desenrascar" isso?

Como era eu que assinava esses preciosos vistos, não tive dificuldade em assegurar que os passaportes estariam disponíveis dentro de meia-hora. E assim pude fazer um favor ao meu "amigo" Sande Lemos, o qual, pelos vistos, trabalhava na secretaria de Estado dos Desportos. E logo preenchi uma pequena ficha desse novo contacto, para o que desse e viesse.

Com a agitada vida social de diplomata (episodicamente) sem familia, nunca mais me lembrei do Sande Lemos, dando apenas por adquirido que fora uma das caras que cruzara num jantar em casa da Luthgarda, que acabara com um tardio "muzungué". Com o recolher obrigatório então em vigor, entre a meia-noite e as cinco da manhã, nos fins de semana ficava-se frequentemente na conversa até à alvorada, inaugurando o novo dia com essa sopa de peixe que substituía o pequeno almoço.

Até um dia. Novo telefonema do Sande Lemos, novos vistos a apressar, abraços e promessa da tal "almoçarada". Eu, encavacado pelo facto de ainda não ter colocado uma cara naquele nome, lá me despachava das conversas como podia, resolvendo o problema àquele cada vez mais grato "amigo".

Passaram talvez dois anos. Realizou-se em Luanda um torneio de xadrez, ao qual Portugal enviou o mestre Joaquim Durão. No seu termo, havia uma cerimónia de entrega de medalhas e o embaixador pediu para ser eu a representá-lo. Chegado ao local, fui apresentado aos membros da mesa pelo meu título, "primeiro secretário da embaixada portuguesa" (por um mistério que nunca resolvi, em Luanda não se dizia "embaixada de Portugal" mas sempre "embaixada portuguesa"...). Ao cumprimentar um dos presentes, representante da secretaria de Estado dos Desportos, ouvi:

- Sande Lemos...

Olhei-o de frente. Nunca o tinha visto. Era o meu "amigo" e interlocutor telefónico. Ficámos bloqueados, sem "lata" para nos rirmos do imbróglio. A explicação para o que acontecera, como vim a concluir, era simples. O meu "amigo" Sande Lemos devia ter conhecido, num dos frequentes jantares em casa da Luthgarda, o meu antecessor, que saíra de Luanda escassos dias antes da minha chegada. Tinha o número de telefone do "primeiro secretário da embaixada", não cuidou em referir o nome dele na conversa comigo e estivera de total boa fé ao longo de todo esse tempo. A minha timidez fez o resto.

Passaram mais de 30 anos. Que será feito do meu "amigo" Sande Lemos, o meu "contacto" na estrutura oficial do Desporto em Angola?

1 comentário:

Anónimo disse...

Um cego via logo que nunca tinha visto aquela voz!
José Barros

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...