quarta-feira, abril 08, 2020

O desabafo do Eugénio


Eugénio Lisboa é, de há muito, um amigo. Escritor, crítico e homem desassombrado, tem sobre a vida, e sobre as coisas que ela nos traz, opiniões sempre claras. Não se esconde por detrás das palavras, usa-as como armas da crítica, na fórmula de um clássico. Diz o que pensa, o que é muito evidente nas memórias com que, desde há alguns anos, nos tem recordado tempos e pessoas do seu passado rico e diverso.

Nestes dias de chumbo, em que a poesia e a graça fazem parte do quotidiano de todos nós, mandou-me este curto exercício de estilo.

Ele aqui fica, com um abraço para ele e votos de muita saúde, para que o sol, que não tardará, o possa fazer voltar a sentar, com conforto, nos únicos bancos em que sempre podemos manter confiança.
VERSINHOS DE UM POETA COM ALGUMAS DIFICULDADE DE CONJUGAÇÃO
O Trump, fodido, irá-se
embora se a peste vá-se.
Que chatice se ele ficasse
no governo e nos lixasse!
Que bom se ele se fixasse
na sua Torre e se calasse!
Se o Almada ainda falasse,
diria que o Trump, sem classe,
cheira mal da boca – hélas!

Eugénio Lisboa,

Com um muito humilde pedido de desculpas
por isto não ser tão bom como, digamos, os Lusíadas!

Os dias da imprensa


Há uns tempos, em Vila Real, observei um jovem, na casa dos 20 anos, a comprar dois jornais. Porque ver alguém daquela idade sobraçar imprensa em papel é, por estes dias, uma imagem quase de ficção, ousei perguntar-lhe se ia ler aquilo que acabava de comprar. Olhou-me com alguma estranheza e explicou que os jornais eram para o avô. Nem sequer eram para o pai, dei comigo a imaginar.

Esse avô, tal como eu, era, com certeza, alguém que gostava de folhear a imprensa, de perceber, pelo lugar onde a notícia “sai”, a sua importância relativa. Olharia primeiro, como toda a gente, a página de rosto, depois talvez a terceira ou a última e, tal como a psicologia tradicional aponta, daria, provavelmente, mais importância àquilo que vem nas páginas ímpares do que nas páginas pares - numa das quais, no entanto, o leitor está a fazer o favor de me ler, neste momento, porque quem gosta da opinião sabe onde procurá-la.

No bairro onde vivo, em Lisboa, conseguir comprar um jornal é uma tarefa que exige já uma certa “expertise” – e falo dos tempos de vida normal, não deste confinamento, que nos faz perceber melhor o que deve ser estar com “residência fixa” ou de pulseira eletrónica. As escassas tabacarias, quase já só nos bairros adjacentes, fecham cedo, em algumas certos jornais ou revistas esgotam-se rapidamente, em outras há títulos (como este JN) que nunca surgem à venda. Repito: começa a dar já algum trabalho comprar imprensa em papel.

Não quero parecer catastrofista, mas, ainda antes desta crise, era óbvio que a imprensa escrita estava a perder popularidade - imagino que com exceção da que alimenta o sectarismo desportivo ou a especializada no “voyeurisme” do crime, na vida social dos “famosos”, nos desastres e em tudo o que “corre mal”. E, mesmo essa, ao que consta, estará também a declinar, substituída pelo comodismo da imagem televisiva repetida à exaustão. Irá esta crise ser-lhe fatal?

Sinto-me um utente viciado em plataformas de informação em declínio. Comecei já a migrar para o “on-line”, embora não deva ser exemplo maioritário nas pessoas da minha faixa etária. Uso iPad e iPhone e percebo o truque dos títulos preparados para os “clickbaits”, que dão aos jornais números para encantar os anunciantes. Não tenho hoje falta de notícias, tenho mesmo notícias a mais, o que é diferente de ter melhor informação. A informação são as notícias trabalhadas por alguém que nos dá plena garantia de isenção. Nos dias que correm, estou a perder esses mediadores de confiança.

terça-feira, abril 07, 2020

Hume


Havia lá por casa, em Vila Real, um livro com o título “Tratado da Natureza Humana”. Era uma tradução francesa de uma obra de David Hume, um importante filósofo do século XVIII. Nunca li o livro, confesso, embora, muitos anos mais tarde, tivesse vindo a conhecer a essência do pensamento do autor. O meu pai tinha-o herdado do meu avô, mas também nunca me pareceu muito interessado nele.

Um dia, tinha eu aí uns oito ou nove anos, perguntei-lhe: “Este livro é sobre quê? Quem o escreveu?” O meu pai, sem que eu lhe tivesse detetado a ironia, disse: “É de um filósofo. Foi o homem que inventou a pedra Hume...” E passou adiante. Eu registei.

A pedra Hume era uma massa translúcida que via numa prateleira da casa de banho e que o meu pai usava para estancar o sangue, em caso de pequenas feridas na feitura da barba.

Muitos anos mais tarde, numa ida a Vila Real, ao ver o livro numa estante, quando já sabia bem quem era David Hume, confrontei o meu pai com a resposta que me tinha dado. Já não se lembrava. Os miúdos fixam estas coisas, os adultos não. Rimo-nos.

Hoje de manhã, alguém me ouviu dizer, irritado com um inesperado corte na pele, ao fazer a barba: “Onde é que anda a pedra Hume?”. “A pedra quê?”, foi a resposta. Cá em casa não há nem nunca houve pedra Hume. Há uns sticks envolvidos num papel vermelho, com um nome comercial qualquer. E, como é típico destas coisas de utilização rara, para emergências, nunca estão num sítio visível quando delas necessitamos.

Enfim, coisas do quotidiano, em dias de confinamento. Prometo solenemente duas coisas: não escrever um diário deste tempo do vírus e, em absoluto, não comprar nenhum livro inspirado no tema. Já basta o que basta, e não é pouco!

A outra quarentena

Bem pode Rui Rio tentar que o seu PSD mantenha atitudes de Estado! Alguns dos seus parceiros de partido, em especial no Twitter e Facebook, esforçam-se em encontrar nichos de polémica com o governo, para não “perderem a mão”, aguardando ansiosos o fim da quarentena da unidade.

segunda-feira, abril 06, 2020

A vida de um amigo


Manuel Domingos Augusto é, desde há muitos anos, um amigo muito próximo. Conhecemo-nos em Luanda, em 1982. Era, à época, o meu contraparte angolano no Ministério da Cooperação. Com ele, num tempo muito difícil das relações bilaterais, estabeleci um entendimento que, sem pôr em causa a defesa que cada um de nós fazia do interesse de cada um dos nossos países, tinha uma componente pessoal, que começou marcada pela cordialidade e acabou numa sólida amizade. Desde então, celebrámo-la pelo mundo, onde, a espaços e nos mais variados locais, nos íamos encontrando. Ele fez uma carreira brilhante, primeiro na diplomacia, depois na política, onde desempenhou vários cargos, o último dos quais o de Ministro das Relações Exteriores, posto que ocupou até hoje. Há umas semanas, aqui em Lisboa, tivemos mais um longo e agradável almoço a dois, num lugar com a vista que a imagem mostra. Outros haverá no futuro, como já combinámos! Já escolhi o vinho, Manel!

Apoio à imprensa

Eu também gosto da ideia de se apoiar o jornalismo, isto é, ajudar quem relata os factos com rigor, quem ouve sempre de forma equilibrada ambos os lados de uma polémica, quem não confunde notícias com opinião.

