sexta-feira, fevereiro 14, 2014

Sovinice

Despedidos os visitantes, até ao jantar que iria ter lugar na residência, o embaixador regressou ao seu gabinete na chancelaria daquela pequena embaixada perdida no mundo. A mesa em que tivera lugar a reunião estava em alguma confusão. Pequenas notas garatujadas, deixadas para trás pelos participantes, já sem préstimo. Uma folha de A4, cuidadosamente escrita, bem caligrafada, permanecia, contudo, frente ao lugar que fora ocupado pelo ministro. Seria algo importante? O embaixador, curioso, decidiu-se ler o que nela estava escrito. Podia dar-se o caso do papel ser necessário ao governante, para a reunião com o seu homólogo, no dia seguinte. Nesse caso, entregar-lha-ia antes do jantar.

Ao lê-la, ficou hesitante. Na folha havia pequenos apontamentos, com os temas da agenda, seguidos de comentários sintéticos, do tipo "imp" ou "ok" ou "ver com atenção", com alguns pontos de interrogação pelo meio. Não parecia um papel imprescindível. Uma nota, dentro de uma "caixa", no verso da folha, chamou a sua atenção. Era de diferente natureza. Eram as "compras".

Nesse tempo, ir de Portugal ao estrangeiro significava poder encontrar uma oferta comercial diferente ou a melhores preços, razão pela qual quem se deslocava optava por efetuar a aquisição de certos produtos, normalmente nos "free-shops" dos aeroportos. Isso era muito vulgar no caso dos perfumes. E, no caso, lá estavam eles: para a mulher um "Cacherel", para o pai um "4711 ", para um nome de senhora não identificado, talvez uma filha, um "Miss Dior". E, na última linha, uma quarta lembrança, com nota bem sublinhada: "Secretária - água de colónia - barata!"

O embaixador decidiu-se por não devolver a lista de compras. Não lhe apetecia que o ministro o viesse a ter por cúmplice silencioso da sua "shopping list" e, em especial, da sua sovinice.

quinta-feira, fevereiro 13, 2014

Globos


                                                   
Londres tem das lojas mais interessantes do mundo no que toca a globos. Quando por aqui vivi, recordo uma dessas casas, perto de Crystal Palace, que era tão snobe que tinha um letreiro a avisar que não admitia visitantes que quisessem entrar "just to take a look". Só "serious business".

Ontem, ao olhar, também em Londres, para uma outra montra com globos, recordei a importância que para mim teve um pequeno globo metálico, com os países identificados a cores, que havia na casa onde vivi a minha infância, com os meus pais e os meus avós. O globo rodava num suporte de que eu muitas vezes o tirava, para o que tinha de achatar os polos, para constante irritação das pessoas mais velhas. O meu tio Fernando, que vivia lá em casa em férias, foi o grande responsável pela minha educação na geografia política e étnica, ensinando-me onde havia índios e cowboys, onde viviam os pretos (deixemo-nos de eufemismos, era assim que se falava nos anos 50), qual era a terra dos "chineses de olhos em bico" e outras caricaturas do género, que me foram ajudando a imaginar o que ia por esse mundo fora.

Desde muito miúdo que eu apontava para o Egito quando me perguntavam "onde é que há as pirâmides", mostrava os desertos no Sahel (na altura, só se falava no Saara), a terra dos esquimós, a bota que era a Itália e o canal do Panamá. Também por via dessas descrições, criei uma ideia menos simpática do cabo das Tormentas que o meu pai me ensinou a identificar, com histórias do Adamastor, no desenho da viagem das caravelas para a Índia e mais além. A linha do Equador foi, para mim, um traço mítico que separava dois mundos (aliás, o próprio globo lá de casa era desmontável em duas calotas hemiesféricas, que se encaixavam, precisamente no equador), mas nunca ninguém, à época, me conseguiu explicar convenientemente o interesse dos trópicos de Câncer e de Capricórnio (e a verdade é que eu só leria Henry Miller bem mais tarde...). Mas cedo soube de cor onde estavam situadas todas as "províncias ultramarinas" e, recordo bem, o facto de me terem dito que a Nova Zelândia se situava "do outro lado" do mundo levou-me a inquirir por que razão se não fazia um túnel para lá... Os pólos, a norte e a sul, pintados a branco, nunca me seduziam por aí além, talvez porque Trás-os-Montes já era demasiado frio para o meu gosto.

As lições de geografia que, com o globo, eu recebia foram, com o tempo, complementadas com um mapa da Europa em que alguns países eram simbolizados por animais e outras figuras. Nele, a Rússia, lembro-me bem, era identificada por um imenso urso. Já não tenho na memória, mas imagino que o Reino Unido (a Inglaterra, como então se simplificava) devesse ter um John Bull a representá-la e a Holanda (país que me habituei a respeitar muito, por me terem dito que vivia abaixo da linha do mar  o que sempre me impressionou) pelo inevitável moínho, rodeado de tulipas. A perceção do resto do mundo era então também ajudada pela coleção das "Raças Humanas", com fotografias coloridas de caras bizarras, que cedo comecei a colecionar. E os desenhos do "Cavaleiro Andante" faziam o resto do trabalho. Vieram, por fim, os selos, que me ajudaram a perceber ainda melhor o mundo, com as subtilezas políticas de cidades como Tânger, Trieste ou Dantzig (hoje designada por Gdansk). O "meu" mundo foi assim criado e, com ele, foi-se gerando em mim alguma vontade em conhecê-lo. Mal eu sabia, à época, que a vida me iria dar o ensejo de o frequentar com alguma extensão e assiduidade.

