quinta-feira, fevereiro 24, 2011

Crónicas do inesperado

Da minha passagem pelo Brasil trouxe a certeza de que é por lá que existem os melhores cronistas da língua portuguesa. De Nelson Rodrigues a Ruben Braga, de Fernando Sabino a Carlos Heitor Cony, de Millôr Fernandes a Luiz Fernando Veríssimo - o Brasil detem alguns dos grandes mestres na arte de contar uma boa história, com espírito sintético, com adjetivação q.b., com riqueza lexical, sentido de ritmo e "crescendo" de densidade narrativa, tudo servido por um sábia subordinação ao respeito pela oralidade.

Há dois dias, por amável e inesperada oferta do autor, chegou-me às mãos "Crónicas do inesperado", de Renato Prado Guimarães, que me conheceu através deste blogue. Trata-se de um volume editado pela Imprensa Oficial do Estado de S. Paulo, em 2009, ilustrado por belas fotografias de Marcos Vilas Boas, onde são reunidas mais de 40 deliciosas crónicas, espelho de uma vida rica e atenta, em que a experiência diplomática tem um papel maior. É que o autor, com um "background" de jornalismo profissional na "nata" da imprensa paulistana, é embaixador aposentado do serviço diplomático brasileiro, residindo atualmente na Alemanha. E, tal como alguns dos grandes mestres que atrás referi, é possuidor de uma escrita ágil, fluente e culta, através da qual desenha, a traço fino, vivências riquíssimas, que conosco partilha, com grande elegância estilística.

Sem o menor exagero, quero dizer que foi dos livros que mais prazer me deu ler, nos últimos meses. Com a devida vénia, a necessária e completa citação da fonte  e a indulgência do autor, vou-me permitir, daqui a uns dias, transcrever aqui alguns extratos deste excelente livro.

quarta-feira, fevereiro 23, 2011

Pseudónimos

Ontem, no "Le Monde" um grupo de diplomatas, sob o pseudónimo de "Groupe Marly", expressou uma violenta crítica contra a política externa francesa. É muito raro os profissionais da diplomacia virem a terreiro desta forma. Mas não é inédito, quer em França, quer noutros países.

Portugal não tem essa tradição, até porque, por uma regra com escassas (e lamentáveis) exceções, as grandes orientações assumidas, em democracia, em matéria de política externa tendem a corresponder a um alargado consenso político.

No final dos anos 80, alguns diplomatas no ativo sentiram, contudo, a necessidade de se expressarem coletivamente, sob pseudónimo, em artigos de imprensa - neste caso por motivos que relevavam da defesa de importantes interesses profissionais. O pseudónimo utilizado por esse grupo foi "Luiz da Cunha", nome de uma figura tutelar da carreira diplomática portuguesa, que acabou a sua carreira como embaixador em Paris.

23 de fevereiro

Faz hoje 30 anos que a recém-restaurada democracia espanhola passou pelo seu maior teste. Um setor das Forças Armadas, esperando poder contar com a complacência conjuntural de diversas áreas partidárias e, essencialmente, com o beneplácito real, pretendeu instituir um governo com chefia militar, que responderia ao que entendia ser a incapacidade do executivo (aliás, demissionário) de Adolfo Suarez. As coisas, felizmente, não correram bem para os golpistas e a Espanha pôde prosseguir na construção da sua magnífica democracia.

Nesse tempo, eu vivia na Noruega. Por esses dias, em casa do meu colega espanhol em Oslo estava, de visita, uma sobrinha do promotor militar da revolta, o general Milans del Bosch. Recordo a noite de 23 de fevereiro, em que as incessantes repetições televisivas do "todo el mundo al suelo!", do "carabinero" Tejero eram interrompidas por chamadas telefónicas angustiadas de e para Madrid, na tentativa de saber mais pormenores sobre o evoluir da crise - com os presentes a disfarçarem, delicada e educadamente, o radical contraste das suas posições. E comigo a fazer brindes íntimos, a comemorar a derrota dos golpistas.

Hoje sabemos bastante mais sobre a "tejerada", sobre o papel central do general Armada em todo o golpe, sobre o tempo e o modo do rei nessas horas e, também, sobre a atitude - não tão clara quanto seria de esperar - de alguns partidos políticos, que viriam a revelar-se centrais na nova democracia espanhola. Para a história do momento, ficou o gesto valente de Adolfo Suárez, de Gutiérrez Mellado e de Santiago Carrillo, as três únicas pessoas nas bancadas das Cortes espanholas, entre algumas centenas, que revelaram coragem física e dignidade cívica, ao recusarem esconder-se sob as mesas, como lhes era ordenado pelos invasores do parlamento.