Não me importo de ajudar, com os meus impostos, aqueles jornais, televisões ou rádios onde a regra é o pluralismo equilibrado das vozes (e não o facto de ter por lá um ou dois do “outro lado”, para fingir diversidade), que são algo mais do que veículos disfarçados para a propagação de projetos ideológicos ou partidários.

Mas só esses!

domingo, abril 05, 2020

Saúde


Gostei muito da entrevista dada pela ministra da Saúde, Marta Temido, à RTP. Confirmou-me a excelente impressão que, desde o primeiro momento, tenho desta ministra.

Há uma realidade muito simples, que nunca vi dita ou escrita: nenhuma pessoa morreu em Portugal, por virtude deste vírus, por ausência de assistência adequada no SNS, nomeadamente por falta de ventiladores. ‬

O discurso da rainha


Vi, há minutos, o discurso da rainha Isabel II ao país. Estava lá o essencial. Quem escreveu o texto fê-lo com uma grande atenção aos pormenores, sem gongorismos e numa linguagem escorreita e muito adequada. A mensagem tinha um tom muito profissional, bem à altura da grande profissional da representação simbólica do poder que aquela senhora é. Pela primeira vez num seu discurso real - e lembro-me de todos os anteriores, desde aquele que ela mencionou, nos anos 40 - houve um “editing” de imagem, intercalando neste caso cenas do combate ao vírus. O Reino (“so far”) Unido do futuro deve ter gostado: modernidade qb e tradição com conta peso e medida. Como gostou, com certeza, daquela imensa serenidade, a roçar, como sempre, uma aparente frieza - menos “blood, sweat and tears” e mais “we shall overcome”. Até nisso, o discurso foi britânico. Enfim, foi uma boa peça, de alguém que falou com a autoridade da muita História que já passou por ela, onde não faltou a inevitável referência à Commonwealth, embora, neste caso, a diversidade da dita impeça qualquer juízo valorativo de eficácia sobre o modo como aí terá sido sentida a mensagem. Há ainda algo que me marcou: a pompa com que todas as televisões marcaram a entrada em cena da soberana. Persiste por ali um respeito, que faz parte da coreografia que sustenta a monarquia, e que uma vez mais ficou bem visível. Mas quando esta senhora morrer, e ela “já não vai para nova”, ou há uma imensa inteligência e bom senso da parte de quem lhe suceder, ou esta “magia” dificilmente sobreviverá por muito tempo.

Curados


São mais difíceis de encontrar, mas felizmente ainda vai havendo.

Bancos


Nestes tempos de crise, contamos com os nossos bancos.

Mais um livro?


Há dias em que sinto a tentação de comprar mais um livro. Mas há por aí tantos! E a bom preço, caramba! Mas eu só compro quando confio no autor. E, neste caso, não sei...

E as guerras?


E ninguém nos diz nada sobre as guerras que andam por aí? Ou o vírus também as parou?

A minha rua


Havia dias em que a minha rua, a rua de São Domingos, parecia uma pista de corridas. Ao verem todo aquele espaço livre, alguns carros desciam em velocidade por ali abaixo, para raiva de quem andava pelos passeios e se sentia ameaçado por esse movimento desaustinado.

Os elétricos, esses, tinham uma velocidade mais constante e dava gosto vê-los por ali, como uma memória amarela de uma certa Lisboa que gostamos de não ver desaparecer. Às vezes, muito raras, também eles perdiam a tramontana e, como há tempos aconteceu, um deles foi-se “esbardalhar” lá ao fundo, saindo ”pela paisagem”, sem conseguir curvar para a Garcia da Horta.

Tudo isso se reduziu imenso, a quase nada, nos dias de hoje. Os carros andam ao ritmo do “lá vai um”, como se diz na minha terra. Os elétricos, que fazem um ”fim-de-semana inglesa” (alguém se lembra do que isto era?), também rareiam, mesmo naqueles dias a que chamávamos úteis. Hoje, Lisboa, e nela a minha rua, vive, de quando em vez, atravessada por motos da “Uber-eats” e da “Glovo”, nas entregas casa a casa. Mas, nem por isso elas deixam de acelerar pela minha rua abaixo.


“By appointment”


A sua primeira visita a Portugal tinha sido a convite do Bloco de Esquerda. Se isso não dizia tudo, dizia bastante. Jeremy Corbyn nem parecia ser um mau homem mas, desde o primeiro instante que apareceu e se fez ouvir, toda a gente percebeu que era, em absoluto, “unelectable”. Nada que a esquerda britânica não tivesse experimentado já no passado, com gente igualmente estimável, embora de qualidade muito superior, como Michael Foot.

Alguns dos meus amigos, mais “esquerdalhos”, virão logo à carga: “Mas então, a esquerda britânica, para chegar ao poder, tem obrigatoriamente de ser titulada por figuras da sua “direita”, como Tony Blair?“.

Para quem é democrata e não vive com os pés bem assentes no ar, a resposta é dada sempre pelo eleitorado. Corbyn, que teve à sua frente um dos momentos mais desastrosos do Partido Conservador, saído de líderes tão medíocres como Cameron ou May, conseguiu perder uma das oportunidades de ouro do Labour, em décadas, pela sua clamorosa incapacidade na gestão do processo do Brexit. Pior era impossível! Pusilânime, equívoco, roçou frequentemente o oportunismo mais primário.

Era evidente que Corbyn nunca seria primeiro-ministro do Reino Unido. Agora, no seu currículo, pode registar um milagre: ter sido o principal responsável pela eleição de uma figura tão caricata como a que está hoje em Downing Street. Se os conservadores dominam largamente os Comuns, é graças a ele, “by appointment to Boris Johnson”.

sábado, abril 04, 2020

Os deuses e os homens

“Os deuses abandonaram os seus crentes. Só a ciência - os médicos, os enfermeiros, os cientistas, os investigadores - pode salvar a Humanidade, não a fé. Até disso se fez prova agora”. Miguel Sousa Tavares, no Expresso. Não é preciso dizer mais ou, como diriam os matemáticos, QED

Tarde de sábado


Os livros da vi da (7)


sexta-feira, abril 03, 2020

Segredos do bairro

Vamos lá ser verdadeiros: a Lapa está longe de ser um bairro onde se encontrem muitos restaurantes. A menos que possamos dar uma saltada à Madragoa ou a Santos, a oferta é bastante escassa.

Por isso, foi com alguma surpresa que, por estes dias, nos demos conta da existência, nestas bandas, de um espaço, com poucos lugares, num ambiente familiar e simpático, sem grandes exigências de “dress code”, onde se come muito bem. E a dois passos de onde estamos.

Ah! E é um lugar que cumpre todas as regras de higiene que os tempos exigem. Mas não estaremos a quebrar as regras de confinamento? Bom, confiem no meu bom senso!

Só para lhes dar um “cheirinho” do lugar que descobri, e sobre cuja “geografia” lamento não poder dar grandes pormenores, porque o segredo é a alma do negócio, sempre posso dizer que o menu do jantar de hoje no tal sítio foi um explêndido salmão fumado - com o indispensável “sour cream”, endro, ovo cozido e limão, Seguiram-se umas pataniscas de se lhe tirar o chapéu (nem muito massudas, nem demasiado espalmadas, bem secas do óleo), com um belo arroz de tomate. Como sobremesa, havia uma receita nova de torta de maçã, coberta de canela. Optámos por acompanhar a refeição com um branco, um verde alvarinho da Casa da Calçada, bem fresco. Com o café, terminei com um Johnny Walker Green Label. (Depois digo se precisei de Gaviscon).

Para os mais curiosos, informo que o restaurante se chama “Chez Nous”, mas nada tem de cozinha francesa, ao contrário do que o nome pode sugerir. Aconselho uma consulta ao site do lugar: www.estejamquietosemcasa.com.

