terça-feira, agosto 05, 2014

Edouard Balladur

Entre o sol e a areia, ando a ler um livro de Edouard Balladur, "La tragédie du pouvoir", as suas memórias, quase dia a dia, sobre os últimos meses do presidente francês, George Pompidou, em 1974, ao tempo em que Balladur desempenhava o cargo de secretário-geral do Eliseu.

Edouard Balladur viria depois a ser ministro e primeiro-ministro, neste último caso ao tempo em que François Mitterrand era presidente da República, isto é, um período de "coabitação", de convivência entre um presidente e um primeiro-ministro oriundos de linhas políticas contrárias. Sobre esse interessante período, escreveu "Le pouvoir ne se partage pas", também uma memória das suas conversas com Mitterrand.

Entre 2009 e 2013, fiz parte do júri do "Prix des Ambassadeurs", um galardão literário que anualmente é atribuído a uma obra de um autor francês dedicada a temáticas de História política, quer interna francesa, quer de relações internacionais. O prémio é decidido por um júri de não mais de 20 embaixadores (na prática, só cerca de 12-15 participam), todos claramente francófonos, escolhidos entre os representantes diplomáticos bilaterais em funções em França, junto da UNESCO ou da OCDE, cooptados pelo júri em funções, à medida que se processa alguma "baixa", pela partida de um dos membros. Recordo que a minha entrada, em abril de 2009, foi apadrinhada pelos meus colegas checo e polaco, respetivamente Pavel Fischer (agora diretor político em Praga) e Thomasz Orlowsky (ainda hoje embaixador em França), dois queridos amigos. Um "petit comité" de membros da Academia francesa faz uma pré-seleção de uma dúzia de obras, sobre as quais o júri se pronuncia. As reuniões do juri, que têm lugar no "Cercle de l'Union Interalliée", conduz sempre a polémicos debates, que são apoiados em apresentações orais e relatórios escritos, sempre mais do que um sobre a mesma obra. A cada reunião, as obras são "retenues" ou afastadas, por consenso, processando-se no final um voto secreto, com base numa "short list" de três livros.

A par do colega belga, que tinha o imponente nome de Boudouin de la Kethulle de Ryhove, escolhi fazer a apreciação da obra de Balladur, "Le pouvoir ne se partage pas". Durante vários dias, li com atenção o livro, tomando bastantes notas. Balladur escreve bem, de forma não apenas escorreita mas muito elaborada, num francês culto que, contudo, não me impressionou o suficiente para daí extrair um ponto absoluto em favor do livro. Por isso, marcou-me mais o facto de, na maioria dos seus diálogos com o Mitterrand, acabar sempre por ser Balladur a ter a última palavra, sendo também evidente que, por mais de uma vez, as conversas "fugiam" dos assuntos desagradáveis para o primeiro- ministro. Sabendo-se hoje o que se sabe do antigo presidente, pareceu-me algo implausível que, não obstante a crescente debilitação física de Mitterrand, ele não tivesse a capacidade de se impor nas conversas com o seu primeiro-ministro. Balladur, aliás, mostra no livro uma contida sedução pela figura do presidente socialista, dando conta da "perfídia" com que Mitterrand foi alimentando a sua (já então evidente) ambição de lhe suceder, estimulando uma emulação com Jacques Chirac, que aliás acabaria numa inimizade aberta. Considerei, por isso, que o livro não tinha méritos literários suficientes para ultrapassarem o que entendi ser uma construção suspeitamente "biaisée" em favor da figura do autor, cuja memória demasiado "seletiva" me parecia evidente. Para ser mais claro: parecia um livro "sobre" Balladur, um pouco "à custa" de Mitterand.

A apresentação dos nossos relatórios, algo contrastantes, provocou uma larga discussão. Sem negar os indiscutíveis méritos da obra, eu entendia que ela não devia ficar na "short list". O meu colega belga era de parecer diametralmente oposto. O presidente do júri, o embaixador congolês e grande figura da francofonia Henri Lopes (antigo primeiro-ministro do seu país, embaixador em Paris desde 1998!), bem como o académico Alain Decaux (que, semanas antes da minha entrada, havia sucedido ao histórico Maurice Druon, que não tive o privilégio de conhecer), viram-se em dificuldade para superar o cordial dissídio instalado, tanto mais que, do lado da Academia, surgiu um apoio forte à obra, por parte de Eric Roussel, um prestigiado biógrafo, que vim depois a saber ter sido o responsável pela pré-seleção da obra de Balladur. "To make a long story short", lá levei a minha avante e a obra de Balladur foi "non retenue". Mas fiquei sempre na dúvida sobre se isso não teria sido injusto.

Agora, ao ler a memória de Balladur sobre Pompidou, ao notar a constante "magnificação" do seu papel nas decisões e opções presidenciais, bem como o mesmo estilo, muito culto mas sempre e apenas na soleira do brilhantismo, fiquei mais confortado pelo destino que a sua anterior obra teve no "Prix des Ambassadeurs".

Mas - note-se! - o livro merece ser lido, porque se trata de um curioso "tratado" sobre as relações entre um primeiro-ministro e um presidente que se confrontam e vivem um quotidiano de tensão política, mais ou menos surda.

Um dia, o então primeiro-ministro José Sócrates passou por Paris, para um encontro com o presidente Sarkozy, de onde partiu depois para Bruxelas, de comboio. À despedida, à entrada na carruagem, ofereci-lhe o livro, envolvido em papel, com a recomendação (que ele, no momento, não entendeu), de não abrir o embrulho diante dos jornalistas que o acompanhavam. Num tempo em que as suas relações com Cavaco Silva já iam de mal a pior, apresentar-se perante a imprensa com um livro que tinha por título "O poder não se partilha" seria, seguramente, motivo para muitos... títulos!

3 comentários:

Anónimo disse...

E Balladur está em maus lençóis.. A Justiça francesa suspeita-o de ter recebido comissões ilegais durante a sua campanha eleitoral num processo complicado ligado à venda de armamento ao Paquistão. O seu ministro da Defesa, François Léotard, também é suspeito, e o do Orçamento, Nicolas Sarkozy, teve um papel ainda pouco claro.
Um abraço. JPGarcia

Defreitas disse...

Li o livro. A imagem de Luís XV com a qual o "Canard Enchaine" ilustrava Balladur, ou "la chaise a porteur" , correspondiam bem a realidade do homem. Pretensioso e algo traiçoeiro, o amigo de trinta anos de Chirac também tem contas a fazer com a justiça. As fragatas de Karachi e o financiamento da sua campanha eleitoral ainda não foram julgadas pela justiça.
Para mim, a imagem mesmo do politico desprezível.

patricio branco disse...

interessante cronica sobre esse prix des ambassadeurs em cuja lista devem figurar curiosas obras, pois vou ver, desde quando existe, que obras escolheu para premiar, etc

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...