Nestas três décadas, li muita coisa sobre a transição espanhola e, em especial, sobre esse dia decisivo, as mais das vezes através de relatos de personalidades políticas da época. Há uns meses, um amigo espanhol, num congresso em Badajoz, recomendou-me a obra "Anatomia de un instante", de Javier Cercas. Não tendo conseguido então a versão original espanhola, comprei, há meses, uma tradução francesa e não dei por mal empregue o tempo da sua leitura. O autor não é um historiador e, ao que parece, tinha inicialmente a intenção de escrever um romance baseado no evento. Talvez por essa razão, o seu texto tem um ritmo muito diferente do tradicional, ao utilizar um método pouco comum de abordagem do fenómeno "23 de fevereiro", enveredando por uma segmentação do papel de cada uma das três personagens políticas acima referidas, tratando-as na sua contextualização própria, recortando-as psicologicamente, no seu brilho e nas suas sombras, sem, porém, perder o cenário global de fundo. E, não sendo, na base, um historiador, Cercas não esquece nunca os factos.

Aprendi imenso com este livro, o que significou dessacralizar algumas figuras, assumir as suas fraquezas mas, ao mesmo tempo, descortinar outros atores que só são secundários para a má historiografia. Não é um livro fácil, em especial para quem não seja iniciado na história contemporânea espanhola e, em especial, na trama do 23-F, mas, para mim, foi uma obra fascinante.

Pastoral

Nunca tinha pensado que poderia vir a ter o ensejo de ler uma Pastoral sobre o Sporting.

Com o devido respeito, aqui deixo o piedoso e oportuno pronunciamento.

Em tempo - Alguém notou que "Mubarak se demitiu antes de Paulo Sérgio, embora do ponto de vista humanitário os pretextos para as respectivas demissões sejam equivalentes."

segunda-feira, fevereiro 21, 2011

Líbia

Os acontecimentos na Líbia recordam-me, inapelavelmente, outros tempos.

Num final de tarde de 1977, à chegada a Tripoli, tudo começou a tornar-se-nos estranho, logo à saída do avião. O funcionário líbio que aguardava a delegação portuguesa, com uma cara de poucos amigos, acompanhou-nos, sem um gesto de menor simpatia, para a longa fila que antecedia a verificação dos passaportes. E aí nos deixou, indo colocar-se do lado de fora da infernal alfândega. Por lá nos aguardava, passada que foi uma boa meia-hora de trapalhadas burocráticas. Bela ajuda!

A delegação técnica portuguesa, que eu integrava, era composta por três elementos. Vínhamos mandatados para colocar as assinaturas finais nos protocolos para obras de construção civil e obras públicas que, desde há uns meses, estavam a ser negociados entre entidades portuguesas e a administração líbia.

Tudo começara no ano anterior, em 1976. Uma missão oficial líbia, que se deslocara a Lisboa para um congresso partidário, fora recebida protocolarmente no Ministério dos Negócios Estrangeiros, pelo secretário de Estado, João Lima. As relações entre Lisboa e Tripoli eram mínimas. A Líbia tinha uma embaixada em Lisboa, chefiada por um encarregado de negócios, mas Portugal não tinha qualquer representação na Líbia. E foi com alguma surpresa que vimos então entrar alguns membros da delegação líbia, sobraçando uns estranhos tubos de cartão (lembro-me de um comentário: "serão tapetes?"). O mistério iria esclarecer-se, minutos depois: os visitantes traziam projetos de obras públicas, para a construção das quais pretendiam contratar empresas portuguesas. Era a forma como queriam demonstrar o interesse em reforçar as relações bilaterais.

A capacidade lusa de improviso torna-nos, embora raramente, capazes de ações expeditas e eficazes. Foi o que aconteceu. Em poucas horas, montámos um programa para a delegação, com a tradicional visita ao LNEC e a algumas empresas. E, também com uma incomum prestreza, cerca de um mês e pouco depois, por decisão do ministro José Medeiros Ferreira, uma delegação portuguesa, creio que composta por 8 pessoas, de diversos setores técnicos (engenharia, banca, obras públicas) partiu para a Líbia.