António Arnaut


Morreu há dois anos. Foi ele quem “inventou” o Serviço Nacional de Saúde (SNS), que, ao longo dos anos, muitos tentaram desqualificar e combater. Chamava-se António Arnaut. Talvez mereça algumas das palmas que por esta altura dedicamos aos profissionais de saúde.

Soneto mal guardado


Ora, se tu deixaste o papel em qualquer lado

É questão de o procurar com mais cuidado.

Bem sabes que a tentação é grande e que o pecado

Surge a quem vê um poema mal guardado.


Mas para que quereria alguém esse soneto?

Será um ladrão, um malfeitor, o que sei eu?

Terá sido um parente, uma filha, um neto?

Só o que eu sei é que o soneto desapareceu.


Vou comprar um cadeado novo.

Assim, mais seguro me sentirei com ele na algibeira.

Para não defraudar a arte e o povo.


Entretanto, à espera, será desta maneira

que escreverei um soneto muito mais novo

que, esse sim, guardarei bem na algibeira.


José Sesinando


(assim se chamava literariamente José Palla e Carmo)

Estados Unidos

Os EUA têm uma economia baseada na flexibilidade extrema do mercado laboral, na segurança de que quem perder o seu emprego pode, com alguma facilidade, vir a recuperá-lo em outro setor que sobreviva ou surja no mercado. O pior é quando muita coisa desaparece e o novo não aparece.

Vírus


Há um Brasil já infetado pelo vírus. Há um Brasil infetado por Bolsonaro. Ambos se encontram nesta fotografia.

O esforço


Há muitos anos, num jantar em casa do meu colega Fernando Neves, referi que estava a ler um determinado livro de um romancista cujo nome não é para aqui chamado. Era aquilo a que, sem exagero, se chama um “escritor menor”, daqueles que fizeram algum nome no tempo da ”outra senhora”, incensado pelo SNI e pelos panfletários do regime, mas que o bom-senso crítico, com a passagem dos anos, arquivou já no devido esquecimento.

Tinha e tenho por vício ler autores medíocres, na literatura e no ensaio, nunca concluí se por masoquismo ou se pela vontade de me divertir com os ditos. É uma mania, que se há-de fazer!

Lembro-me bem de que, nesse jantar, ao ouvir falar da minha incursão por essa literatura “de segunda”, o escritor António Mega Ferreira, um dos outros convivas, teve uma reação curiosa: “A literatura desse tipo não merece sequer o esforço de estendermos o braço para a estante, para pegar num livro dele. Quanto mais lê-lo!”

Pensei isto ontem, ao ler um texto de Elmano Alves, incluído numa obra com alguns ensaios e testemunhos, o que era o caso. Quem foi Elmano Alves, perguntará o leitor? Foi um ator secundário e quase ignoto do marcelismo (as novas gerações saberão que houve “marcelismo” antes deste Marcelo?), uma figura da política de Setúbal que, um pouco “by default”, chegou a presidente do partido único da época, a Ação Nacional Popular. Com o êxito que se viu.

Lembro-me da imagem dele, antes de se exilar no Brasil, no pátio do palácio de Belém, nos dias imediatos ao 25 de abril, a dizer uma única frase, ao menos mais corajosa do que a de alguns “vira-casacas” da época: “Estou mudo e não mudo”.

O texto é indigente, de um nacionalismo serôdio, mas, porque tenho estado a ler sobre esses “anos do fim” (a designação é do meu amigo Jaime Nogueira Pinto), fui obrigado a passar os olhos por aquilo que era a doutrina desse período. Uma conclusão tirei, sem equívocos: ler Elmano Alves não mereceu, de facto, o esforço de esticar o braço para a estante.

As palavras e as coisas


Fechados em casa, muito dependentes daquilo que nos chega, estamos, mais do que nunca, reféns da palavra dos outros - e nesta incluo, claro, as imagens, porque elas também nos “dizem” coisas.

Não sendo, por estes dias, testemunhas diretas do escasso quotidiano que se vive lá fora, recebemo-lo através de mediadores, seja aquilo que a internet nos traz, bastante a televisão, alguma coisa a rádio, cada vez menos a informação escrita – e isso dá-nos já alguns sinais para o futuro.

Cada um de nós seleciona, dessa avalanche de informações que chegam, dos números e das “curvas”, das previsões e das opiniões, umas mais “achistas”, outras mais científicas, aquilo que mais diz às suas preocupações. Alguns passam os dias a divulgar o que acham de relevante, outros, como é o meu caso, tentam blindar-se do “diário do vírus”. E a fugir da especulação, do diz-que-disse, do alarmismo tremendista, do rumorismo conspiratório.

Muitos, com forte razão, concentram atenções nos graves efeitos económicos que já se detetam. Porque têm empregos e famílias a sustentar. Ninguém, por ora, tem dados seguros, salvo a certeza de que o choque vai ser imenso. E que será assimétrico nos efeitos sobre os vários setores, cuja capacidade de reabsorção será muito variável. E, no nosso caso, como economia muito aberta que somos, com os nossos parceiros em crise, vamos ter a nossa crise e vamos importar a dos outros.

Porque a vida não para, muitos procuram continuar a trabalhar, embora seja necessário assumir uma realidade: salvo em algumas profissões, já bastante aculturadas à digitalização, é uma ilusão pensar-se que, de um dia para o outro, se transita de um escritório onde estão os dossiês, as notas e os papéis, para um idílico teletrabalho. As coisas não são assim. Nem a vida das casas de muitos é passível de uma reconversão eficaz, por razões óbvias. A própria gestão do tempo é difícil de se fazer. Passar do “from-nine-to-five” para um ambiente doméstico pode ser muito complexo.

E há ainda a nova realidade dos imensos telefonemas. Nestes dias, falamos muito com a família, com os amigos, até com simples conhecidos. As conversas, em geral monotemáticas, são até bastante mais longas do que habitual, no pressuposto implícito de que o nosso interlocutor tem, para nós, todo o tempo do mundo. E vice-versa.

Muitos de nós ainda não reorganizámos o nosso quotidiano e, pelo que às vezes vejo ser a minha própria reação, parto do princípio de que estamos todos um pouco em férias, ligando aos outros pelo telefone a toda a hora, poupado talvez o tempo das refeições. Na verdade, ninguém pode hoje dizer que não atendeu um telefonema porque não estava em casa, mas é legítimo que as pessoas não estejam disponíveis para receber sempre chamadas. Tem de ser criado um “protocolo” informal novo para esta situação inédita, porque, se perdemos momentaneamente a liberdade de movimentos, isso não implica que percamos o direito à nossa privacidade.

Há dias, um amigo telefonou-me: “Mandei-te um email há meia hora e ainda não respondeste!”. O remoque era curioso. Como eu tinha colocado, nesse período, algo numa rede social, ele partia do princípio que eu estava em frente ao computador, isto é, permanentemente atento à caixa de entrada dos emails. E ao não lhe ter respondido de imediato, isso significava, aos seus olhos, colocar essa sua mensagem num grau de prioridade inferior à graçola que eu me divertira a escrever. E se eu estivesse a ler um livro ou uma interrupção me perturbasse a sequência de um filme?

Nada do que acabo de dizer atenua a importância do ato de indispensável simpatia que significa, nos dias que correm, falarmos com amigos a quem, em regra, apenas ligamos nos aniversários ou pelo Natal. Sabe bem ouvir quem raramente ouvimos, reatar amizades a que o tempo diluiu a densidade do contacto pessoal.