Ainda se oferecem globos às crianças? Se não, é pena!

quarta-feira, fevereiro 12, 2014

António Capucho

Um abraço a António Capucho, lembrando Aires Rodrigues, Zita Seabra e Galvão de Melo.

A democracia tem, às vezes, estes dias tristes.

Joseph Crabtree

Estarei hoje presente num jantar no University College, em Londres, reunindo os cultores da memória de Joseph Crabtree. Desde 1954, existe na capital britânica a Crabtree Foundation, que congrega um grupo de cerca de 400 cidadãos que, uma vez por ano, na terceira quarta-feira de Fevereiro, se reúnem, numa solene refeição para a qual é obrigatório o uso de "smoking", para ouvir um deles falar de um dos diversos aspetos das extensas vida e obra de Crabtree.

Segundo os anais, Crabtree terá vivido exatamente um século - de 1754 a 1854. O seu percurso é o de um personagem quase renascentista, tendo sido escritor, viajante, político e uma multiplicidade de coisas mais, como os tempos recomendavam. Poemas por si assinados apareceram publicados em antologias de poesia inglesa. A admiração por este destino de eleição levou à gestação de um verdadeiro culto intelectual àquela figura, a que eu próprio acabei por não ser insensível.

Desde 1992, passei a ser um dos muito escassos "scholars" estrangeiros da Crabtree Foundation (não somos mais de uma dezena, entre centenas), para onde entrei então pela mão do Bartolomeu Cid dos Santos, com quem lancei as bases, com o Helder Macedo e o Luis de Sousa Rebelo, do "Portuguese chapter", que, há uns anos, realizou no Hotel Lawrence, em Sintra, um encontro dedicado a "Crabtree e Byron". E que proximamente vai ser revitalizado. Há dois anos, coube-me a honra de presidir à Fundação durante um ano, incluindo o jantar anual em Londres e nele anunciar o meu sucessor (escolhi uma sucessora) e designar o orador para o ano seguinte.

De Lisboa, Nova Iorque, Viena e até de Brasília, tenho procurado deslocar-me, com a regularidade possível, a esses jantares anuais em Londres. Em ocasiões passadas, fui de Paris. Agora, desloquei-me de Lisboa. "The great Man", como é saudado no brinde inicial, que anualmente é feito em frente do seu retrato (na imagem), e a sua fantástica obra merecem-no bem.

O leitor, menos familiarizado com estas coisas, talvez possa ter tido o azar de não estar informado sobre a insígne figura de Joseph Crabtree. Por isso, se estiver interessado, pode ler as "The Crabtree Orations", vol I (1954-1994) e vol II (1995-2004), ed. Brian Bennett & Negley Harte, The Crabtree Foundation, London, 1997 e 2004. Esses volumes acolhem aspetos da vida e obra de Crabtree, anotados através das conferências que figuras eminentes sobre ele produziram. Talvez me tenha escapado neste texto um pequeno, mas quiçá despiciendo, pormenor: Joseph Crabtree teve um contacto pouco intenso com a vida. Não tenho pejo em reconhecê-lo. Mas daí a poder dizer-se, como alguns insensíveis afirmam, que Crabtree nunca existiu vai uma distância equivalente à que separa a insídia do mito. Francamente!

terça-feira, fevereiro 11, 2014

Incoerência

O conceito é antigo, tem mesmo uma significação que não é alheia à religião. Nas décadas mais recentes, a palavra "subsidiariedade" tem andado um tanto na moda, querendo significar que, nas hierarquias e nas estruturas dos Estados, as decisões devem ser tomadas ao nível mais baixo possível, sem perda e até com ganhos de eficácia, evitando a tradicional tutela "top-down", aproximando assim o poder decisório dos cidadãos.

Na vida das instituições europeias, o conceito tem os seus momentos de glória, erigindo-se como orientação em muitas políticas e práticas comunitárias, evitando acusações de as estruturas bruxelenses querem tratar de tudo, em detrimento dos poderes nacionais e até regionais. Nem sempre, contudo, por boas razões. Algumas vezes, a aplicação estrita do princípio tende a desresponsabilizar as entidades de topo, através de uma demagógica descentralização que pode ter efeitos de agravamento das desigualdades entre os Estados. Por isso, em determinados contextos, Portugal e outros Estados chegaram a opôr-se, e bem, a formas perversas de utilização do princípio.

Nesse contexto, era o caso. Aquele ministro português, num ano já longínquo, no "briefing" que lhe foi feito pelos diplomatas e técnicos que trabalhavam na nossa representação junto da instituições comunitárias, em Bruxelas, tomou boa nota da posição que lhe era aconselhada para a sua intervenção no conselho de ministros europeu, que teria lugar no dia seguinte. E não colocou quasquer objeções à proposta de rejeição do conceito de subsidiariedade naquele contexto específico.

A grande desvantagem dos "briefings" feitos de véspera, pela minha experiência pessoal - de funcionário e também de membro do governo -, é que tal permite aos governantes "dormirem sobre os assuntos" e, às vezes, dá-lhes na veneta terem sobre eles ideias próprias. O que, como diria Sir Humphrey, é um risco que os Estados devem ter todo o cuidado de evitar.

Foi o que aconteceu com aquele ministro. No dia seguinte, à entrada do conselho, chamou de parte o diplomata que iria assessorá-lo nos trabalhos e informou-o:

- Estive a refletir melhor sobre aquela questão da subsidiariedade. Acho perigoso estarmo-nos a opor à proposta da Comissão.

