segunda-feira, fevereiro 29, 2016

Lúcio Lara (1929-2016)


Em Angola, morreu Lúcio Lara, de que aqui deixo uma fotografia do tempo da guerrilha. Era, a grande distância de todos os outros, a mais histórica de todas as figuras ainda vivas do MPLA. Sem uma ambição que o catapultasse para a ribalta governativa, Lúcio Lara esteve sempre na sombra de Agostinho Neto e, ao que se sabe, quis apenas desempenhar funções no âmbito partidário. Tido como pessoa de extrema austeridade, nunca o seu nome foi associado a qualquer interesse de natureza económica.

Quando, entre 1982 e 1986, vivi em Luanda, trabalhando na nossa embaixada, recordo-me que o nome de Lúcio Lara era tido, com razão ou sem ela, como um pilar da ortodoxia política e do alinhamento pleno com a então União Soviética. Nesses quase quatro anos, apenas por uma vez me cruzei pessoalmente com Lara, numa cerimónia pública, dele obtendo apenas um silêncio levemente sorridente perante a menção que fiz da minha qualidade de diplomata português. Por essa altura, não obstante os esforços do nosso embaixador, António Pinto da França, as relações entre os governos de Luanda e Lisboa mantinham-se muito tensas e o "Jornal de Angola" trazia, com uma frequência quase diária, ataques a Portugal. Todas as tentativas do embaixador de se aproximar de Lúcio Lara, quanto mais não fosse para um gesto de cortesia, não tiveram o menor sucesso.

Lúcio Lara, que nasceu no Huambo e era filho de pai português e mãe angolana, veio viver e estudar em Portugal, até abandonar o país para ingressar na luta armada, criando com Agostinho Neto o MAC (Movimento Anti-Colonial), que daria posteriormente origem ao MPLA. Foi em Lisboa que conheceu e, em 1955, casou com aquela que iria ser a sua mulher, Ruth. Ruth Lara era portuguesa, aqui nascera em 1936, filha de alemães fugidos ao início do nazismo. Quando Lúcio Lara decidiu abandonar o país, para lutar pela independência da terra onde nascera, Ruth acompanhou o marido. Viveu então nas várias paradas por onde a luta anticolonial levou Lúcio Lara (Conakry, Leopoldeville (hoje Kinshasa) e Brazaville). Depois da independência, e quando passou a viver em Angola, contrastando com o empenhamento militante de Lúcio Lara, a sua mulher teve sempre funções de escasso destaque, embora ligada ao MPLA na área educativa.

No ambiente politicamente muito fechado que era o de Luanda do tempo em que por lá vivi, surgiu, a certa altura, aquilo que, à boca pequena, foi considerado um "escândalo" político, cujos contornos demorou algum tempo a determinar. Um intelectual conhecido, Costa Andrade (conhecido como "Ndunduma"), antigo guerrilheiro e biógrafo de Agostinho Neto, havia escrito e encenado uma peça teatral que, supostamente, ironizava com a vida familiar do presidente Eduardo dos Santos. O autor foi detido, o ministro da Educação foi demitido e a mulher de Lúcio Lara, por alguma razão ligada à conceção do espetáculo, foi afastada das funções que ocupava. Lembro-me bem que, à época, todos especulávamos sobre se, desse incidente, decorreriam consequências para o estatuto político de Lúcio Lara. Nada aconteceu e, aparentemente, o episódio nunca afetou a extrema lealdade que Lara manteve para com José Eduardo dos Santos. Ruth Lara viria a morrer em 2000.

Como referi, Lúcio Lara viveu em Portugal. Por cá esteve ligado ao MUD Juvenil e, ao que tudo o indica, ao PCP, tal como Agostinho Neto. Por essa época, terá escrito poesia no jornal coimbrão "Via Latina". Um dos seus pares nessa aventura literária foi o meu colega Luís Gaspar da Silva, embaixador e antigo secretário de Estado, já falecido.