Nestes tempos cinzentos, é precisamente a riqueza das relações pessoais que nos pode ajudar a libertar de uma nefasta cultura de ansiedade, que se torna vital combater.

quinta-feira, abril 02, 2020

Vergonha nossa


Só posso imaginar que as duas assinaturas portuguesas que faltam neste documento do Partido Popular Europeu (PPE) sejam ali rapidamente colocadas.

Boataria

Passo-me com essa gente que, com falsa ingenuidade, publica um video ou divulga um texto com o “disclaimer” cobarde de “não sei se isto é verdade, mas chegou-me isto...”.

Ronaldo

Um madeirense dizia-me: “Se isto continuar por mais alguns meses, e se vierem a fazer um preço jeitoso, ainda vamos ficar com o Ronaldo aqui no Marítimo”.

Esta Lisboa


Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão

Bernardo Soares (heterónimo de Fernando Pessoa)

quarta-feira, abril 01, 2020

Foi assim...


No longo corredor do terceiro andar da embaixada “portuguesa” (os angolanos nunca diziam “de Portugal”, sei lá bem porquê!) em Luanda, nesse ano de 1984, ia uma imensa agitação (um grande “restolho”, como se diz na minha terra). O Júlio Vasconcelos, um colega diplomata, aflorou à porta do meu gabinete: “O António está furibundo com um telegrama que chegou de Lisboa”.

O António era o António Pinto da França, o magnífico embaixador que nos tinha saído em rifa, que muito ajudaria a dar cor e graça aos dias dessa cidade com guerra à volta, com recolher obrigatório, praticamente sem lojas abertas e com uma vida tensa e muito difícil. “Mas o que é que diz o telegrama?”, perguntei. Aparentemente, anunciava que António Macedo, uma figura grada do PS, que constava ter uma ligação privilegiada com o MPLA, vinha a Luanda, enviado por Mário Soares, numa missão de “diplomacia paralela”, com vista a tentar atenuar as então difíceis relações bilaterais.

Mas o telegrama, assinado pelo secretário de Estado Eduardo Âmbar, dizia mais: pedia que, dado o “estado frágil de saúde” de Macedo, este ficasse instalado na residência e que o embaixador o acompanhasse nas diligências.

Quando entrei no gabinete de António Pinto da França, este estava numa imensa agitação. “Ó Francisco, você não acha um topete esta vinda do Macedo? Então vem para aqui fazer “diplomacia” partidária e pedem-me para o acompanhar! E nem posso ir de férias, que já estavam autorizadas pelo secretário-geral! E as obras, que foi tão difícil arranjar gente para as fazer? Já tinha mandado o pessoal da residência de férias...”

Havia pouco que dizer, para além de um: “Pois é, é uma chatice!”. Mas o António Pinto da França continuava inconsolável: “Não esperava isto do Jaime Gama, francamente! A favorecer uma operação de “diplomacia paralela”!”. Aí, entrei eu na especulação: “Não será por acaso que o telegrama é assinado pelo Âmbar...”. O embaixador largou o cachimbo e, tendo-me como expert nas tricas socialistas, interrogou-se: “Você acha?”.

Ainda eu não tinha iniciado a minha exegese imaginativa sobre mundo do Rato, quando o bigode do Tavares, o nosso simpático homem das comunicações, aflorou à porta do gabinete: “Senhor embaixador. Chegou outro telegrama. É do secretário-geral...”. “Dê cá, Tavares, dê cá!”, disse o António, talvez com uma vaga esperança de que tudo afinal se revertesse.

Aí, foi a “débacle”! António Pinto da França, homem pouco dado a humores irados, deu um berro: “Só me faltava mais esta!”. À sua volta, expectantes, continuavam os seus quatro colaboradores mais diretos: o José Stichini Vilela, ministro-conselheiro, o Fernando Andersen Guimarães, cônsul-geral, chamado do seu andar de trabalho ao improvisado “gabinete de crise”, o Júlio Vasconcelos e eu.

“Vocês querem saber quem é que vão mandar para cá como Conselheiro Cultural? O Reis Caldeira!”. Era, de facto, a “cereja em cima do bolo”! O embaixador tinha-se batido longamente para ter uma pessoa encarregada da área cultural, tendo mesmo adiantado sugestões de nomes. O Reis Caldeira - e eu até era, provavelmente, aquele que melhor o conhecia - era uma figura muito polémica na carreira diplomática, autor de um “infamous” livro sobre as intrigas da casa. “E o João Aurora nem uma palavra teve para comigo, antes de tomar esta decisão! Não lhe perdoo!” O João Aurora era o embaixador João Sá Coutinho, conde de Aurora, secretário-geral do ministério, o “chefe” da carreira.

A confusão já ia longe demais. O tabaco do cachimbo do agitado António Pinto da França estava espalhado pela secretária, sobre a papelada verde dos telegramas recebidos (os expedidos, como regra universal no MNE, eram imprimidos num papel róseo, da cor das paredes do palácio). A sua fúria, que já se tinha refletido no modo brusco como reagira à Luísa, a secretária, que lhe lembrara, a destempo, que o seu carro já estava à porta do prédio, para o levar ao almoço na residência, aconselhava a que fosse introduzida alguma acalmia na situação. Foi o que decidi fazer.

“Já imaginou se tudo isso fosse verdade? Que vinha por aí o Macedo e que tinha de passar a aturar o Reis Caldeira?” O embaixador olhou-me, esbugalhado, num súbito silêncio, feito de uma imensa perplexidade. Viu então a cara do Fernando Andresen Guimarães abrir-se num sorriso de cumplicidade revelada, o Zé Stichini deu uma gargalhada de quem percebia o que se passava e só o Júlio Vasconcelos ficou com um ar espantado, porque eu o tinha mantido “fora-de-jogo”.

”Hoje é o dia um de abril. Esses telegramas foram inventados por mim. E até chegaram cifrados! Deu-me uma imensa trabalheira, ontem à noite...”

Era assim o nosso grupo de Luanda, de outros tempos. Desse “team” diplomático só eu e o Fernando Andresen estamos hoje “por cá” para nos lembrarmos da história daquele dia um de abril de 1984. 

Morrer de saudades


Um colunista não é, necessariamente, alguém que sabe mais do que aqueles que o leem. É apenas uma pessoa que tem a pretensão de pensar que aquilo que coloca no papel pode ser interessante para ajudar à reflexão dos outros.

Nesta crise, em que vejo pouca televisão e me protejo da catadupa de notícias que nos chegam de toda a parte, tenho a certeza de que muitos dos leitores estão bastante melhor informados sobre o quotidiano do que eu.

Face às flagrantes hesitações de quantos são tidos por especialistas nestes assuntos, e que se recusam sabiamente a dar opiniões definitivas, ficou implicitamente autorizada a vinda à tona dos “técnicos de bancada”, dos que juntam dados colhidos em várias fontes e se atrevem a formular teorias sobre o vírus, a mandar bitaites sobre a tal “curva” e coisas assim. Muitos são antigos escribas de generalidades, outros são políticos em “pousio”, a maioria são os “tudólogos” do costume. Põem um ar grave e aí vai disto!

Há ainda os das redes sociais. Prolíficos nas sinistras “partilhas”, se acaso têm “uma prima no Curry Cabral” que lhes deu umas dicas em privado, passam a oráculos. Fujo deles a sete pés. Não me “infetam” com as suas teorias, sejam pseudo-científicas, sejam de natureza conspiratória (“sabia que há um site búlgaro que anunciou que o que ‘eles’ não querem é pôr cá fora a vacina que já existe?”)