O funcionário ficou siderado! Em todas as instância anteriores, sob precisas instruções de Lisboa, Portugal tinha deixado muito clara a sua oposição à aplicação do princípio naquele caso particular, porque disso poderiam resultar impactos pouco consentâneos com os nossos interesses. Seria assim muito difícil explicar uma súbita mudança de atitude. E perguntou ao ministro as razões que fundamentavam a sua posição. Ficou logo esclarecido:

- Então Portugal não quer sempre obter subsídios da União Europeia? Porque é que, desta vez, nos opomos à subsidiariedade? Parece-me incoerente, não acha?

Diplopoeta

O "nosso" Luís Castro Mendes acolheu-se agora à "Assírio & Alvim", onde vai publicar o seu próximo livro, "A Misericórdia dos Mercados". É bom vê-lo numa excelente casa da poesia, ainda ligada, agora só pelo nome, ao meu querido amigo João Carlos Alvim (João, temos de nos ver um dias destes!).

O primeiro lançamento ocorrerá na Póvoa de Varzim (e não Póvoa do Varzim, como às vezes alguns se enganam), no dia 22 de fevereiro, no âmbito da "Correntes d'Escritas" (desculpa lá, Luís, mas tenho um compromisso em Setúbal nesse dia, com que sei que estarás solidário).

No dia 25, pelas 18.30, na Barata, na avenida de Roma, o evento repete-se, com falas de Fernando Pinto do Amaral e Nicolau Santos (Tó Zé Massano, se chegares mais cedo, tu, que moras a "walking distance", marca lugares!).

Dizem-me que, para este último evento, se prevê uma multidão multinacional. Desde logo, um tal Alcipe, vindo de Estrasburgo com a madame. Como estamos no ano comemorativo do "movimento dos capitães", é aguardado, com imensa expetativa, o famoso Capitão Rosa, que agora usa um nome estrangeiro, para armar em "fino", na correspondência que lhe mandam para Moulinsart. Ao que me dizem, está já confirmada a presença de um estimado comerciante da Figueira da Foz, de seu nome Oliveira, muito chegado ao autor, e de quem, nas últimas horas, se fala bastante para novo presidente da AICEP. De Coimbra, aguarda-se o renomado professor Pedro João dos Santos, acompanhado de um jornalista de um diário de Lisboa, cujo nome me escapa. De Paris, está garantida a presença amiga de Ronaldo Azenha de Noisiel, que consta estará prestes a lançar um negócio de mercearias "drive-in" em auto-estradas. Também deverá deslocar-se, vindo de uma das antigas colónias, essa figura muito próxima do autor que é Feliciano da Mata, em seu nome e de uma senhora engenheira cuja modéstia esconde o santificado apelido. Em representação de uma augusta figura, espera-se a presença de D. Henrique Vasconcellos Menezes (Vinhais), responsável pelo pé de página do Gotha dedicado a Portugal. Pelo movimento literário Malta da Rima, a que o autor terá aderido na juventude, aguarda-se a presença de um diplomata que, nos últimos anos, se dedica a fazer um "remake" do "Mistério da Estrada de Sintra". Pude há minutos confirmar, depois de um jantar que tive com o Hélder Macedo, que, daqui de Londres, irá o Joseph Crabtree e, do Brasil, está garantida a presença de Augusto Maria de Saa. E muita, muita mais gente.

Vai ser uma festa!  

segunda-feira, fevereiro 10, 2014

Boa notícia!

Domingos Simões Pereira assumiu a liderança do PAIGC na Guiné-Bissau. Finalmente chega uma boa notícia daquele pobre país.

O novo líder do principal partido guineense, herdeiro de quantos lutaram pela independência da Guiné-Bissau, é um homem que deixou uma excelente impressão, ao tempo que serviu como secretário-geral da CPLP. Espera-se agora que possa ter condições para garantir ao seu país um processo de retorno pleno à normalidade democrática, de eficaz luta contra as derivas de criminalidade que afetam a respetiva vida política e - o mais importante! - que lhe seja possível anular o potencial desestabilizador das Forças Armadas no quotidiano político local. A comunidade internacional apoiá-lo-á se esse triplo objetivo estiver no centro da sua ação.

"Observador"

Ontem falou-se aqui do jornal francês "Libération" e do iminente esgotamento do seu projeto em papel. Agora, anuncia-se o surgimento, em Portugal, do "Observador", um meio de comunicação social que se anuncia a si próprio "sem os condicionamentos do papel"...

Trata-se de uma nova aventura jornalística que tem a curiosidade de dever ser o primeiro órgão informático em Portugal que é construído de raiz. Não devo estar muito longe da verdade se disser que parece haver, por detrás desta interessante aventura comunicacional, o natural aproveitamento de uma onda geracional ligada à internet, aculturada à blogosfera e ao Facebook.

Mas há algo mais dentro desta iniciativa. Há nele um evidente projeto ideológico de direita, titulado por competentes profissionais do jornalismo e do comentário que alimentam um inequívoco ideário liberal e que, nos últimos anos, têm servido de suporte doutrinário, nem sempre óbvio e raras vezes "mecanicista" (para utilizar uma categoria teórica marxista), à ocupação do poder por parte da maioria política que a conjuntura trouxe ao país. Gente de uma nova direita que, seguramente, vai dar sequência a muito do que foi desenvolvido, nos últimos anos, bastante em blogues mas, igualmente, em revistas como a "Atlântico" e "Nova Cidadania", ambos muito tributários desse viveiro de pensamento conservador que tem sido o Centro de Estudos Políticos, da Universidade Católica Portuguesa.

Este não é o primeiro "Observador" que se produz em Portugal. Em 1971, a direita marcelista fez surgir uma revista, dirigida por Artur Anselmo, que, à época, teve alguma importância no debate político. Mas não teve grande êxito.

domingo, fevereiro 09, 2014

"Que se lixe a União Europeia!"

