sexta-feira, fevereiro 08, 2013

A dona Maria Garcia

A dona Maria Garcia era uma mulher alta e imponente, de óculos grandes, passo pesado e olhar perscrutante. Sobre a sua vida amorosa, quando jovem funcionária, corriam lendas pela casa, dizendo-se que quebrara vários corações diplomáticos. Quando a conheci, ao tempo em que eu dava os meus primeiros passos pelos corredores das Necessidades, era já uma senhora idosa, sempre com um inconfundível e impositivo perfil. 

Rigorosa e implacável nas suas funções, a dona Maria Garcia era tida como um pilar na área da administração da casa, onde coadjuvava essa outra figura mítica da carreira, o embaixador Humberto Morgado, durante quase duas décadas diretor-geral desse setor. Dizia-se que, nesse "quarto andar", nada se fazia de importante que não passasse pelo crivo da dona Maria Garcia. E, efetivamente, havia sinais claros da sua competência profissional.

Em inícios de 1979, fui colocado na nossa embaixada em Oslo. Como sempre acontece nas transferências - e, por maioria de razão, na primeira saída para o estrangeiro - há toda uma série de papelada para tratar. Eu trabalhava dois andares abaixo e, com alguma premeditação, decidi organizar todo esse expediente administrativo... à distância. Assim, pedia os formulários, preenchia o que tinha a preencher e ia mandando entregar as coisas nos diversos setores administrativos, furtando-me sempre a subir ao "quarto andar". Fui bem sucedido em todas essas diligências, até um dia.

Informaram-me, a certo passo, que tinha de me deslocar a uma repartição, para assinar um determinado documento. Uma vez mais, inventei um pretexto qualquer e mandei perguntar se podia assinar o documento no meu serviço, devolvendo-o posteriormente. Foi então que recebi uma chamada telefónica da dona Maria Garcia, com quem eu nunca tinha trocado uma palavra: "Ó doutor! Soube que pediu para que lhe enviássemos um papel para aí o assinar. O doutor não pode deslocar-se cá acima? Com certeza, não julga que vai ser o primeiro diplomata que consegue partir para o estrangeiro sem passar pelo meu gabinete...". Fiz-me "de fino" e respondi-lhe: "Senhora dona Maria Garcia. Eu tinha precisamente a intenção, após concluído todo o expediente burocrático, de passar por aí a cumprimentá-la, antes de partir para a Noruega". Do lado de lá da linha, ouvi um elucidativo: "Pois, pois..." E lá fui eu, nessa tarde, um pouco embatucado, passar pelo pequeno gabinete a partir do qual a dona Maria Garcia dominava a gestão do MNE.

Conta-se que, chegado o momento da sua aposentação, a partida da dona Maria Garcia provocou uma crise na administração da casa, tendo sido necessário, para grande gozo da senhora, solicitar-lhe que viesse ajudar benevolamente, durante algumas semanas, as pessoas que tinham ficado a substituí-la.

Poucos anos mais tarde, recordo-me de a ter vislumbrado, ainda com a imponência física que a caraterizava, a descer a Infante Santo. A dona Maria Garcia deve ter desaparecido há já bastante tempo. Era dessa nobre raça de grandes funcionários de que a administração pública portuguesa se alimentava. 

14 comentários:

Anónimo disse...

(...) grandes funcionários DE que a administração (...)

Helena Sacadura Cabral disse...

De facto, na Administração Pública há sempre uma D. Maria ou um D. José para comandar as operações.
Nem a República lhes levou a pena!

Unknown disse...

De facto, a D. Maria Garcia, que já deixou este Mundo, encabeçava aquele grupo de funcionárias de elite que faziam funcionar o MNE como uma máquina bem oleada. Não era muito simpática, nem tinha um feitio fácil, mas dizia o que tinha dizer a quem tivesse de ser, por muito alta que fosse a sua posição na hierarquia. E como sabia sempre do que estava a falar e era reconhecido que a sua preocupação não era defender A, B ou C, mas o interesse do Estado e fazer cumprir a Lei, era ouvida com atenção e chamada a participar mesmo em reuniões por sua natureza muito restritas, como as do Ministro com o Secretário-Geral para fazer o movimento diplomático, garantindo que do ponto de vista administrativo tudo estivesse nos conformes. Um exemplo claro da importância de se pugnar por uma Administração de alta qualidade, que se sinta apoiada e respeitada, para poder dar o melhor de si própria ao Estado e aos cidadãos. VV

patricio branco disse...

especies que já não existem, bons conhecimentos profissionais, dedicação ao serviço, autoridade e capacidade de mando e coordenação, presença, são figuras insubstituiveis, de facto, são como dito pilares dos serviços onde estão.
contam me que no protocolo havia outra com as mesmas caracteristicas, fundamental no serviço.
especimes que já pouco existem numa administração publica onde o rigor é cada vez menor e a eficiência falha cada vez mais.

Anónimo disse...

Como eu compreendo este artigo nos tempos que vamos vivendo.
J. Seixas

EGR disse...

Senhor Embaixador:no mundo profissional em que me,durante decadas me movimentei,conheci em varias areas, funcionarios da estirpe da senhora referida no post;eram,sob todos os pontos de vista, pessoas de excelencia.
Tenho a sensação, e até alguma confirmação, que a administração está a ser decapitada,e não creio, que tal esteja a acontecer inocentemente.