Fui encarregado de representar o MNE nessa delegação. Eu era então um jovem diplomata, com pouco mais de um ano de casa. E logo constatei, com o orgulho dos novatos, que iria ser o primeiro funcionário diplomático português a visitar, em representação do MNE, esse país do Magreb.

Essa visita de 1976 durou quase 20 dias e os seus resultados não podiam ser melhores. Conseguíramos lançar as bases para uma futura presença empresarial portuguesa na Líbia. Recordo que fomos então recebidos com "tapete vermelho", desde a chegada ao aeroporto até à nossa partida, rodeados de todas as atenções.

Precisamente pelo contraste com esse precedente, os três integrantes desta nova missão, que haviam feito parte da delegação anterior, estavam muito surpreendidos com a frieza com que, menos de um ano depois, estavam a ser tratados. E mais admirados ficámos quando, em lugar do razoável hotel onde antes nos haviam colocado (Tripoli não tinha, à época, boas instalações hoteleiras), nos enviaram para um subúrbio, bastante distante do centro, onde nos foi proporcionado um alojamento bem medíocre. 

Durante três dias, fomos sujeitos a um completo isolamento, agravado pela retenção dos passaportes e dos bilhetes de avião. Além disso, não havia então telemóveis e as comunicações telefónicas com Lisboa revelaram-se impossíveis. A nossa perplexidade era imensa. Estávamos totalmente sem contactos, num país de língua estranha, havíamos perdido já as reservas de voos e, acima de tudo, ninguém nos dizia nada. Restava-nos ir testando as diferenças entre o "couscous" do almoço com o "couscous" do jantar e medir a muito discutível qualidade dos refrigerantes que nos serviam, constatada, como é óbvio,  a rigorosa impossibilidade de acesso a qualquer álcool.

Até que, ao final do quarto dia, apareceu para me ver o antigo encarregado de negócios líbio em Lisboa. Em termos veementes, manifestei-lhe o nosso desagrado e a nossa surpresa com o acolhimento que nos estava a ser dado, em completo contraste com o do ano anterior. E perguntei-lhe, de forma um pouco brutal, se, como parecia, estávamos a ser "reféns" e de quê. 

Senti que o homem ficou um tanto tocado com a minha forte reação, a qual, aliás, tinha por objetivo evitar que ele fosse confrontado com o estado de bem maior exasperação do chefe da delegação, que tencionava fazer um "casus belli" da situação bizarra em que nos encontrávamos.

E foi então, na conversa com esse colega líbio, que percebi, a razão de tudo.

- Você deve compreender que, depois das declarações portuguesas em Copenhaga, tenha havido uma reação da nossa parte, disse-me o diplomata.

- Declarações em Copenhaga? A que é que se está a referir?

- Então não sabe?! O seu primeiro-ministro anunciou, durante uma reunião da Internacional Socialista, na Dinamarca, que Portugal ia estabelecer relações a nível de embaixada com Israel. O mundo árabe e o meu governo ficaram ofendidos, claro!...

Assim fora, de facto. O Dr. Mário Soares decidira o início de uma mudança de política face a Israel, a qual, aliás, não deixaria de ter algumas consequências políticas internas, levando (entre outras razões, ao que parece) à demissão do ministro Medeiros Ferreira (ver aqui). Mas a última coisa com que o Dr. Mário Soares sonharia é que, no dia seguinte àquela sua declaração, uma delegação portuguesa ia aterrar no maior adversário norte-africano de Israel!

Fiz ver ao meu colega líbio a insensatez da nossa "quarentena" - a qual, repeti, a nossa delegação quase era obrigada a interpretar como um "rapto", dado que, sem bilhetes nem passaportes, estávamos tecnicamente impedidos de sair do país. Assim, para além das consequências práticas para aquilo que nos tinha levado à Líbia, adverti de que estavam criadas as bases para um "sério incidente diplomático".

Creio que o diplomata líbio mediu bem a situação e disse ir fazer o possível para a resolver de forma expedita. E fez. Para a história (com "h" pequeno), acabámos por ser recebidos logo no dia seguinte, assinámos os acordos, embora com alguns curiosos incidentes de percurso à mistura, que não vêm para o caso. 

Depois dessa visita, muitas obras públicas foram construídas na Líbia por mãos portuguesas, naquele que foi um excelente exemplo de "diplomacia económica", embora com alguns quase "reféns" à mistura...