Sou um cidadão comum. Nada sei de relevante sobre esta pandemia, pelo que entendo dever ter a humildade de me deixar guiar por quem, embora não sabendo tudo, e estando também a aprender dia-a-dia, sabe seguramente muito mais do que eu poderia alguma vez saber - mesmo que me desse ao trabalho de ouvir tudo (e não ouço), que andasse a coscuvilhar na internet sobre o muito que se especula pelo mundo (e não ando). Nesta matéria, vivo a serenidade de quantos confiam apenas no que as autoridades de saúde nos dizem para fazer, somado àquilo que o bom-senso me aconselha. E, como se dizia noutros tempos, o que for soará.

É sobre o bom-senso, a única coisa em que posso pronunciar-me, que gostaria de deixar uma nota. Imagino que as angústias da solidão, somadas às tensões do confinamento, leve uns tantos a uma ideia: se se passou uma quarentena de mais de meio mês, sem sintomas, o mais provável é que se não esteja infetado. Daí a pensar dar uma saltada à terra ou à casa da família mais íntima, para uma Páscoa discreta, o passo é pequeno e a tentação é grande. Não faça isso! Pode ser trágico. Vale mais morrer de saudades do que morrer.

O meu 1º de abril



Pronto! Hoje, decidi sair. Começa o mês de abril, mês novo vida nova (nunca ouvi dizer isto, mas soa bem). De manhã, tenho de dar uma saltada à Infante Santo para comprar "toner" e vou passar pela loja gourmet das Amoreiras. Há por lá um belo paté. Compro também um Sauternes, que liga muito bem com ele. Deixo as coisas em casa e vou almoçar com o pessoal do costume ao Nobre. Está-se a comer lindamente no Nobre, sabiam? Atravesso, em seguida, a Avenida da República e vou ao meu barbeiro, ao Sr. Pinto, no Apolo 70, que é "apenas" o melhor barbeiro do mundo. Bem preciso, com a trunfa com que já ando! Apanho o metro para o Chiado e vou beber um chá com scones no Grémio. Depois, ainda passo pela Férin e pela FNAC. Preciso do último "Spectator" e aparece sempre um livrito ou outro para comprar. Jantar? Está-me a apetecer voltar ao Pap'Açorda no Mercado da Ribeira. Estive lá há semanas e comi bastante bem. Para acabar a noite, talvez ainda vá ao Procópio para um copo. Há muito que o Luís já nem pergunta o que eu quero. E depois, claro, regresso a casa, que já se faz tarde.

E se chover? Bom, se chover é outra coisa! Nem saio de casa! Aliás, pensando bem, em casa é que se está bem. Olhem! Afinal, já decidi: quer chova quer faça sol, neste primeiro de abril, fico mesmo em casa. É verdade! No dia das mentiras!

terça-feira, março 31, 2020

Só para lembrar

Sinto haver por aí gente que, passado o período da quarentena que se auto-impôs, conclui que não está infetada e, com a aproximação da Páscoa, está a pensar fazer uma escapada para ver a família. A essas pessoas, só lembro uma coisa: vale mais morrer de saudades do que morrer.

Keynes

Com os apoios que o Estado está a dar - e muito bem! - ao setor privado, algumas escolas de “business” vão reconverter-se e passar a ter um retrato do Keynes no hall de entrada.

Homofonias

Resposta de um amigo, a quem perguntei como iam as coisas lá por casa: “So far so good!” A mim, soou-me: estar no sofá é tão bom...

Aspirações

Nunca esta casa andou tão bem aspirada. Confesso, porém, que tinha outras aspirações.

Petiscos em casa


Sempre houve louváveis exceções, mas a tendência maioritária da vida empresarial moderna é de que as refeições de trabalho sejam, quase sempre, para além do já quase inevitável “peixinho” dietético, coisas a caminhar para um sinistro mundo de “herbívoros” - sem vinho, sem açúcar, sem café, numa palavra, sem um mínimo de graça.

Numa empresa onde presto consultoria, dei-me um dia conta de que os almoços de trabalho eram sempre um “happening” de coisas bem saborosas, criativas, com gosto, regadas com álcoois interessantes. E, nem por isso, trabalhávamos menos.

Perguntei o nome de quem fazia aqueles petiscos: Marta Bártolo. Era uma arquiteta convertida em “chefe”, que não só serve refeições nas casas como dispõe de um espaço bem interessante, passível de aluguer, na rua dos Navegantes.

Passámos a ser clientes da Marta. E continuamos a sê-lo, mesmo depois do início da crise. Por estes dias, ela fez-nos já algumas refeições, trazendo-as a casa, com uma qualidade que muito nos atenua a solidão do confinamento. Seguramente que, em semanas futuras, pelo meio de outras experiências de “take away”, a ela recorreremos de novo.

Só por aqui faço publicidade àquilo que acho que merece. E a cozinha da Marta Bártolo merece-o bem. Consultem o seu site (www.amesacommartabartolo.com) ou telefonem-lhe (965080839). Ao contrário de outros fornecedores de refeições, ela serve em toda a Lisboa, mas também Cascais, Sintra e Praia Grande. Posso garantir que não se arrependerão!

Não devemos dar tréguas ao vírus! Vinguemo-nos na mesa!

segunda-feira, março 30, 2020

Ficar bem

Particularmente nestes dias de confinamento, gosto muito de ouvir isto: “A camisa que escolheste não “vai bem” com essas calças!”

Parlez-vous?

Um email de um amigo, esta manhã: “Partilhaste um texto em francês. Achas que alguém ainda percebe francês? O mundo, por cá mudou. Experimenta perguntar a um miúdo o significado de uma data em letras romanas...” 

Terá razão?

Ai o VAR...

Com os dias a passar, há coisas que, pouco a pouco, nos vão fazendo falta. Como o VAR, por exemplo. E as caras graves daquelas figuras que passavam horas a discutir se foi ou não fora de jogo, se o jogador estava “em linha”, se a carga foi ou não merecedora de amarelo...

A refeição imaginária


Nestes dias de confinamento, os “menus” caseiros dependem muito da criatividade culinária dos membros da família. Há quem seja mais dotado para a cozinha (e eu dou pleno direito a quem aplica com méritos esses predicados) e há quem pertença à muito estimável categoria dos que, não tendo tido a ventura de ser dotado de tais dotes, se distinguem, no entanto, pela importante tarefa de analisar aquilo que se degusta.

Faço parte desse último e distinto grupo. Todos os dias, lá vou dando a minha preciosa valoração: “Acho que esta tarte precisava de um bocadinho mais de apuro” ou “tens de ter mais cuidado com o demolho do bacalhau” ou “esta carne ganhava em estar mais ‘medium rare’ “. E, com estas judiciosas avaliações, sei que dou um contributo inestimável à vida da casa. E, claro, nunca me passou pela cabeça pedir para que alguém me agradeça estas observações, feitas com a sabedoria gustativa de muitos (vá lá, e bons!) anos. Temos de ser uns para os outros, não é?

Nestes estranhos dias, em que me apetecia sair de casa e não o faço, em que bem gostava de estar em almoçaradas com amigos, mas não estou, lembro-me de algumas belas refeições que tive. Mas também de outras que não pude ter.

Quando passei três sinistros meses no Curso de Oficiais Milicianos em Mafra, nos tempos da “outra senhora”, as refeições eram quase sempre péssimas, naquele espaço imenso do “refeitório dos frades”, dentro do convento. Cada pelotão tinha a sua mesa, onde, sob um chavascal de libertação de uma linguagem que não ia ao “exame prévio”, chegavam umas travessas metálicas, trazidas por uns “prontos” (nome dado aos soldados), para onde logo convergiam os apetites da maralha.

Lembro-me bem de que o Zé Maria Ribeiro da Cunha se queixava amargamente de que, nesses curtos mas longos meses, nunca conseguiu deitar ondente a um peito de frango, dada a rapidez glutona de alguns colegas, que já se sentavam estrategicamente onde sabiam, de ciência experiente, que iam assentar as vitualhas.