A frase em título, embora num registo estilístico um pouco menos suave, foi pronunciada por uma alta responsável diplomática americana, ao telefone com o embaixador de Washington em Kiev, numa alusão crítica (espero que os leitores apreciem este "understatement", tributário da fina cultura diplomática lusa) à posição de Bruxelas na crise ucraniana. A senhora em causa é casada com Robert Kagan, de quem já li coisas "lindas" a propósito da Europa, pelo que daqui se pode inferir o nível de "carinho" com que o Velho Continente deve ser mimoseado na intimidade do casal.

O que a mim me surpreende é o "escândalo" que estas coisas ainda parece provocarem. A senhora Merkel logo se mostrou chocada com os termos "inaceitáveis" utilizados pelos diplomatas americanos, como se acaso estes não tivessem todo o direito, numa conversa telefónica entre si, que não julgavam escutada por terceiros, de chamarem aos "parceiros europeus" o que lhes desse na real gana. Ao contrário do que, há meses, foi revelado sobre as escutas americanas a líderes amigos, desta vez os escutados foram os americanos, aparentemente pela espionagem russa. O que deve ter dado, lá no fundo, um grande gozo a Berlim.

Porque é que eu mostro aqui uma grande complacência com estas práticas, com o uso de uma linguagem solta nas conversas telefónicas? Porque sim.

"Libé"

A crise da imprensa escrita acontece um pouco por toda a parte. Todos os dias lemos notícias de jornais a fechar, com os novos projetos a passarem, em prioridade, pelos meios informáticos. Não há muito que se possa fazer: subsiste aquilo que vende e os jornais vendem pouco. As pessoas leem-nos cada vez menos e, em muitos casos, uma descrecente apetência por um jornalismo mais cuidado e sofisticado está a fazer emergir, em muita imprensa, uma escrita "simplificada", a gerar uma espécie de "fast food" jornalístico. Os tablóides já tinham prenunciado o estilo, mas havia a esperança que uma "aldeia gaulesa" de qualidade pudesse sobreviver. Essa esperança, contudo, embora exista, é cada vez menor.

Faço parte de uma geração que nasceu com o "Libération" como uma referência de independência, com um estilo algo arrogante e afirmativo, uma sedutora abertura ao novo, uma qualidade inventiva de escrita e de temas, um jornal que havia conseguido adaptar-se aos tempos, embora com ruturas que não foram fáceis. Por lá passaram alguns bons nomes inconformistas e a qualidade do produto gráfico, bem como a genialidade de alguns títulos, compensava alguma fraqueza na construção geral do jornal. Ao tempo que passei por Paris, o "Libé" fez-me sempre falta (mas eu não sou um bom exemplo: a mim faz-me falta toda a impeensa...)

Leio que o "Libération" voltou agora agora a entrar em crise (e elas já foram muitas, na história do jornal, desde os tempos de Sarte aos de July, passando pelo modelo menos personalizado que vigorava nos últimos anos). Desta vez, o conflito parece mais sério do que nunca e a oposição entre os trabalhadores do jornal e os acionistas não parece conciliável. Terei bastante pena se o "Libé" desaparecer, mas o mundo não perdoa e as nostalgias ainda não têm cotação no mercado.

sábado, fevereiro 08, 2014

Faturas

Cheguei à conclusão de que há uma idade na vida em que nos podemos dar ao luxo de ter dúvidas. Cada vez mais, passado para mim um tempo que já foi de certezas quase absolutas - e felizes devem ser quantos as conservam -, olho para os factos tentando medi-los pelo seu valor próprio. E, muitas vezes, verifico que isso não corresponde àquilo que se poderia qualificar como uma linearidade de inabalável coerência, à luz de matrizes ideológicas pré-determinadas. Mas, certo ou errado (e não tenho a pretensão de estar nem uma coisa nem outra), procuro ser coerente com aquilo que intimamente penso.

Vem isto a propósito da questão das faturas, em especial dos seus anunciados leilões de prémios.

Nenhum governo fez mais do que o atual para abalar a profunda solidariedade que, em toda a minha vida, sempre alimentei para com o Estado, que erigi intimamente como o intérprete de um interesse coletivo com que entendo dever estar tendencialmente solidário, desde que dirigido com legitimidade democrática. Também é verdade que nunca como nos últimos anos tinha assistido ao espetáculo de ver o Estado dirigido por quem tanto o diaboliza e espera conseguir poder desmantelar de forma irreversível, antes do país lhe dar, nas urnas, o devido destino. 

Nào obstante esta minha conjuntural atitude face ao Estado, em razão da sua tutela conjuntural, uma lógica de equidade leva-me a ter de exigir que todos sejam tratados da mesma forma quando uma lei tributária - por mais injusta que possa ser - nos é imposta. Como qualquer cidadão normal, não gosto de pagar impostos, mas, se tenho de fazê-lo, espero que todos procedam de forma idêntica. E que ninguém seja poupado ao seu dever cívico.

Já no passado aqui referi a questão de "passar fatura", em especial nos estabelecimentos comerciais. Vivi em vários países e não me recordo de algum ter chegado ao "modelo" que foi criado entre nós. Em parte nenhuma do mundo vi perguntar a alguém se quer "factura", se pretende uma "fatura simplificada" ou ouvir uma pessoa, pateticamente, ter de debitar ao vendedor o seu número de contribuinte. Posso ter estado desatento, mas não recordo nada igual. 