Como disse, os tempos são hoje outros, lá pela Líbia. Eu recordei os meus.

domingo, fevereiro 20, 2011

Euro

Há quatro anos, quando vivia no Brasil, fui convidado para fazer uma palestra na universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Antes do evento, foi-me oferecido um almoço, por responsáveis e professores. A certo passo da refeição, um docente canadiano, atirou-me, de chofre:

- A vossa zona euro está a dar sinais de degradação. A Alemanha e a França começam a não conseguir cumprir os critérios de convergência. Quantos anos mais Portugal conseguirá resistir, antes de ser forçado a abandonar a moeda única?

Confesso que fiquei aturdido. Até então, nunca ninguém me tinha colocado semelhante questão, que, à época, me parecia sem o menor sentido.

Recordo-me bem do que respondi:

- O custo que poderá representar, para Portugal, a tomada de medidas que venham a revelar-se necessárias para se manter na zona euro será sempre muito inferior àquele que o país teria de suportar se acaso viesse a ter de sobreviver fora dessa mesma zona, de regresso a uma moeda nacional.

O mundo deu, entretanto, muitas voltas e a discussão sobre a nossa posição face à "eurozona" anda agora por aí. Mas continuo a acreditar piamente na resposta que então dei.

Mísia

... e, regressando ao fado, noto que Mísia voltou a Paris, para um espetáculo em que deu voz a textos escritos por mulheres portuguesas, que intitulou "Senhora da noite". Por lá se encontram versos de Agustina, Hélia Correia, Lídia Jorge, Adriana Calcanhoto, Amália e da própria Mísia.

Ontem, como me dizem que aconteceu nos restantes dias, o magnífico teatro Bouffes du Nord estava a abarrotar, com o fiel público que Mísia soube por aqui criar e que lhe correspondeu em pleno. À sua cuidada presença em palco, servida por um bom apoio instrumental, Mísia soma uma capacidade muito rara de comunicação com a plateia, onde sempre se insere uma atenção particular aos portugueses presentes.

Surpreende-me sempre a ousadia da cantora, que teima em seguir um caminho exigente e inovador em matéria de poemas e, frequentemente, na própria seleção das músicas, embora seja cada vez mais constante o recurso a temas tradicionais, em detrimento do "outro fado" que ensaiou em alguns dos seus primeiros discos. O que, para o meu gosto, é uma boa notícia.

Em tempo: a pedido, aqui fica um belo fado de Mísia.

Resignação II

"Estivemos no limite da banca rota", escreveu a agência estatal Lusa, julgando citar Pacheco Pereira.

Manifesto a minha solidariedade pessoal com a opção do jornalista: sempre é preferível ter a "banca rota" do que cair na "bancarrota".

Não se pode... ensiná-los? Ou será já irremediavelmente tarde?

Resignação

"Notícias às 24", RTPi, há minutos: "O presidente Saleh, do Iémen, anunciou que se vai resignar dentro de dois anos".

E nós, resignamo-nos com este "jornalismo"? 

sábado, fevereiro 19, 2011

João Moniz

Há já algum tempo, tive uma mostra sua na Embaixada. Na sexta-feira, fui ver os seus novos trabalhos, nas paredes do Consulado-Geral de Portugal em Paris, na exposição "Singularités du blanc", que é possível visitar até 11 de março.

João Moniz trabalha entre Lisboa e Paris. Nesta sua nova série, a cor desempenha um papel cada vez mais relevante, sobre o seu branco tradicional.

Cristina Branco

Uma das maiores vozes do nosso fado regressa agora com um novo disco, chamado "Não há só tangos em Paris". 

Pois não, também há por aqui fados e, na minha muito pessoal opinião, pena é que a fadista os não privilegie nos seus discos e no seu percurso musical. É que se a sua inegável versatilidade lhe facilita tomar outros caminhos, para além do fado, talvez Cristina Branco um dia venha a perceber - como outros cantores portugueses tardiamente entenderam - que a fidelização de um público se faz pela afirmação de uma identidade específica. O ecletismo é uma virtude, mas a virtude nem sempre é popular.

sexta-feira, fevereiro 18, 2011

Carta de Inglaterra

Para um diplomata, o regresso a uma cidade onde viveu estimula um inevitável (e às vezes obsessivo) exercício de comparação das duas realidades temporais. No meu caso, sinto também um incontrolável tropismo para fazer juízos pessoais de valor sobre as permanências e as mudanças. Feitios...