Mas, com esta conversa, quase me perdi. Não era sobre o que comíamos que eu queria falar. Era sobre o que não comíamos...

Antes do almoço, havia lugar a uma formatura. Relaxada, mas, mesmo assim, formatura. Era o momento em que nos chegavam as cartas da família e das namoradas (imagino que também dos namorados de alguns, mas essa não era uma conversa para esses tempos...). Aquilo durava aí uns dez minutos. Era então esse o período em que eu e o Carlos Seruya (não por caso, nos dias de hoje, ambos membros, por algum tempo não ativos, dos “trinta magníficos” da Academia Portuguesa de Gastronomia) levávamos à prática um jogo sádico, que irritava supinamente os restantes 28 membros do bando de verde escuro.

Ou eu ou o Carlos, aventávamos: “O que é que achas que vamos comer hoje?”. O outro respondia: “Disseram-me que é um bacalhau à Lagareiro. Mas, antes, vêm uns pasteis de massa tenra, com arroz de ervilhas. A sobremesa é que não agrada muito: é um pudim abade de Priscos, mas eles costumam não ter cuidado em dar-lhe o toque de toucinho necessário. É uma chatice! Um dia temos de dar uma palavra ao comandante de companhia” O pessoal do pelotão, que sabia que, minutos depois, ia afinal comer um rancho miserável, ficava furibundo com aquela nossa conversa e desatava a protestar: “Calem-se lá com essa conversa, p... Só abrem o apetite!” Mas nós insistíamos: “Pois a mim, o sargento de rancho garantiu-me que era um empadão de lebre. Antes, parece que são umas ameijoas à Bulhão Pato. Espero é que saibam pôr a dose certa de coentros! Mas, na sobremesa, eles não costumam fazer mal os papos de anjo, com um bom molho”. Por essa altura, já as ameaças à nossa integridade física surgiam de vários pontos da formatura, com o alferes Carvalho, que nos tinha sob tutela, a estranhar a nossa agitação.

Bons tempos? Bons tempos, uma ova! Se tivessem como perspetiva ir parar com os costados à guerra colonial, como aconteceu a muitos, não pensariam assim. Mas, se compararmos esse período com os dias cinzentos que atravessamos, com o vírus que pode surgir sabe-se lá onde, até eram uns tempos simpáticos!

Deixo aqui aqui um abraço amigo ao Carlos e ao Zé Maria, esperando que algum leitor, atento e amigo de ambos, lho transmita. Relembrando, aliás, que os três, com as “respetivas”, nos encontrámos há uns meses, com álcoois à medida, numa jantarada bem simpática nas Casas do Coro, em Marialva, para os lados de Foz Côa. É o que se leva desta vida, não é!

SEF

Nos dias que correm, o país dispensava bem um caso como este que envolve o SEF. 

Investigar tudo, com rigor e rapidez, divulgando rapidamente os resultados, daria confiança e garantiria a boa imagem internacional das fronteiras portuguesas e de uma instituição prestigiada como sempre foi o SEF

Rui Rio


Há pouco, Rui Rio deu uma entrevista à RTP. 

Em 2017, escrevi por aqui isto:

Numa postura de Estado que muito ajudou a formatar a sua imagem pública de rigor e seriedade, Rio nunca foi conduzido aos caminhos da política “politiqueira”, como a que, por exemplo, procurou explorar demagogicamente a tragédia dos incêndios. Por outro lado, foi sempre um defensor de pactos de regime, sobre grandes temáticas de interesse público, não favorecendo o confronto artificial com o outro lado do espetro político.

Em 2018, num artigo no JN, escrevi isto:

Rio deu, desde o primeiro momento, sinais de querer introduzir uma nova atitude no debate político: não fazer oposição só para mostrar que está contra o “outro lado”, criticar apenas quando tem razões para tal, apoiar quando entender que o adversário esteve certo, caminhar sempre que possível no sentido de compromissos de regime. Todos concordarão que esta atitude introduz uma clivagem clara no modo de estar dos líderes partidários portugueses - e não só no PSD.

Não me arrependo do que escrevi.

domingo, março 29, 2020

Restauração em tempo de crise


Em tempos normais, costumo deixar por aqui notas sobre restaurantes. Ora alguns restaurantes, felizmente, não fecharam e estão agora a fazer serviço de “take away”, enviando comida às casas.

Hoje, experimentei a Tasca da Esquina (919 837 255), de Vitor Sobral, um simpático espaço que existe em Campo de Ourique.

A comida que nos chegou estava excelente, a preço muito razoável.

Aqui fica a publicidade para quem a merece.

Patrick Davedjian


Há politicos que nos irritam. Há políticos cuja inteligência nos diverte. Patrick Devedjian, para mim, cumpriu sempre essas duas funções. Morreu hoje, de coronavírus, aos 75 anos.

Era uma figura que projetava alguma arrogância, como às vezes acontece a quem, como ele, era muito dotado. De ascendência arménia, como o apelido não traía, foi um dos “culpados” do reconhecimento parlamentar do genocídio turco na segunda década do seculo XX, que haveria de inquinar, ainda mais, as relações entre Paris e Ancara.

De extrema-direita da sua juventude, passou depois a liberal.

(Nada que, entre nós, não seja o pão nosso de cada dia. Alguns, aliás, dão ares de tentarem acumular ambas as vertentes - a primeira, porque lhes está na natureza, a segunda, porque está ou estava na moda).

Aderiu depois ao gaullismo, coisa comum na direita francesa, onde amor ao Estado se equivale, muitas vezes, ao da mais ortodoxa esquerda. Saiu mais tarde das bandas de Jacques Chirac para se juntar a Sarkozy. Não gostou que este abrisse o governo a algumas caras heterodoxas, como Kouchner e outros divertimentos. Foi nessa altura que proferiu uma das boutades por que ficou famoso: “Sou por um governo de abertura, inclusive aos sarkozistas...”.

Um dia, depois de ganhar uma eleição que todos esperavam que perdesse, cunhou esta pérola da ironia política, que deixo em francês, por ser assim mais saborosa: “Il y avait tellement de gens à mon enterrement que j’ai décidé de ne pas m’y rendre”. A frase ficou tão famosa que, estou certo, ele sabia que seria lembrada na hora da sua morte.

Um ror de livros!

Já fiz a promessa: só em casos muito excecionais, com o prévio aval de amigos leitores cujo critério muito preze, irei ler algum dos livros da avalanche que por certo ai virá, a partir do outono, com recordações ou ficções inspiradas nestes tempos de vírus. Vai ser uma praga!

A gravata de Paulo Tarso


Paulo Tarso Flecha de Lima foi um dos mais proeminentes diplomatas brasileiros. Membro do “staff” de Juscelino Kubitschek quando jovem, foi embaixador em postos como Londres, Washington e Roma, entre outros, bem como secretário-geral do Itamaraty. Foi sempre tido como um brilhante operador diplomático. A sua mulher, Lúcia, que teve cargos políticos de governo a nível de Brasília, viria a ser uma peça indispensável para o sucesso profissional do seu marido.

Atingido, nos anos finais da sua carreira, por uma doença que muito o limitou fisicamente, Paulo Tarso soube, com imensa coragem, enfrentar o infortúnio e, retirado das lides diplomáticas, viria a criar um gabinete de consultoria de investimentos.