Dito isto, eu hoje exijo sempre fatura numa compra comercial. Desde um simples café a uma aquisição de livros ou gasolina. Lamento muito o encargo que o fisco hoje representa para profissionais do comércio que têm uma vida difícil, mas não tenho o direito de ser eu a escolher aqueles a quem "ajudo" a fugir à legalidade que é respeitada pelo outros. Mas porque assim procedo, e porque entendo que todos assim deveriam proceder, a coerência obriga-me a apoiar medidas que estimulem a que outros procedam da mesma forma. E se uma sociedade como a portuguesa não tem, imbuído em si mesma, o espírito de solidariedade cívica que leva a que a todos se empenhem numa igualdade de direitos e deveres, acho perfeitamente normal que possa haver estímulos para que muito mais cidadãos sejam levados a adotar essa linha de comportamento, mesmo que, infelizmente, isso tenha de ser feito por uma via menos curial, como é a dos bizarros sorteios. 

(Quase que apostaria em como muitos que acabaram de ler este texto vão estar de acordo com parte do que nele escrevi e em desacordo com a outra parte, embora não necessariamente pela mesma ordem.)

sexta-feira, fevereiro 07, 2014

Saneamento

Imagino que, para alguns jovens de hoje, o termo "saneamento" não ultrapasse a ideia de redes de esgotos e canalizações. Porém, se acaso tivessem vivido uma vida adulta após a Revolução de abril, saberiam que o termo foi então abundantemente utilizado para significar o afastamento forçado de pessoas de algumas estruturas e instituições, quer por alegadas ligações ao regime ditatorial quer, num momento subsequente, por acusações de resistência ao "processo revolucionário" desencadeado. 

O caso do afastamento de mais de duas dezenas de jornalistas do "Diário de Notícias" foi um dos "saneamentos" que então gerou mais polémica. É que muitos dos "saneados" estavam longe de poderem ser qualificados de "fascistas", sendo apenas pessoas que resistiam ao controlo do jornal por uma linha muito próxima do PCP. Pode dizer-se que pelo DN passou então a fronteira da clivagem mais evidente no seio da Revolução. Nomes como José Saramago ou Luis de Barros emergiram, a partir daí, como os principais responsáveis por essa operação política, que ficou na história do jornalismo português.

Foi agora anunciado o lançamento de um livro que recolhe uma tese universitária sobre o tema. Atento o que se conhece sobre o nível da orientação académica do trabalho, deve esperar-se um texto rigoroso. Veremos se assim é. Alguma polémica em torno da utilização de uma imagem do jornal como capa da obra está a funcionar como involuntária propaganda para o seu lançamento. Irei ler o livro com cuidado, como julgo que fiz com quase tudo o que se escreveu sobre aquela época.

Zita Seabra, a operosa editora da Alethêa, que publica o livro, aparece, uma vez mais, na linha da frente de uma iniciativa que, diga-se o que se disser, pretende confrontar os comunistas com o seu passado. Como "voyeur" regular desses tempos, só me posso congratular com o facto de novos dados virem à tona, ajudando a completar o "filme" desses dias. Isso não seria, em si, nada de mal, não fora dar-se o caso dessa mesma Zita Seabra ter sido, à época, uma das mais ferozes e sectárias militantes do PCP. Reconheço o direito a que as pessoas mudem de opinião e assumam a sua distância face a um passado a que entendem já não deverem fidelidade. Mas acho que alguma maior contenção seria recomendável. Nunca é agradável ouvir um membro de um casal desavindo fazer revelações sobre a intimidade dos seus antigos tempos.

quinta-feira, fevereiro 06, 2014

A ponte

Começava a ser estranho! O avião chegara à Portela já há cerca de uma hora e nem sinais havia do advogado britânico que, nessa manhã, se deslocara a Lisboa para aquela reunião. E, por imprudência, ninguém na empresa tinha o seu telefone. Ter-se-ia perdido? Era a primeira vez que o homem vinha a Portugal e, infelizmente, não fora possível enviar um carro para ir buscá-lo ao aeroporto. Mas o trajeto era relativamente curto e, de taxi, bastaria, no máximo, um quarto de hora. Que fazer? Começar a reuniào sem ele? 

De súbito, um dos contactos do advogado na empresa recebe um telefonema. Era o homem! Vinha de taxi e informou: "Estou a chegar! Já estou a atravessar a ponte!"

Os taxistas do aeroporto de Lisboa são um dos "orgulhos" do nosso país.

Ontem à noite, ao sair do aeroporto para casa, lembrei-me desta história, que alguém há dias me contou. No que me respeita, vim pelo caminho mais direto.

quarta-feira, fevereiro 05, 2014

Não têm vergonha?

A passada segunda-feira foi um dia bem "português". 

Uma magistrada, já cerca da meia-noite, depois de um dia frenético de audições, ditou, do alto da sua independência como órgão de soberania, que o leilão do importante lote de obras de Juan Miró, que estava nas mãos de um empresa que foi criada para privatizar tudo o que for possível privatizar antes que este governo acabe, podia prosseguir, lá em Londres, onde a Christie's fora encarregada de o vender. Estava assim anulada a previdência cautelar ("liminar", para leitor brasileiro) solicitada por atentas personalidades da oposição e logo seguida por um Ministério Público sempre bem alerta quando alguém o avisa.

Caramba! Para que o assunto merecesse este tratamento tão expedito da nossa magistratura, com uma decisão sobre a hora, era, com certeza, sinal de que a operação fora feita sob total surpresa. Qual quê! O assunto "tem barbas". Eu próprio, por razões que não vêm para o caso, tinha dele conhecimento há bem mais de um ano. Outros compradores tinham já aparecido no circuito e a intenção oficial de recorrer a este método para a liquidação do espólio era, de há muito, conhecida. 