Sucedeu-me agora com Londres, em dois dias que por lá passei.

Gostei de passear na calma de algumas ruas de Kightsbridge ou no bulício da Oxford Circus, de voltar a testar os sentidos no majestoso Food Hall do Harrods, de comprar chás bizarros no Fortnum & Mason, de me "atulhar" de livros na serenidade civilizada da Waterstone's de Picadilly, de apreciar as montras de fatos em Saville Row e das lojas de camisas em Jermyn Street. Não gostei de ver a Ryman, onde comprei as minhas primeiras "agendas-para-ano-e-meio", ter sido substituída por um loja de tecidos, de ver fechado para sempre o Oriel de Sloane Square, onde almoçava a lavar o olhar nas belezas londrinas, ao primeiro sol da primavera, de concluir que destruíram a casa de Park Lane onde Edgard P. Jacobs colocou o professor Mortimer a morar, no "A marca amarela". Gostei de ver a noite da City transformada numa festa que não existia no meu tempo, de sentir que o Peter Jones continua orgulhosamente impermeável à mudança, e que, poucos metros adiante, numa transversal a King's Road, a John Sandoe persiste com a mais criteriosa (e que só é anárquica para os não iniciados) escolha de livros de toda a cidade. Gostei de regressar à poeira de pub do Granadier, de ler que Taki segue politicamente incorreto e reacionário no insubstituível The Spectator, que o Evening Standard, apesar de gratuito, continua a dar razão a quantos acham imprescindível um jornal da tarde e de confirmar que, em matéria de rigor financeiro os motoristas de táxis londrinos batem bem a Standard & Poor's. E gostei, muito!, de rever amigas e amigos de sempre, essas âncoras, dispersas mas sempre sólidas, de uma vida de andarilho.

E, claro!, gostei de estar com mais de duas das quatro centenas de colegas "scholars" da Crabtree Foundation, no jantar anual de gala, que, desde 1954, sempre tem lugar na 4ª feira mais próxima do Valentine's Day, nessa perene instituição que se dedica ao culto da etérea memória de um homem que tem um passado cada vez mais cheio de futuro, que dá pelo nome de Joseph Crabtree. E, embora com o peso da especial responsabilidade que incumbe a um "foreigner" (não devemos ser mais de uma dezena, num mar de "bifes"), não direi que não tenha gostado da surpresa de ser entronizado como presidente anual da Crabtree Foundation, para 2011/2012. O Bartolomeu Cid dos Santos, por cuja mão entrei para este clube de culto, há quase duas décadas, deve estar a rir-se a bom rir...

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

"Diplomatie"

Intitula-se "Diplomatie" uma peça recentemente estreada, aqui em Paris, em que é imaginado um diálogo, em agosto de 1944, entre o cônsul sueco em Paris e o general alemão que comandava as tropas ocupantes, a quem Hitler havia ordenado que destruísse a capital francesa, na véspera da sua libertação pelas tropas aliadas. 

Na peça, o diplomata acaba por convencer o militar a não respeitar as suas instruções, através de um argumentário feito de inteligência e de intuição, onde elementos de humanidade se confrontam e misturam com lógicas políticas. Para a História: sabe-se que o diálogo nunca teve lugar, embora o cônsul sueco conhecesse pessoalmente o general. Este último viria a explicar as razões da sua decisão num livro de memórias, em que revelou como superou - da melhor forma! - o dilema que o atravessava.

Na audiência, os parisienses como que tomam consciência de que a sua bela cidade esteve "por um fio", com todos os seus grandes monumentos prestes a serem dinamitados. E, não obstante nunca se deixar de estar no domínio da ficção, talvez esta peça possa contribuir para saiam da sala com uma melhor imagem dos diplomatas...

quarta-feira, fevereiro 16, 2011

"Convite"

O truque só ficou revelado após alguns dos interlocutores terem trocado, entre si, experiências similares.

Aquele diplomata, homem jovial e simpático, já desaparecido há muito do mundo dos vivos, cuidava sempre em inquirir, através dos seus contactos, qual era a data e hora da partida das delegações portuguesas que lhe constava que visitavam a cidade onde estava colocado, como Cônsul-Geral.