Quando cheguei a Brasília, em 2005, uma das primeiras pessoas que fui visitar foi Paulo Tarso. Recordei-me de que, nos anos 90, quando ambos coincidimos em Londres, ele tinha sido de uma grande generosidade para com o então jovem conselheiro da embaixada de Portugal que eu era. O Paulo e a Lúcia acolheram-nos, por mais de uma vez, na residência brasileira em Londres, com imensa simpatia. Ambos tinham, à época, uma projeção muito rara no seio da vida político-social britânica, sendo Lúcia uma conhecida amiga íntima da princesa Diana.

Na visita que lhe fiz, no seu escritório empresarial em Brasília, Paulo Tarso, que desde há vários anos praticamente só se movia em cadeira de rodas, e com cuja família viríamos a ter um convívio regular nos nos quatro anos seguintes, notei que estava vestido impecavelmente, de fato (os brasileiros dizem “de terno”) e gravata.

Falou-me da vida que criara após a reforma, aconselhou-me a pensar na minha (eu estava então ainda a uma década de distância), recomendando-me que me mantivesse sempre atualizado face às grandes questões globais, que as fosse acompanhando, com leitura e boas fontes abertas de informação: “O conselho independente de um diplomata experiente, que tenha decantado bem aquilo por que passou ao longo da sua carreira, pode ser extremamente interessante para o setor privado, que tem necessidade de pensar a prazo e de ter quem o ajude a olhar o futuro. É o que eu faço aqui, com algum sucesso”. Nunca esqueci isto e segui exatamente o que me disse. Não me arrependi.

Mas não é sobre esse útil conselho de Paulo Tarso que hoje quero aqui falar. Foi sobre a gravata. Não posso jurar terem sido estas as suas palavras, mas a ideia era esta: “Quando se reformar, Francisco, não se deixe tomar pela preguiça na maneira de vestir. Quando em casa, não ande de pijama, roupão e chinelos. Nem vagueie pela rua em fato de treino, com ar falsamente desportivo. Esse é o primeiro passo para a decadência pessoal, mesmo que o não queiramos admitir. Faça a barba todos os dias, vista-se, mesmo que de modo informal, como se fosse encontrar com amigos ou eles o visitassem de repente. Como compreenderá, na minha situação física pessoal, bastante preso a esta cadeira de rodas, a tentação para o desmazelo é imensa. Luto contra ela a toda a hora. Faz parte da minha dignidade pôr terno e gravata sempre que posso”.

Nestes dias de confinamento, claro que não ponho gravata. Aliás, a gravata, neste caso, é apenas uma metáfora para significar o cuidado mínimo com a forma de vestir e de nos apresentarmps. Mas, confesso, sigo muito o espírito dos conselhos do Paulo Tarso Flecha de Lima, um amigo que admiro e estimo, agora com 87 anos. Já sem Lúcia, que se foi desta vida há uns anos, desejo-lhe o melhor, nestes tempos sombrios de um Brasil que tão bem soube sempre representar.

Tulipas, moinhos e cifrões


Como os últimos dias têm deixado evidente, os Países Baixos, em matéria de dinheiros, não brincam em serviço e, manifestamente, corre-lhes nas veias um sangue de cifrões. Sei o que é discutir questões financeiras com os colegas holandeses, aliás gente sempre muito bem preparada, altamente qualificada e que sabe como levar a água ao seu moinho - água e moinhos, como é sabido, não faltam na Holanda...

Algures no primeiro semestre de 1996, durante a presidência italiana da União Europeia, os quatro responsáveis governamentais pelos Assuntos Europeus que, simultaneamente, eram os negociadores-chefes dos seus países no trabalho de negociação do Tratado de Amesterdão, foram convidados pelo ministro francês Michel Barnier (um bom amigo, o principal negociador do Brexit e hoje infetado por coronavírus) para um jantar no esplendoroso Palazzo Farnese, onde está instalada a embaixada francesa em Roma. Era na véspera de uma reunião da Conferência intergovernamental para a discussão do novo tratado.

(Uma curiosidade: a França paga à Itália o equivalente a um franco antigo pelo aluguer do palácio romano Farnese e, em compensação, o Estado italiano "despende" o equivalente a uma lira, pela utilização, como embaixada em Paris, do deslumbrante Hôtel de la Rochefoucauld-Doudeauville, com a mais bela escadaria de mármore que alguma vez vi. Já ouvi franceses a dizerem que foi um "mau negócio", porque a lira se desvalorizou muito face ao franco...)

Além do anfitrião, o ministro francês para os Assuntos europeus, estiveram no jantar os secretários de Estado dos Assuntos europeus da Suécia e dos Países Baixos, respetivamente Gunnar Lund e Michiel Patijn, e eu próprio. Curiosamente, todos havíamos estado presentes nas reuniões do "grupo de reflexão" que, durante 1995, fez sugestões para a revisão do Tratado de Maastricht, o que havia criado entre nós uma forte relação pessoal. Lund viria, anos mais tarde, a coincidir comigo em Paris, sendo aí um dos meus melhores amigos no corpo diplomático.

O jantar, além de algum "small talk", era essencialmente de trabalho, pelo que cada um suscitou as prioridades do seu país para a discussão que então se iniciava. Para o que aqui nos interessa, gostava de dizer que, entre vários outros pontos, eu insisti bastante na necessidade de uma Carta da Cidadania Europeia, a ser apensa ao tratado, a fim de destacar o valor acrescentado que, para cada cidadão, a pertença à União representava, a somar à sua própria cidadania nacional. O meu colega holandês foi aquele que me pareceu, desde o início, o menos entusiasmado com a ideia.

Acabado o jantar, eu e ele regressámos ao hotel onde, casualmente, ambos nos alojávamos, perto da Piazza Navone - o Raphael, coberto de exótica vegetação. Era uma bela noite romana e, na esplanada, tomámos uma cerveja. Porque queria, no dia seguinte, lançar a ideia na reunião formal, e pretendia evitar que ele fosse dos opositores mais vocais, voltei a tentar convencê-lo, na conversa a dois, da bondade da minha ideia sobre a Carta de Cidadania. (“For the record”, a Carta não seria aprovada nessa altura, mas, anos mais tarde, foi possível consagrar uma Carta dos Direitos Fundamentais, o que acabou por ser um salto em frente face à limitada ambição da minha anterior proposta).

Michiel Patijn era um homem muito sorridente, com uma cordialidade que encontrei em muitos outros holandeses. E existia entre nós uma forte empatia pessoal. Mas também era sempre muito frontal - uma caraterística diplomática que tem a vantagem da clareza e a desvantagem da inflexibilidade. Não lhe interessava a “minha” Carta. Ponto. Sintetizou-me então, numa frase curta, as "prioridades" do seu país para o novo tratado: "Francisco, tens de compreender: para nós, a Europa significa dinheiro!" Não podia ser mais esclarecedor. (Mais tarde, durante as longas negociações da Agenda 2000, tidas entre 1997 e 1999, fixando o quadro financeiro plurianual da União para os sete anos seguintes, tive bastas provas dessa “fixação” holandesa)

Michiel Patijn tinha um irmão, Schelto, que foi presidente da municipalidade de Amesterdão. Foi ele quem um dia convidou António Guterres a visitar a importante Sinagoga portuguesa de Amesterdão, um edifício que simboliza o refúgio naquelas terras dos muito judeus fugidos às perseguições de que foram alvo em Portugal, em especial no século XVI. Nessa visita, em que acompanhei o então primeiro-ministro português, referi-lhe a amizade que tinha com o seu irmão: “Somos o oposto nas ideias políticas: ele é de direita, eu sou socialista. Mas damo-nos muito bem!” Imagino que não divergissem quanto ao dinheiro, algo que une os holandeses, talvez mais do que qualquer outra coisa.