Porque é que o país só agora "acorda" para a venda dos Miró, a escassas horas do leilão? Porque nos chamamos Portugal, porque nada aqui se faz a tempo e horas, porque temos uma imprensa que só há dias aprendeu que o BPN nos tinha feito ganhar uma coleção rara de obras do genial pintor, porque temos uns políticos da oposição que, em lugar de, desde há meses, terem suscitado a questão junto da opinião pública, andaram "a dormir" na forma até agora*. E já nem falo do governo, porque todo o mundo da arte sabe que a sua decisão de vender um lote tão importante de obras de Miró, tudo no mesmo dia, baixa naturalmente o seu valor individual de mercado, afetando o potencial encaixe de capital. Mas que interessa isto a quem quer vender (já!) tudo o que possa "cheirar" a público?

A Christie's, que nestas coisas não brinca em serviço, suspendeu entretanto o leilão. Esteve-se nas tintas para o fim da providência cautelar e, escaldada com confusões judiciais, quer esclarecer o assunto. Na serenidade dos gabinetes da King Street, deve já ter havido alguém a perguntar(-se): "mas quem é que nos mandou meter-nos com esta gente?" Mesmo arriscando-me a equiparar-me por uma vez, em despreendimento patriótico, a Vasco Pulido Valente, tenho de reconhecer que têm toda a razão!

* foi-me chamada a atenção para o facto de o assunto ter sido suscitado, desde há meses, em sede parlamentar.

terça-feira, fevereiro 04, 2014

Praxes

É da praxe não falar na reestruturação da dívida, um eufemismo que se utiliza para referir o seu não pagamento parcial. Assumir que parte da dívida dos Estados nunca será paga afecta o mito de que ela é comparável ao endividamento dos particulares.

Há uns tempos, um antigo político explicou que a generalidade dos Estados tem uma dívida recorrente, que procura “reciclar” através de novos empréstimos, a custos tão baixos quanto possível. Caiu-lhe logo “o Carmo e a Trindade” em cima, sendo “irresponsável” o mais doce qualificativo com que foi mimoseado. Há dias, um banqueiro na moda disse precisamente o mesmo. Um respeitoso silêncio dos cemitérios abateu-se sobre as suas declarações. A mesma verdade tem um valor relativo, proporcional às emoções e ódios com que é embrulhada.

O estado a que a nossa dívida pública chegou, nos últimos anos, não autoriza nenhuma vestal a ficar escandalizada se se afirmar que uma parte dessa dívida não tem condições objectivas para poder ser paga. A “reciclagem” que tem vindo a ser feita, nos altos e baixos do mercado, conduziu a que a taxa média dos nossos empréstimos se situe hoje não longe dos 4%.

Nestas condições, é por demais evidente que a cumulação de um processo de substancial amortização da nossa dívida com o respectivo serviço, em taxas próximas das actuais, é implausível, dado o crescimento e a inflação expectáveis. A menos que um perdão parcial venha a ser admitido, associado a uma renegociação de taxas e maturidades, Portugal ficará esmagado por um peso financeiro incomportável. E os primeiros a não beneficiarem dessa situação seriam os nossos credores externos, que não tirariam vantagens de uma economia asfixiada. Eles sabem isso bem. É, contudo, desejável que o assunto só surja à discussão num quadro europeu bastante mais sereno e estável. Mas deixemo-nos de ilusões: cedo ou tarde ele emergirá, dependendo o “timing” do modo como os mercados vierem a ler o grau de abertura do BCE para apoiar as economias europeias sujeitas a uma maior pressão.

É a Europa, com as flutuações dos seus humores financeiros, que todas as manhãs dita o destino dos nossos “spreads”. Por isso, constitui uma perfeita mistificação, que só frutifica numa opinião pública tão intoxicada como a portuguesa, a ideia que está a ser preparada de que resultará de uma nossa livre opção a escolha entre um programa cautelar ou uma saída “à irlandesa”. É evidente que será apenas o modo como o mercado vier entretanto a comportar-se face às nossas necessidades de dívida (ou ao tratamento da mesma no mercado secundário) que ditará a solução a adoptar (como, aliás, aconteceu já no caso irlandês). Estar a criar a ilusão de que a alternativa releva da sabedoria de uma oportuna decisão nacional pode legitimar que se pergunte então a razão pela qual o “regresso aos mercados” não teve lugar na tão propalada data de 23 de Setembro de 2013. Não nos praxem, por favor! 

 Artigo que hoje publico no "Diário Económico"

Polónia

É uma iniciativa meritória aquela que o deputado Ribeiro e Castro promove, com regularidade, na Livraria Férin.
 
(essa mesma livraria, na rua nova do Almada, de cuja montra o Artur Corvelo se aproximava, como conta o Eça em "A Capital", a fim de ver se o seu "Esmaltes e Jóias" se vendia.)
 
Trata-se de organizar debates no âmbito de uma "Tertúlia Diplomática", tendo como convidado um embaixador estrangeiro em Lisboa.
 
(Ribeiro e Castro, ao tempo que dirigia a Comissão de Negócios estrangeiros da nossa Assembleia da República, tomou também a iniciativa de ouvir, à porta fechada, alguns embaixadores portugueses. Tive a honra de ser o primeiro a ser convidado para esse interessante exercício.)  
 
Ontem, falou-nos o embaixador da Polónia, Bronislaw Misztal, do seu país e de um livro recentemente publicado sobre a "cortina de ferro", essa expressão utilizada por Churchill no seu discurso de Fulton, em 1946, e que acabou por ser uma dos mais famosos qualificativos da Guerra Fria.
 