Imaginemos, então, que uma delegação tinha previsto partir, de regresso a Portugal, numa 5ª feira, num voo à hora do almoço. Sabedor disto, o nosso homem, aí pela 3ª feira, cuidava em procurar o contacto com a chefia da delegação e formulava o seu "convite":

- Soube que estão por cá. Tenho uma semana complicada, cheia de compromissos há muito agendados, mas teria um grande prazer em convidá-los para jantar, em minha casa, na 5ª feira à noite.

A resposta era a óbvia. Os convidados "revelavam" que iriam partir na tarde desse mesmo dia, pelo que não podiam corresponder ao amável "convite" do Cônsul geral.

E o diplomata, "compungido", lá retorquia:

- Que pena! Tinha tanto gosto...

terça-feira, fevereiro 15, 2011

Françoise Giroud

Françoise Giroud foi uma figura marcante do jornalismo francês. Fundadora, com Jean-Jacques Servan-Schreiber, do "L'Express", destacou-se na afirmação do papel da mulher na sociedade francesa, o que a levaria a um governo de Valéry Giscard d'Estaing.

A sua biografia, agora publicada pela Grasset, representa-a como uma mulher cuja genialidade se cruza com a tragédia, onde os êxitos profissionais da vida se confundem com uma vida pessoal atribulada. O livro de Laure Adler tende, porventura, a sobrevalorizar excessivamente o tempo do "L'Express" e a dar a este, bem como a Servan-Schreiber, um lugar central no texto, assentando muito na (bem conhecida) bibliografia de Giroud e menos em testemunhos que a tenham por centro da investigação.

Mesmo assim, ou talvez porque na história do "L'Express" muita da nossa geração se revê bastante, o livro agora publicado tem interesse.

segunda-feira, fevereiro 14, 2011

Navegações

Era no tempo em que, no palácio das Necessidades, ainda havia ocasião para longas conversas (mas podia passar-se hoje...). Um jovem diplomata, em diálogo com um colega mais velho, revelava o seu inconformismo. A situação económica do país era complexa, os índices nacionais de crescimento e bem-estar, se bem que em progressão, revelavam uma distância, ainda significativa, face aos dos nossos parceiros. Olhando retrospetivamente, tudo parecia indicar que uma qualquer "sina" nos condenava a esta permanente "décalage". E, contudo, olhando para o nosso passado, Portugal "partira" bem:

- Francamente, senhor embaixador, devo confessar que não percebo o que correu mal na nossa história. Como é possível que nós, um povo que descende das gerações de portugueses que "deram novos mundos ao mundo", que criaram o Brasil, que viajaram pela África e pela Índia, que foram até ao Japão e a lugares bem longínquos, que deixaram uma língua e traços de cultura que ainda hoje sobrevivem e são lembrados com admiração, como é possível que hoje sejamos o mais pobre país da Europa ocidental.

O embaixador sorriu, benévolo e sábio, ao responder ao seu jovem colaborador:

- Meu caro, você está muito enganado. Nós não descendemos dessa gente aventureira, que teve a audácia e a coragem de partir pelo mundo, nas caravelas, que fez uma obra notável, de rasgo e ambição.

- Não descendemos? - reagiu, perplexo, o jovem diplomata - Então de quem descendemos nós?

- Nós descendemos dos que ficaram por aqui...

Bilhete de Paris

Há dias, passou aqui por Paris a jornalista Maria João Avillez. Falámos bastante sobre a Europa, em especial sobre o que resultou do último Conselho Europeu. 

No seu "Dia sim, dia não", na revista "Sábado" (10.2.11), que só ontem pude ler, sou citado a dizer:

"Daqui de Paris, sinto existir, um pouco por toda a Europa, a consciência de que chegámos a um processo de inevitável reajustamento dos equilíbrios de poder, que está já muito para além daquilo que pode ser gerido no quadro do Tratado de Lisboa. Goste-se ou não, as estruturas comunitárias foram ultrapassadas pela força do poder que determina a gestão do euro. A Europa percebe agora, com toda a crueza, que, no fundo, “aderiu ao marco”, pelo que tem de adotar, não apenas os critérios do “pacto de estabilidade e crescimento” que Theo Weigel impôs em 1997, mas outros que Berlim agora acha imperativos, à luz da recente experiência, para controlar possíveis derivas na zona euro, para cuja colmatação é pedido um esforço financeiro particular à Alemanha."