Isabel Seixas disse...

Conheço funcionárias assim, bem vivas, eventualmente descendentes do profissionalismo da Senhora referida, D. Maria Garcia.

Anónimo disse...

No Protocolo havia a Guiomar e na POI ( e depois na DGPE ) a Madalena Oliveira. Ambas eram muito inteligentes, sabiam perfeitamente o que faziam, tinham muita pinta e nunca deixaram que os seus calos fossem pisados. Tinham o respeito dos que estavam em cima e dos que estavam em baixo. Nos meus quatro anos de Secretaria de Estado,foram as melhores funcionárias com quem trabalhei, Desses tempos, de há mais de vinte anos, só ainda está no Protocolo a fiel Margarida, que muito me ajudou, particularmente em siuações complicadas. Presto homenagem às três. Bons tempos!
Joâo Pedro Garcia

A. disse...

Era um verdadeiro dragão, de guarda à caverna do quarto andar e às normas da função pública.
À sua volta havia uma aura de temor reverencial , não só da parte de colegas e subordinado(a)s mas também de diplomatas mais (e alguns menos) jovens.
Mesmo os embaixadores e diplomatas mais antigos lhe testemunhavam um respeito que não era muito repartido pelos restantes funcionários.
Lembro-me da sua passagem à reforma.

Anónimo disse...

A passagem à reforma
Aprendi que não há pessoas insubstituíveis. Nos últimos seis meses antes de passar à reforma exprimi com muita clareza que passava à indisponibilidade e que nos primeiros doze meses deste estado "civil" não haveria nada p'ra ninguém. Depois renovei aquele periodo por mais doze meses e confesso que foram dois anos de uma liberdade e descanso extraordinários. Depois retomei alguma atividade na realização de ações de voluntariado. Mas quanto é bom poder beneficiar desta plena liberdade!
Assim não compreendo muito bem porque é que "a partida da dona Maria Garcia provocou uma crise na administração da casa, tendo sido necessário, para grande gozo da senhora, solicitar-lhe que viesse ajudar benevolamente, durante algumas semanas, as pessoas que tinham ficado a substituí-la."
A Senhora não "preparou" muito bem a sua saída...
José Barros

Jose Tomaz Mello Breyner disse...

Senhor Embaixador

Mais uma interessante crónica. Gostei muito de o ter conhecido pessoalmente, e espero que tenha gostado do seu almoço.

Um abraço

Anónimo disse...

O brio profissional como o da !dona Maria Garcia" está em vias de extinção para mal da Administração Pública e mesmo do sector privado (que anda a deixar muito a desejar!).

Isabel BP

Guilherme Sanches disse...

Hoje ao rever posts e comentários, como faço habitualmente, verifico que aqui não está publicado um textinho que a propósito escrevi.
Ou foi censura - o que não acredito - ou foi falha técnica.
Nesta certeza, é pena ter passado a oportunidade, mas mesmo assim, como ainda aqui o tenho, faço o seu reenvio.
***
Permitam-me todos que sobre este texto me estenda um pouco mais do que se calhar devia, mas esta é a minha zona de conforto, e não quero perder a oportunidade, também porque para o seu autor, estas coisas começam a ser apenas recordações.
E já agora, desculpar-me-á, esta roda de ilustres e cultos comentadores, que discorde da perspetiva muito institucionalizada pela qual afinam quase todos os comentários até agora publicados.
Numa empresa moderna, há três espécies de pessoas que sendo do agrado de alguns gestores, são para mim o pior que qualquer empresa pode promover – os “yes men”, os imprescindíveis e os que já fazem parte da mobília.
Os primeiros porque não trazem nada mais do que sorrisos e acenar afirmativos de cabeças, mesmo perante as maiores barbaridades que um dito “superior” lhes proponha.
Os terceiros, porque sempre fizeram assim, sempre se fez assim, e completamente avessos a mudanças e evolução, tentam boicotar tudo o que alguém mais atualizado ou qualificado queira introduzir.
Os segundos, os imprescindíveis, aqui visivelmente quase idolatrados pelas suas infalíveis capacidades, invariavelmente cultivam uma egoista eficiênciência, subjugadora de chefes e colegas que neles alimentam confortável comodismo, mas que representam também uma elevada dependência para as empresas ou instituições, pela fragilidade que a exposição a uma simples gripe ou diarreia pode revelar.
Eficiências assentes em donas Marias Garcia, não revelam mais do que a incapacidade de criar estruturas que previnam os erros que todos cometemos, e coloquem num espírito de equipa uma eficácia profissional coletiva bem mais eficaz do que alguém que a todos subjuga, como o texto diz, “grandes funcionários” de que não só a administração portuguesa se alimentava, mas também empresas que infelizmente são notícia de telejornal, citando de novo o texto, provavelmente “para grande gozo” desses imprecindíveis.
No circo, o trapezista pode ser o melhor do mundo, mas sem rede (leia-se estrutura de proteção), pode sofrer um acidente grave. E sem trapezista, primeiro não há espetáculo, e a seguir não haverá circo...
Um abraço

Isabel Seixas disse...

Gostei muito, até pela lucidez e promoção do espirito de trabalho em equipa, do comentário de Guilherme Sanches.

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