O diplomata polaco fez uma estupenda apresentação da Polónia contemporânea, mas também da sua história, das vizinhanças e das ambições de paz que atravessam um Estado que teve uma experiência traumática de guerra. A uma pergunta que lhe foi feita, procurando saber da vontade dos polacos de trabalharem a memória dos tempos comunistas, o embaixador explicou, com uma simplicidade que revelou grande sabedoria, que se alguém numa rua polaca for hoje abordado sobre acontecimentos passados -  como a invasão russa de 1956, a revolta de Gdansk de 1980 e os tempos de Jaruselsky, bem como a recuperação da liberdade no final desses anos 80 - muito provavelmente essa pessoa deixará claro que, não esquecendo as lições da História (ou talvez por causa delas), o que lhes interessa agora é o futuro. E que a Europa é o lugar geométrico onde os polacos depositam as suas esperanças.
 
Hoje mesmo, em Cracóvia, onde irei para reuniões de trabalho, vou, com certeza, poder confirmar esta perspetiva, esse esforço para esquecer recordando. Ao lado de uma cidade que não foi destruída pela guerra, está construída uma das maiores enormidades do tempo do conflito, o campo de extermínio nazi de Auschwitz.

segunda-feira, fevereiro 03, 2014

Blogue

Não tinha dado conta, devo confessar: este blogue fez ontem cinco anos. Foi um confrade que se preocupa com essas datas que o anunciou.

Foram cinco anos sem uma única data em que eu aqui não tivesse deixado um post. Foram em número de mais de 3200 as mensagens que assinei, entre memórias ou notas do quotidiano, historietas pessoais ou de outros, cenas e episódios da vida diplomática, textos mais ou menos sérios, muitas fotografias. 751 amigos inscreveram-se para seguir, nos dias hoje, este blogue. Quase um milhão e trezentas mil visitas foram feitas nestes cinco anos, com mais de dois milhões de páginas consultadas. Em média, todos os dias, o blogue é visitado por mais de mil pessoas - o que, de acordo com quem sabe destas coisas, leva a presumir que cerca de cinco mil leitores passam regularmente por aqui.

Durante o primeiros quatro anos, o blogue foi assumido como sendo "do embaixador de Portugal em França", embora nunca tivesse sido um blogue formal da Embaixada. Logo no primeiro post ficava clara a dualidade: "Embora, como disse, este espaço não tenha uma natureza oficial, naturalmente que quem o escreve assume, em pleno, a responsabilidade da função que exerce e que, por essa razão, não se esquece dela ao escrever. "À bon entendeur"..." A mudança do meu estatuto ocorreu há um ano e, naturalmente, o blogue sofreu alguma alteração no seu estilo e, aqui ou ali, em alguma seleção temática.

Um palavra para as comentadoras e comentadores. Quem segue este espaço sabe que há gente que o acompanha desde o início, com uma dedicação que só posso agradecer. Um "quarteto" ímpar de senhoras tem feito uma inigualável "guarda de honra" aos textos: Isabel Seixas, Helena Oneto, "Margarida" e Helena Sacadura Cabral. Mas há outros nomes, como "Patrício Branco", "Catinga", ARD ou Guilherme Sanches a cuja fidelidade estou muito grato. Caso especial é "Alcipe" e o seu saudoso heterónimo "Feliciano da Mata", este último agora desaparecido em combate empresarial, entre o Cabinda e o Cunene, com passagens fugazes pelo mundo do PSI20. Alguns comentadores andaram por aqui e, depois, desapareceram. O caso mais marcante terá sido a Mônica, uma simpática "mineira" brasileira, que muito humanizou este espaço. Mas muitas centenas de anónimos ou de pessoas com nome deixam por aqui as suas notas - às vezes de acordo, muitas outras de frontal oposição ao que por aqui disse. Com grande sinceridade, a todos eles, mas também a todos os leitores que nunca deixaram nada escrito, estou muito grato e envio um forte abraço, porque também eles estão de parabéns neste aniversário. É que, sem leitores, a escrita transforma-se num exercício sem sentido.

Em tempo: e os "newcomers" como "Defreitas". Imperdoável o esquecimento de José Barros, António PA, "Portugalredecouvertes", "São", José Tomaz Mello Breyner e tantos outros. E a "velha senhora"?

Livros, ainda

O "Diário de Notícias", dedica hoje uma sua página à entrega dos meus livros à magnífica Biblioteca Municipal de Vila Real (na imagem).

Nessa reportagem de Leonídio Paulo Ferreira falo das obras que já partiram, da minha velha e complexa relação com os livros e de outros aspetos relacionados com esse meu saudável "vício". O texto pode ser lido aqui.

Não faço esta doação com o objetivo de dar qualquer exemplo. Mas gostaria de estimular outras pessoas (diplomatas, por exemplo) a promoverem a entrega dos seus livros (ou de parte deles) a bibliotecas das terras de onde são originários, assegurando-se, antecipadamente, que eles serão tratados de forma adequada, como está a acontecer no meu caso. Assim se evitaria o espetáculo, algo triste e deprimente, de ver excelentes espólios surgirem dispersos, algumas vezes vendidos a preços irrisórios, por alfarrabistas ou casas de velharias. Os nossos livros merecem sempre o melhor destino.

domingo, fevereiro 02, 2014

Fronteiras

Desde há muito que sinto um imenso fascínio pelas fronteiras. Recordo, como se fosse hoje, a emoção que tive ao atravessar pela primeira vez a fronteira entre Portugal e Espanha, entre Vila Verde da Raia e Feces de Abajo (deixo uma imagem contemporânea do espaço), para ir à festa do Lázaro (nós dizíamos "dos Lázaros") a Verín. Passar para o "outro lado", para o lado do "outro", foi uma experiência que me marcou para sempre.