Conta-se um episódio entre os dois, no dia do funeral de Agostinho Neto, em 1979, em Luanda. Gaspar acompanhava Ramalho Eanes. Esperava-os Lúcio Lara, o nº 2 formal do regime. Forte da sua velha relação, Gaspar abriu os amplos braços para dar um abraço "dos seus" ao antigo amigo (eram famosos, pela seu poder "abrangente", os abraços de Gaspar da Silva). Porém, por esses dias, as relações luso-angolanas não estavam (uma vez mais...) no melhor momento. Aceitar o gesto de Gaspar seria, para Lara, ser visto numa coreografia afetiva que poderia dar lugar a especulações. Disse-me quem viu que a cena foi de antologia. O nosso diplomata, com a sua imensa corpulência, tentou forçar o amplexo. O franzino Lara resistiu quanto pôde, mantendo  o seu antigo colega da "Via Latina", a revista onde ambos haviam rimado líricas, à conveniente distância, não apenas física mas também política.

Uma última nota me ocorre neste singelo obituário. Que pensaria Lúcio Lara da Angola de hoje?

18 comentários:

Luís Lavoura disse...

conheceu e, em 1955, casou com aquela que iria ser a sua mulher, Ruth. Ruth Lara era portuguesa, aqui nascera em 1936, filha de alemães fugidos ao início do nazismo

Casou-se com aquela que viria a ser a sua mulher? Uau. Parece um pouco pleonástico.

Portanto, casou com uma judia. E os seus filhos são, teoricamente, judeus. Judeus angolanos. Que curioso.

Retornado disse...

"Que pensaria Lúcio Lara da Angola de hoje?"

Essa pergunta é interessante, mas seria para nossa (caputos)curiosidade.

Mas muito mais interessante é ainda hoje perguntar a muitos angolanos o que pensam de Lúcio Lara.

Essa estirpe de Libertadores da Pátria nunca apreciaram muito os anti-colonialistas lusos.

Porquê?

Nós os poucos e velhos retornados podiamo explicar, mas agora é tarde e a inês-é-morta.

antonio-enrique silva disse...

Gostei muito do seu texto, caro Embaixador, mas permita-me um observação. Lúcio Lara padecia de um atavismo muito comum à época entre brancos e mulatos apoiantes do MPLA. Pela sua condição, queriam muitas vezes ser "mais papistas que o Papa", talvez por um qualquer complexo de culpa de não terem nascido negros.
Aceite os meus cumprimentos António-Henrique Silva

Anónimo disse...

Bem para mim já foi tarde. Passo a explicar, acima de ideologias ou outras tretas para mim estará sempre Portugal. Como tal todos aqueles que lutarão contra os interesses do meu País quando morrem já vão tarde. Por favor não me venham contra a treta de que lutavam contra um regime, conversa, lutavam contra toda uma Nação. Ainda detesto mais estes, que eram filhos de portugueses, que vinham para cá estudar, para depois contribuirem para a morte de pobres soldados metropolitanos que tinham que ir para o braseiro lutar contra turras. Muitos dos retornados que não todos, mas principalmente aqueles que olhando para os seus interesses particulares queriam fazer uma independência á maneira deles, os que ainda não foram, está na hora de irem para o mesmo lugar que foi agora este gajo. Qunto á Angola de hoje, é um sitio de prostituição financeira e da corrupção.

Anónimo disse...

Por falar em turras, devo dizer que não existiam apenas turras pretos, existiam e muitas vezes piores os turras brancos, principalmente os que ficavam na Metrópole, muitos deles á base de padrinhos não iam combater para África. Porque para mim todos aqueles que apoiavam os movimentos terroristas, eram turras também. Muitos desses turras viveram á pala e continuam a viver do orçamento de Estado.

Anónimo disse...

L.S.disse...

Infelizmente em pleno século XXI, ainda temos que suportar gentinha que desce tão baixo na sua já triste ignorância,apesar da grande evolução que todos os dias se opera neste planeta de que fazemos parte.É degradante e ao mesmo tempo triste ver gente que se mantém reduzidos na sua insignificância e nada fazem para sair da estagnação em que estão inseridos. Como é possível ainda hoje existir gente com saudades de um regime ditatorial,que não só fez muito mal as pessoas das ex-colónias mas que ainda fez muito mais mal aos seus próprios cidadãos. É só fazer uma estatística da quantidade de analfabetos que existia em Portugal, da miséria das crianças e até adolescentes que iam para a escola descalços, enquanto existia uma elite constituída por meia dúzia de indivíduos que eram donos e senhores das terras pagando salários de miséria aqueles que trabalhavam de sol a sol. Sinto uma dor tão grande quando ainda hoje vejo Portuguesas e Portugueses, colocar o dedo, quando vão receber as suas pensões por não saberem ler nem escrever. Viva o 25 de Abril.

