O juramento de bandeira é aquele momento solene em que os soldados prestam fidelidade à instituição militar em que formalmente ingressam, no termo da instrução. No tempo em que por lá passei, há mais de quatro décadas, esse era um momento em que alguns nos confrontávamos com a contradição de iniciar o serviço numas forças armadas com cujos objetivos nos não identificávamos, ao tempo da ditadura e da guerra colonial.
Lembro-me do meu divertido "juramento de bandeira", na parada do quartel de Mafra, comigo e muitos outros a optar por apenas balbuciar o juramento, sem emitir nenhum som, o que tornou algo bizarra a cerimónia, para fúria dos nossos superiores, os quais, olhando para nós à distância, não distinguiam quem, de facto, não pronunciava audivelmente o compromisso.
Na entrevista que ontem dei ao "jornal i", surgiu numa "caixa", mas nada aparece no texto, uma referência a um discurso que pronunciei num juramento de bandeira na Escola Prática de Administração Militar, em inícios de 1974. Foi a jornalista Isabel Tavares que me suscitou a história, informada não sei bem por quem. Seguramente por falta de espaço, o episódio não surge no texto.
Eu era "oficial de ação psicológica" da unidade (além de instrutor, bibliotecário e diretor do jornal "O Intendente"...) e tinha a meu cargo os discursos no dia dos juramentos de bandeira. Decidi escrever um texto muito burilado e ambíguo, que ainda conservo algures, aliàs com um despacho de concordância prévia (que era essencial) do comandante da unidade. No texto, eu fazia uma série de "desafios" aos novos soldados, do género: "se acreditais que para o futuro de Portugal se torna imperativo esmagar militarmente quantos se opõem à continuidade da presença portuguesa nas suas possessões africanas, então deveis jurar a fidelidade que vos é pedida". E continuei com outras frases de natureza condicional similiar. Lembro-me que, antes de obtido o "imprimatur", apenas mostrei o texto ao então soldado-cadete António Reis, um amigo que viria a ter um papel destacado no 25 de abril e no período político subsequente, que chegou a duvidar que o texto "passasse".
No dia da cerimónia, li o texto com alguma apreensão, perante o silêncio pesado de toda a unidade e convidados, reunidos na ampla parada. Quando terminei, vi o brigadeiro chefe do serviço de Administração Militar levantar-se da tribuna e, à distância, ordenar-me: "Nosso Aspirante! Chegue aqui!" Um frio percorreu-me a espinha e atravessei aquelas dezenas de metros numa imaginável taquicardia. Subi os degraus do palanque, fiz a necessária continência e dei-me então conta da mão estendida do oficial general, que me dizia: "Quero felicitá-lo pela elevação do seu discurso!" E acrescentou outras amenidades, que toda a tribuna e os oficiais presentes ouviram. Sorrindo por dentro, fui juntar-me ao grupo de Aspirantes e Alferes que assistiam à cerimónia, alguns discretamente divertidos pelo equívoco com que eu tinha "levado" o brigadeiro. Recordo bem o comentário do Alferes Mário Viegas - esse mesmo, o ator e criador teatral, na imagem - que me disse, baixo: "quando o gajo te chamou, julguei que era para te dar voz de prisão..."
À cerimónia, seguiu-se um beberete. Notei que o comandante da unidade, o tal que havia dado o seu "visto prévio" ao texto, me olhava de soslaio. A certa altura, disse-me: "Estive a pensar melhor no seu discurso. É, de facto, um belo texto. Aqui ou na Checoslováaquia...". Fiz uma "cara de caso" e terei dito: "Não estou a perceber, meu comandante...". Ao que ele retorquiu, antes de me virar as costas: "Está, está!". Meses depois, quando participei na sua detenção, na manhã de 25 de abril, é capaz de ter-se lembrado do episódio.
6 comentários:
desde abrir a boca mimando as palavras sem nada dizer, até dizer o contrario ou gozar com o assunto, tudo sucedia num juramento.
de longe o coro do juramento ouvia se correcto pois a maioria dizia as palavras certas, localmente, no entanto, podiamos ouvir o companheiro ao lado dizer não juro nada, ou emitir baixinho um ão ão ão, ou interjeições fortes, etc
a chamada de venha cá seria de facto de assustar, já está, estou feito, pensaria.
acredito tambem que alguns superiores tenham percebido e gostado, afinal o descontentamento entre a oficialidade já começava a crescer, o 25a já estava a ser preparado, o está está a perceber do comandante da unidade é significativo...
Sr. Embaixador, ainda que mal lhe pareça, vou comentar o seu post (provávelmente o meu comentário nem será por si editado. O ilustre Embaixador não desconhecerá certamente que o juramento de bandeira ou juramento à bandeira é uma cerimónia durante a qual se jura, perante o estandarte nacional, lealdade e compromisso com a pátria ... e não com governo, seja em democracia ou em ditadura. Nesta conformidade apesar do excelente discurso proferido por Vexa, a "coisa" está mal explicada.