Ao longo dos anos, atravessei fronteiras muito diversas. Fui interrogado numa fronteira alemã, durante longos minutos que me pareceram horas, no dia em que Ulrike Meinhof foi detida. Senti o incomparável gelo do "checkpoint Charlie" quando Berlim era "a sério". Fiz fila, com compatriotas emigrantes, para tomar forçadamemente um medicamento em Handaye, quando ia "à boleia" de um Portugal onde a cólera era considerado um problema (não obstante ter as vacinas em dia). O meu passaporte foi sujeito a um longo escrutínio quando pretendi entrar em Israel com vários carimbos de anteriores visitas (em trabalho) à Líbia. Anos mais tarde, a coreografia das armas e segurança, na travessia para a faixa de Gaza, deixou-me uma impressão inigualável. Guardo para sempre o ambiente único da fronteira entre a Tanzânia e o Quénia, rodeado de inquisitivos Masai, numa tarde de imenso calor. Passei as "passas do Algarve" para conseguir aceder ao Usebequistão, ido do Quirguistão, com um grupo da OSCE. Nessa mesma qualidade, foi muito curioso ser submetido a um longo interrogatório, quando atravessei a tensa fronteira da Geórgia para a Ossétia do Sul. E fui protagonista de (pequenos, mas memoráveis) incidentes em fronteiras de entrada em países como os Estados Unidos, Gabão, Cambodja ou da antiga União Soviética. Podia escrever por horas, sobre fronteiras atravessadas.

A minha (antiga) profissão não existiria sem fronteiras. Os diplomatas só têm razão de ser porque existem entidades nacionais distintas. As fronteiras são a "encadernação" dos Estados. Sou, por isso, um profissional de fronteiras. Ainda hoje, para não "perder a mão", atravessei a de Barrancos para Ensinasola, agora já sem a "graça" dos pides e dos tricórnios da Guardia Civil.

Por esta ou por outra razão, fiz ontem parte de um painel que, em Moura, discutiu fronteiras, ou melhor, o tema "Moura - das fronteiras locais às fronteiras globais". Foi um grupo de oradores muito diverso, que cobriu vertentes institucionais, culturais, antropológicas, geográficas, económicas e geopolíticas. Foram cerca de duas horas muito interessantes, num exercício pouco comum numa urbe de província, habilmente mobilizada por um município disposto a abalar a rotina dos dias locais. Parabéns, Santiago Macias, e obrigado pelo privilégio que me deu de fazer parte desse belo debate.

sábado, fevereiro 01, 2014

Saudades de Américo Tomaz

Na cave do Palácio de S. Clemente, residência do Cônsul-Geral português no Rio de Janeiro, jaziam (ainda jazerão?) algumas centenas de volumes e muita outra papelada, muitas vezes em exemplares repetidos, de divulgação e propaganda turística e política do regime derrubado em 25 de abril. No meio de tudo aquilo, que sempre fez o meu encanto de "rato de biblioteca", encontrei um dia alguns exemplares de uma fotografia oficial do antigo presidente, Américo Tomaz. Levei uma dessas fotos comigo, para Brasília.

Um dia, foi lá jantar a casa um amigo brasileiro, homem muito conservador, conhecido pela sua profunda devoção ao defunto "Estado Novo" e que sempre falava do 25 de abril como "essa funesta data". Resolvi, assim. pregar-lhe uma "partida".

Na base da fotografia do "venerando chefe do Estado" (como reverentemente era tratado pela comunicação social da época)  inscrevi a seguinte dedicatória manuscrita: "Ao meu bom amigo Francisco Seixas da Costa, com grande estima e muita amizade do Américo Tomaz". Coloquei a foto numa moldura, sobre uma outra foto dedicada que tinha lá por casa - as residências de alguns diplomatas costumam ser vastos "museus" desse tipo de objetos, prática a que sou muito avesso - e deixei-a num lugar bem à vista.

No termo do jantar, o meu amigo passeou-se pelo escritório e, num instante, vi-o debruçado sobre a moldura, que estava displicentemente pousada numa estante. Ficou silencioso. Ele sabia das minhas ideias políticas, embora também não desconhecesse que tenho amizades em setores ideológicos muito distintos e até fortemente contrastantes. Mas imagino que, para ele, o facto de eu ter tido Américo Tomaz entre os meus amigos talvez fosse um tanto demais... Com os diabos! Se eu até "estivera implicado" no 25 de abril, como ele dizia!

Não tendo excessiva confiança comigo, esse amigo manteve-se calado sobre o assunto, durante uma boa meia-hora. A certo passo, "roído" de visível curiosidade, perguntou-me, como que por acaso: "Você conhecia bem o presidente Tomaz?" Dei uma resposta vaga, do género: "Relativamente... Fomos apresentados um dia". Passaram uns instantes, não resistiu: "Olhe! É interessante que, mesmo não o conhecendo bem, ele tenha escrito uma dedicatória como aquela", apontando para a moldura. "Foi, de facto, uma atitude simpática da parte dele". E mudei de conversa. 

O meu interlocutor continuava cada vez mais perplexo. E, uns minutos depois, não desarmou: "Em que data é que o presidente Tomaz lhe dedicou a fotografia?". Não me contive: "Foi no dia 25 de abril. Foi para comemorar..." Só aí ele começou a perceber a patranha.

Lembrei-me desta história hoje, dia em que começo a sentir fortes saudades de Américo Tomaz. Não do presidente que abril derrubou e fez embarcar para o Brasil, mas do meu excelente motorista, também Américo Tomaz de seu nome, que desde hoje deixei de ter ao meu serviço, por eu próprio ter deixado de ser diretor executivo do Centro Norte-Sul. Desse sim, já tenho saudades.

Queijos

Parabéns ao nosso excelente queijo!  Confesso que estou muito curioso sobre o que dirá a imprensa francesa nos próximos dias.