Retornado disse...

Por a sociedade lusa condicionar durante vários anos a opinião dos retornados, muita barretada enfiou gente "branca" que foi estes 40 anos à procura de diamantes (árvore das patacas) a Luanda.

Para os retornados tinha sido fácil "roubar" os pretos, foi tudo à ganância, um pontapé na pedra e aparecia um diamante.

Esgotaram a árvore das patacas, não sobrou nada para o Salgado do BES, para os empregados da Soares da Costa e da Mota Engil e de muitos patos-bravos.

Mas ainda há alguns velhos retornados que podem explicar o segredo como se enriquecia em Angola, que encheram de milhões aqueles caixotes dos retornados que se espalharam no cais do Tejo há 40 anos.

António Pedro Pereira disse...

Senhores anónimos das 11:01 e 12:25:
A vossa linguagem anacrónica (não é por acaso que se acobardam no anonimato para poderem lançar as mais vis acusações, debaixo da mais desbragada e rasca linguagem) é muito interessante de um dado ponto de vista.
Os nacionalistas africanos são turras, porque jamais tinham direito a ser independentes.
D. Afonso Henriques, que violentou a mãe, e que lutou contra Castela, legítima nação da qual fazia parte o Condado Portucalense, não é turra: é herói.
D. Nuno Álvares Pereira, que se insurgiu contra o poder legítimo em Portugal na altura, o poder castelhano, não era turra, era patriota. Tal como D. João, Mestre de Avis, um filho bastardo que se transformou em Rei legítimo através de uma insurreição popular.
Miguel de Vasconcelos, que estava ao serviço do poder legítimo em Portugal na altura, de Espanha, era traidor, mas os insurrectos de 1640 não eram turras: eram patriotas.
Esta visão destes anónimos, pessoas azedas e ressabiadas, seria uma curiosa e peculiar maneira de ver os acontecimentos históricos se não fosse vesga, desinformada, absurda, analfabeta mesmo.
Que tristeza.

Manuel do Edmundo-Filho disse...

Fiz ontem (pelo menos escrevi-o, essa certeza tenho-a) um comentário a propósito deste "post". A minha dúvida é se o cheguei a publicar, ou se a sua legítima moderação não o deixou passar. Inclino-me, obvia e fortemente para a primeira hipótese. Poder-me-á, caro Embaixador, esclarecer?

Manuel do Edmundo-Filho disse...

Caro Embaixador, a sua não resposta à minha pergunta(a que tem, claro, todo o direito), leva-me agora a inclinar-me para a segunda hipótese: a sua legítima moderação de comentários (até aqui de crivo bem largo, diga-se) ter agora funcionado de forma tão apertada, o que não deixa de me decepcionar. Razão tem aqueles (como Pacheco Pereira e poucos outros), que acham que em Portugal na esfera governativa e na imprensa há quase que um temor em publicar algo que possa a vir irritar os poderes angolanos (somos muito subservientes em relação aos nossos investidores). Não tenho sequer a veleidade de pensar, nem de perto nem de longe, que o meu comentário tivesse alguma importância ou esse efeito. Tanto mais que o que eu nele dizia acerca de Lúcio Lara corresponde mais a aspectos históricos daquele período do que a uma mera opinião. Período histórico (o do 27 de Maio) no qual estive, infelizmente, bem por dentro. Volto a reiterar: o Embaixador, provavelmente por informações erradas que recebeu dos serviços da Embaixada em Luanda, ou porque a memória já o atraiçoará em relação a esse já distante período, erra quando afirma que Lúcio Lara "era tido, com razão ou sem ela, como um pilar da ortodoxia política e do alinhamento pleno com a então União Soviética". Estranho muito que fosse tido como alinhado com a URSS, porque era excatamente o contrário e toda a gente ligada ao MPLA, como era o meu caso, o sabia. E se o era, era-o sem qualquer fundamento. A César o que é de César...

Quanto a Lúcio Lara não me move qualquer ressentimento pessoal e penso que a história de Angola, merecidamente, lhe reservará ums das sua páginas. A ele e a alguns nomes da sua família como Alda Lara, sua prima e uma grande poetisa, em relação à qual tive a honra de propor, logo a seguir ao 25 de Abril, como professor que era na Escla do Ciclo Prepatório Marta do Resgate Salazar, a substituição deste nome pelo de Alda Lara que ainda hoje, dizem-me, se mantém.