Afastada que estará a implementação formal de uma Ditadura Política como a que vivemos até 25 de Abril de 1974, é contudo cada vez mais perceptível que o caminho traçado e efusivamente promovido pelos sucessivos governos, com particular e mais vincada evidência no actual, é o do regresso acelerado aos níveis de vida absolutamente inaceitáveis que se verificavam há mais de 40 anos. Portugal é hoje, infelizmente e com muita mágoa o afirmo, um país claramente debaixo de uma Ditadura Financeira mascarada por uma Democracia formal, travestida, que apenas serve para que uns poucos, como antes do 25 de Abril de 1974, se apropriem daquilo que é de todos nós e nos subjuguem com as consequências que estão à vista de todos!
Dir-se-ia que já vinha de longe a sus vocação para "dar a volta" a militares distraídos. Ouvi falar num certo artigo sobre a Rodésia para a VTM nos idos de sessenta...
Caro Diogenes: não precisou de nenhuma candeia par ver o seu comunicado publicado. De facto, o juramento de bandeira devia ser o que diz. Mas não era. O governo de então, sem outra "legitimidade" que não fosse a força, tentou fazer identificar o país com a política colonial que prosseguia. Muita gente - eu incluído - não estava disponível para ser tutelada por quem não era sufragado democraticamente. Por essa razão, não aceitava a coreografia - patrioteira e não patriótica - que nos era imposta. Quanto à sua opinião sobre o regime subsequente, agredeça ao 25 de abril poder dizê-la abertamente, se receio de ter com isso a menor dificuldade. Nem sequer, como vê, de correr o risco de ver o seu comentário não publicado.
O que é um facto indesmentível é que o embaixador participou na cerimónia pública de juramento e isso ficou registado porque não há outro registo que diga que tenha havido uma contestação visível e entendida como tal. Que tenha feito figas atrás das costas, reservas mentais e discursos criptados para militar não entender direito e poder-lhe dar outro sentido, que interesse é que têm? Alguém acredita , ou acreditava, que um juramento público ,obrigatório e em massa, tem , ou tinha, qualquer espécie de importância e que vinculava os jurantes? Tratava-se sim, de um acto normal e corriqueiro de propaganda em que a enorme maioria das pessoas da minha geração participou e ao qual não atribuíu qualquer espécie de significado muito menos o de revolucionário de fisgas
João Vieira
Respeito a opinião do Sr. Embaixador Dr. Francisco Seixas da Costa. Efectivamente, a história que conta é um testemunho de vivência pessoal de alguém que não “estava disponível para ser tutelado, por quem não era sufragado democraticamente ”, entendo que por razões políticas e filosóficas, não se estivesse disponível para coreografias impostas. Presumo que não lhe tenha sido possível declinar o “convite” do Comandante” para elaborar e ler um discurso num juramento de bandeira, com uma coreografia - patrioteira e não patriótica. Na verdade no estado novo o conceito de Pátria tal e qual era fundamentado, implicava o juramento de uma Constituição com princípios não democráticos. Já a segunda parte do texto não era tão difícil de jurar, nomeadamente: “defender a minha pátria, Estar sempre pronto a lutar, pela sua liberdade e independência, mesmo com o sacrifício da própria vida”. Mas o que é Pátria? Qual a sua imagem? Portugal, como todos os povos dotados de uma singularidade plenamente manifesta na sua existência, é composto por uma nação, por uma república, por um estado e por uma Pátria. Temos as imagens da nação, da república e do estado. Falta-nos a imagem da pátria, que só o pensamento pode formar, Tem havido, decerto, múltiplas tentativas para formar essa imagem. Foram vãs a maior parte delas, por confundirem a pátria com a nação, com a república e com o estado e, em consequência, sobreporem ao pensamento livre as doutrinas, as ideologias, os interesses e os regimes. As outras tentativas limitaram-se ou a um breve enunciado, como a de Delfim Santos, ou a monografias sectoriais, como as de Ferreira Deusdado, Cabral Moncada e Joaquim de Carvalho, ou a esboços escolares, como a de Lopes Praça, ou a índices projectados das histórias das filosofias estrangeiras, como a de Lothar Thomas. Como alguém disse: “a Pátria somos nós”, agora e antes de 1974. Caríssimo Embaixador, a minha opinião sobre o regime subsequente, vale o que vale. Mas é matéria fática, observada por alguém que não obstante ter nascido no Barreiro, uma terra de resistência ao fascismo, soube sempre manter-se livre de “peias” partidárias.
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