segunda-feira, agosto 11, 2014

Memória da tropa, depois de abril

Ontem, falei aqui de um juramento de bandeira ocorrido nas vésperas do 25 de abril, na Escola Prática de Administração Militar (EPAM). Hoje, conto algumas coisas aí passadas imediatamente após o golpe de Estado.

Convém dizer que, contrariamente ao que tudo faria prever, o ambiente de harmonia política entre alguns oficiais milicianos, entre os quais eu me incluía, e o novo comando da EPAM não durou muito tempo. Por razões políticas e motivos militares.

As razões de natureza política prendem-se com as dúvidas que, desde a primeira hora, o texto do "programa" do MFA suscitou em alguns de nós. Em causa estavam as equívocas orientações sobre a política colonial e o estranho "wording" do texto sobre o associativismo político permitido. À época, desconhecíamos, por completo, que essa ambiguidade fora produto do compromisso, logo no "posto de comando" da Pontinha, entre a vontade do MFA e as posições de Spínola e da ala mais conservadora da recém-indigitada Junta de Salvação Naciinal.

Logo no dia 26 de abril, numa reunião ao final da tarde com o novo comando e os oficiais do quadro, tive o ensejo de suscitar, em nome de alguns colegas milicianos (outros, talvez a maioria, não colocavam grandes objeções ao curso das coisas), as nossas dúvidas e a leitura de que se tratava de um programa inaceitavelmente "recuado". Que o era veio a ser confirmado pelos factos: o processo descolonizador aceleraria quase de seguida e a realidade das ruas veio dar aos partidos a força e a dignidade que o "programa do MFA" ainda hesitava em conferir-lhes.

Algo se agravaria, contudo, algumas semanas depois. A recusa de dois milicianos de integrarem uma força militar que se iria opor ao movimento de greve nos CTT levou à prisão desses colegas, originando mesmo uma manifestação pelas ruas de Lisboa, sob o lema "Anjos, Marvão, libertação", que foi realizada não obstante a sua proibição e onde fiz questão de participar. Na nossa unidade, de onde eles eram originários, o ambiente de revolta era grande e muitos de nós não deixámos de o potenciar.

Por esses dias, ocorreria um juramento de bandeira, o primeiro após o 25 de abril. Embora a "Ação Psicológica" tivesse sido abolida (o que me deixava com muito pouco para fazer), a tarefa de orador coube-me de novo mim, muito embora a ninguém tivesse passado já pela cabeça "visar" superiormente o texto que eu ia escrever e ler. O que foi pena: o meu discurso acabou por ser de uma inaudita violência, contestando orientações e práticas do ainda jovem MFA. Lembro-me de nele ter perguntado, ironicamente, coisas tão insensatas como se, às forças armadas, passaria a caber o papel de se substituir às estruturas representativas da ditadura, na gestão violenta dos conflitos laborais. E dei também fortes "bicadas" no que considerei ser a "falta de vontade política" de fazer avançar o processo de descolonização. No geral, o texto era de uma inaceitável pesporrência. O meu radicalismo de então vinha ao de cima...

Não seria apenas o comandante da unidade a ficar desagradado comigo - o coronel Marcelino Marques, um homem excelente, a quem nunca cheguei a pedir a devida desculpa por toda aquela minha infantilidade. Dias depois, eu seria chamado à direção do Serviço de Administração Militar, bem como ao Estado Maior do Exército, onde fui objeto de duas repreensões orais sucessivas. A circunstância do "Diário de Notícias" ter publicado uma reportagem sobre o assunto e do "República" ter respigado desse texto um extrato que considerou uma aberta defesa da repressão (eu próprio fui ao jornal falar com o autor do texto, Mário Mesquita, para esclarecer o equívoco), num tempo complexo e já tenso como o que então se vivia, criou à minha volta um ambiente crescentemente desagradável. A situação agravou-se ainda mais em meu desfavor quando contestei abertamente, com outros colegas, uma punição militar decidida pela hierarquia da unidade a um soldado-cadete, já não me recordo porquê. Fui então convocado pelo comando da unidade e foi-me feito um ultimato: ou eu me comprometia a entrar "na linha" (no que subsistiam poucas esperanças) ou saía da unidade pelo "meu pé". Se continuasse com a atitude que vinha a ter, seria expulso. Optei pela segunda hipótese e foi assim que vim a ser colocado na "comissão de Extinção da ex-PIDE/DGS e LP", no início de junho de 1974. Fiquei colocado, por uns dias, no estabelecimento prisional de Caxias.

Desde então, e até passar à disponibilidade, em Agosto de 1975, ainda viria a ser assessor da Junta de Salvação Nacional (até à extinção desta, em fins de setembro de 1974), a integrar a 2ª divisão do Estado-Maior General das Forças Armadas (até à suspensão desta, em fins de abril de 1975) e a ser "fundador" do SDCI (Serviço Diretor e Coordenador da Informação) do Conselho da Revolução (de onde me demiti, em julho de 1975). Pelo meio, fui ainda relator da Comissão de inquérito ao motim dos agentes da PIDE/DGS (agosto/setembro de 1974), efémero integrante da "comissão ad hoc para investigar os acontecimentos de 28 de setembro"(outubro de 1974) e participei em várias Assembleias do MFA. Há um mistério que já desisti de resolver: explicar como me foi possível, ainda dentro desse mesmo período de um ano, fazer exame de uma cadeira universitária que tinha em falta e, após isso, concorrer, estudar e ser aprovado nas exigentes provas de acesso à carreira diplomática. Ah! e manter, em todo esse tempo, um emprego diário de quatro horas presenciais na empresa de publicidade Ciesa-NCK, fazer locução para filmes na "Cinegra", participar de forma razoavelmente ativa no Movimento da Esquerda Socialista (MES), bem como escrever e editar, com um amigo, um livrito chamado "O Caso República", aliás um dos grande insucessos editoriais da época. Quanto temos vinte e tal anos, de facto, tudo é possível.

3 comentários:

António Pedro Pereira disse...

Caro Senhor Embaixador:
Brilhante prova dos nove (à posteriori) da famosa frase de Willy Brandt: «Todo o esquerdista se transformará num bom social-democrata» (cito de memória, procurando apenas transmitir a ideia).
Cumprimentos
M. S.

Anónimo disse...

Sabemos, também, como nalguns casos, se conseguiam objetivos com alguma facilidade, quer em empregos, quer em ascensão universitária...Assim era naqueles tempos!

J.A. Ferrão Morgado disse...

Esse primeiro Juramento de Bandeira após o 25 de A bril, na EPAM, terá sido o meu! Não me recordo do discurso, ams afirmo que desde então continuo a ouvi-lo e agora a ler todos os seus postos com crescente interesse!
Bem haja,meu Alferes.

Agostinho Jardim Gonçalves

Recordo-o muitas vezes a sorrir. Conheci-o no final dos anos 80, quando era a alma da Oikos, a organização não-governamental que tinha uma e...