Se eventualmente o meu comentário não chegou a ser publicado por eu ter me esquecido de clicar no "publicar o seu comentário", e não por a sua moderação de comentários ter funcionado (o Embaixador também não quis esclarecer), deixo-lhe aqui, e desde já, o meu pedido de desculpas.

Elsa Monteiro disse...

.. Caríssimo, gostei muito do seu artigo elucidando-me mais sobre quem foi e será Lúcio Lara na história da independência de Angola. Independentemente de alguns comentários, para mim e de acordo aos seus ideais, defendeu e lutou por tudo aquilo em que acreditava e sonhava! o que h0je se presenta esta muito longe de ser aquilo que objectivamente se conquistou!

Anónimo disse...

Embaixador, esclareça lá o senhor da boina.

Francisco Seixas da Costa disse...

Caro Manuel do Edmundo-Filho. Chamaram-me a atenção para a sua pergunta. Esclareço que leio apenas "de viés" os comentários, antes de os publicar. Apenas tenho como critério não deixar por aqui coisas numa linguagem inconveniente, para manter isto saudável. E só respondo "quando o rei faz anos", olhando às vezes os comentários, em conjunto, de uma semana. Finalmente, não me recordo de ter cortado algo seu. Mas, às vezes, porque faço a leitura num pequeno iPhone, às vezes isso acontece sem querer.

Anónimo disse...

De facto, é impossível que se expliquem os ataques de uns tantos poucos desafortunados portugueses aos "brancos" e "mulatos" que juntaram-se à luta de libertação de Angola frente ao jugo colonial português, quando é bem notável que a colonização do povo angolano caracterizado por assassinatos em massa (o que constitui um crime contra a humanidade que nunca ecoará nos corredores e salas do TPI), existência de milhares e milhares de homens, mulheres e crianças mantidos distante da educação e das condições humanitárias elementares, desrespeito total às liberdades do homem, exploração indevida dos recursos naturais e em proveito de uma reduzida elite branca, o que provocou um atraso social quase irrecuperável, era um mal que precisava ser extinto pelos filhos de Angola, sendo eles brancos, verdes ou cinzentos, e por todos aqueles que se identificariam com a nobre causa.

Lúcio Lara viverá para sempre no coração de Angola! Que a sua alma descanse em paz!

Manuel do Edmundo-Filho disse...

Obrigado, caro Embaixador, pelo seu esclarecimento. As dúvidas estão desfeitas. O erro terá sido meu. Reitero, assim, o meu pedido de desculpas.

José - uma homenagem paterna disse...

L.S. escreveu:
... sinto uma dor t.G. quando ainda hoje vejo portugueses e portuguesas a colocar o dedo quando vão receber a pensão por não saberem ler nem escrever.

caro LS. A mim também me dói ver, em pleno século XXI, tal estado de coisas. Mas repare que aqueles a que assisto, até têm diploma do 9º e 12º ano e alguns até um canudo, e nada posso fazer, para contrariar tal acto.

Porque em 2010, depois de ter enviado um mail aos meus camaradas de trabalho explicando os motivos a abandoná-los, fui bater com os costado num Tribunal ao qual um senhor Magistrado do MP me questionou se os canudos eram ilegais, ao que respondi-se estão em diploma, são legais.


Mas

peterpan disse...

E que dizer das centenas (pelo menos) de angolanos vítimas do massacre após o maio de 77 que Lúcio Lara supervisionou?

Anónimo disse...

Vivi na casa de Alvalade do Lucio Lara um ano e meio. As funções da mulher, da Ruth não eram assim tão insignificantes como refere. Ela criou um Centro de Documentação no MPLA que levantava e analisava diariamente toda a informação da imprensa sobre Angola. Os livros que foram editados com a Documentação do MPLA foram organizados pela Ruth. Esse conflito que refere ficou conhecido pela Maka do Quadro porque ofereceram um quadro satirico ao JES. Não estou de acordo quando diz que a lealdade do Lara não foi posta à prova, o afastamento dele começou nessa altura, depois da Maka do Quadro.

25 de novembro