E, sobre a nossa posição nacional, disse:

"Neste contexto de exigência, Portugal assume, sem pejo, a sua fragilidade conjuntural mas, igualmente, mostra uma determinação rara para tomar todas medidas necessárias para lhe fazer face. Sem surpresa, alguns países europeus mostram bem maiores dificuldades do que nós para incorporarem o novo “pacto para a competitividade”. Não o lemos como um “diktat” de Berlim, mas como o último e razoável comboio para salvar a família do euro. Também por isso, parece-nos prematura a imputação de que, de uma Alemanha europeia, está a nascer uma simples Europa alemã."

É, de facto, o que eu penso. Outra coisa é saber se terei, ou não, razão.

domingo, fevereiro 13, 2011

Vergès

Jacques Vergès é uma espécie de "advogado do diabo". Aos 86 anos, esteve, há semanas, na Costa do Marfim a preparar a fundamentação para sustentar juridicamente a teimosia de Laurent Gbagbo em não abandonar o poder. No passado, entre muitas outras figuras, defendeu o terrorista Carlos, o nazi Klaus Barbie, o exterminador Pol Pot e outras figuras de recorte controverso. Saddam Hussein e Slobodan Milosevic estão entre os que não aceitaram a sua ajuda. George W. Bush é um nome que já anunciou desejar defender, no caso de ser possível a sua inculpação.

Membro da resistência francesa na 2ª guerra mundial, foi militante comunista e anti-colonialista, mantendo-se sempre próximo das ideias radicais de esquerda. É filho de pai francês e de mãe vietnamita, tendo vivido na ilha de Reunião e na Argélia, onde se tornou mundialmente famoso pela defesa com sucesso de uma militante da FLN, que viria a ser sua mulher. A sua história pessoal tem um "buraco negro" entre 1970 e 1978, período em que, sem explicação até hoje, desapareceu  de cena - o que gerou lendas sobre a sua eventual presença junto dos Khmers Vermelhos, do Cambodja, ou em campos da guerrilha palestiniana.

Mas a que propósito falo hoje dele aqui? Porque Vergès, numa iniciativa inédita mas muito curiosa, apresenta, duas vezes por semana, um espetáculo num teatro parisiense. Num monólogo de mais de hora e meia, em cenário do um escritório de advogado, fala dos criminosos e dos seus casos, contando histórias e desenhando perfis, tentando demonstrar que a sua famosa "estratégia de rutura", com que orienta as defesas, acaba por ser um modo de melhor fazer conhecer as pessoas por detrás dos crimes. A forma como apresenta a sua relação com a justiça torna a sua apresentação, apesar de algo monocórdica, bastante atrativa na substância. Com o caráter chocante que sempre confere a tudo em que se envolve, Vergès dá à sua prestação teatral o título de "Serial plaideur", da mesma forma que, em 2007, se prestou a ser a cara do filme com o nome de "O advogado do terror".

A juristas conhecidos que venham a Paris - com especial dedicatória ao meu velho amigo Marinho Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados - recomendo esta provocatória "performance" do seu incómodo confrade francês, em cena até 11 de abril.

Cumplicidades

Quando, aqui, há dias, eu me referia à proximidade das diplomacias da Índia e de Portugal, estava longe de pensar no que iria suceder, horas depois, no Conselho de Segurança da ONU.

Durante uma sessão a que estavam presentes os ministros dos Negócios Estrangeiros dos países que têm assento nesse órgão, o ministro indiano, por lapso, agarrou no texto que estava sobre a mesa, que o ministro português tinha preparado para a sua anterior intervenção (mas que não tinha usado, porque fez um improviso) e leu-o, durante alguns minutos. Só quando, a certo ponto, se dá conta de que o ministro fala como se fosse membro de um país da União Europeia é que é interrompido pelo seu embaixador, que lhe dá o texto do discurso indiano, não sem que tivesse havido uma embaraçosa hesitação.

Alguns detratores da vida diplomática viram neste incidente a prova de que, salvo em pormenores, a "langue de bois" das intervenções "onusinas" acaba por ser comum aos vários países. Mas as coisas podem ser vistas de outra forma: é cada vez mais natural que membros de governos democráticos possam sentir-se próximos na afirmação de uma linguagem comum sobre grandes temáticas internacionais. Por isso, o político indiano ter-se-á sentido confortável com o tom adotado no nosso discurso. A qualidade de membro da UE é que já seria demais!

Veja tudo aqui.

Falando de acordos

Ontem, na CNN Portugal, a propósito dos instrumentos jurídicos que, seguramente, estariam a ser preparados para a deslocação - afinal, ainda...