Os Países Baixos são hoje dos maiores “ganhadores” do processo integrador. Com a unidade europeia, ganharam a paz, um lugar geopolítico privilegiado no continente, uma ancoragem à Aliança Atlântica que lhes trouxe sempre vantagens (com o Reino Unido e Portugal, os Países Baixos foram, durante muitos anos, dos mais fiéis defensores da relação transatlântica), as suas empresas têm sabido aproveitar como poucas o mercado interno europeu e as oportunidades abertas pela globalização, o porto do Roterdão é o principal canal de acesso comercial da União e, “last but not least”, têm um regime de imposto muito atrativo para empresas estrangeiras a quem os acionistas reclamam o máximo de “otimização fiscal”, somado a um leque de acordos, ímpar na Europa, para a eliminação da dupla tributação, o que o torna no “paraíso” para fixar empresas que queiram investir em países terceiros. Ah! E vão ser, com a Alemanha, dos principais beneficiários do Brexit! 

sábado, março 28, 2020

Não poupemos nas palavras

Estão a aparecer aí pelas redes sociais muitos “holandeses”, de extração doméstica. Foram os mesmos que “compreenderam” os “verdadeiros finlandeses”, há uns anos. Não aprenderam nada, apesar das lições que entretanto levaram. São moralmente uns trastes, não poupemos nas palavras.

... e o Porto aqui tão perto!

Aos meus amigos do Porto: ainda há dificuldades no acesso a Bessa Leite e na Via Panorâmica? Sinto falta de notícias sobre o Nó de Francos e, acima de tudo, como andarão as coisas pela Avenida AEP? ‬

Isto não abre telejornais, claro!

No contexto da luta contra o vírus, os imigrantes e requerentes de asilo com pedidos de autorização de residência pendentes no SEF passam a estar em situação regular e a ter acesso aos mesmos direitos, incluindo apoios sociais.

Isto não abre telejornais, claro! Era só o que faltava dar relevo às notícias positivas!

Miranda Calha


Com pouco mais de 72 anos, morreu Júlio Miranda Calha. 

Constituinte em 1975, foi deputado até 2019. Foi vice-presidente da Assembleia da República e, durante muitos anos, foi uma das figuras proeminentes do Partido Socialista no distrito de Portalegre. Era um reputado especialista em questões de Defesa, área em que teve responsabilidades de governo.

Os meus sentimentos à sua família.

Uma crise com barbas


Não, a crise não acabou. Quem dera que cheguemos, em breve, àquele momento em que possamos dizer: “Esta crise já tem barbas!”. Infelizmente, ainda não chegámos lá.

Estou a referir-me às “barbas da crise”, àquelas pilosidades que alguns, por comodismo, deixam crescer pelo rosto, nestes dias de confinamento caseiro. 

Uns vão descobrir que lhes dá charme, até arriscam um toque “hipster”, para armar ao novo, embora conseguir isso sem mão profissional seja complicado. 

Outros, quando perceberem que afinal a barba nasce branca, que ficam com ar de avô da Heidi, vão repensar a ideia. É que, no regresso ao trabalho, na ritual troca malandra de olhares com a dra. Sandra, a ruiva com sardas do “contencioso”, que já prometia alguma coisa, arriscam-se a que ela fique a matutar: “Afinal, o tipo é muito velho...”

Está aí “à bica”!


Como o tempo passa: são já quatro horas da tarde de sábado (e logo à noite vamos “ganhar” uma hora, não se esqueçam!). Vai-se a ver, daqui a umas semanitas, estamos a ver se os cremes para a praia estão dentro da validade. Não desanimem!

O barman holandês


É bom termos a sorte de nos lembrarem cenas em que participámos, mas que já havíamos esquecido! Há tempos, um estimado colega (cujo nome não refiro, porque não cuidei em lhe perguntar se o podia fazer) recordou-me uma história passada numa reunião da Conferência Intergovernamental para a negociação daquilo que viria a ser o Tratado de Nice, ao tempo em que eu era o representante do governo português nessa tarefa.

A presidência rotativa semestral da União Europeia pertencia então à Holanda - ou, fazendo-lhe a vontade na semântica - aos Países Baixos. Discutia-se a eventual alteração do modelo de voto nas decisões comunitárias, que teria de passar por uma "reponderação" da força relativa de cada Estado no processo decisório. O tema era muito polémico. Mudar a relação de forças entre os países foi sempre uma questão delicada e divisiva no seio da União Europeia.

Um dia, a presidência holandesa decidiu, sob a sua responsabilidade, colocar sobre a mesa uma proposta algo radical que, em especial, alterava a relação interna de poder entre os três países do Benelux (Bélgica, Países Baixos e Luxemburgo), que tinha sido mantida intocada desde a criação das Comunidades Europeias. Para os negociadores holandeses, chefiados pelo embaixador Ben Bot, que anos depois haveria de ser chefe da diplomacia do seu país, haveria que retificar essa relação, por forma a dar uma maior consideração ao fator demográfico. Nessa perspetiva, os Países Baixos eram beneficiados, porque tinham uma população substancialmente maior que a dos seus dois outros parceiros do Benelux. Exclusivamente nessa lógica, as coisas tinham uma certa racionalidade, só que a lógica em que as coisas se apoiavam estava muito longe de ser única e, muito menos, de ser consensual.

Assumir uma presidência na União Europeia implica respeitar uma certa neutralidade naquilo que se propõe. Não se espera que o país que a detem apresente, de uma forma ostensiva e despudorada, ideias que diretamente a possam beneficiar. Foi isso, contudo, que, nesse dia, os holandeses fizeram.

Acabada a intervenção de Ben Bot, o delegado belga, uma grande e experiente figura da diplomacia europeia, o embaixador Philippe de Schoutheete, um amigo que já desapareceu em 2016, pediu a palavra e, com a inteligência, franqueza e humor que todos lhe conhecíamos, disse, muito simplesmente: "Senhor presidente. Tomámos boa nota da proposta que acaba de nos apresentar em nome dos Países Baixos. O único comentário da Bélgica ao que acaba de dizer é o seguinte: o senhor portou-se como uma barman que se serviu a si próprio antes de servir os clientes".

E a proposta holandesa morreu aí. Lembrei-me disto agora, sei lá bem porquê!

O contexto

“Está descansada! Um destes dias, quando tiver tempo, eu arrumo isso!”. Não gosto que citem velhas frases minhas, fora do contexto.

sexta-feira, março 27, 2020

Países Baixos


Um dia, em Salvador da Bahia, no Brasil, à saída do Hotel Convento do Carmo, uma unidade das Pousadas de Portugal, dirigida pelo grupo Pestana, dei com esta bela placa. Nela se comemora a derrota dos holandeses, no termo da sua frustrada tentativa de dominar o Brasil. Verdade seja que o Portugal desse tempo vivia o “tempo dos Filipes”...

A maior ironia é que, em frente ao edifício onde está afixada esta placa, estava (está?) instalado o Consulado da Holanda - ou dos Países Baixos, como agora querem ser chamados, porque acham que o primeiro nome tem má fama.

Coitado do Cônsul! Numa cidade tão grande, logo haviam de pôr o seu escritório junto a um local onde se consagra a humilhação do seu país.

Por que diabo me terei lembrado disto hoje?

Humor sportinguista

Será proibido, à luz das leis de exceção, cantar o nosso hino. “Só eu sei por que não fico em casa”?

Será?

Dei comigo a pensar que isto deve ser a coisa mais parecida com estar em casa com pulseira eletrónica.

Ora bem!

A FPF decidiu não atribuir o título este ano. Como sportinguista, não posso deixar de constatar que este foi um ano em que ninguém conseguiu fazer melhor do que nós. Essa é que é essa!

Depois de amanhã!