sábado, julho 24, 2010

Vuvuzelas

O Sporting foi o primeiro clube português a anunciar a proibição do uso de vuvuzelas no seu estádio.

Pode não vir a ganhar mais nada, mas já ganhou o campeonato do bom-senso.

Suissa

Ontem, numa emissão da RTP dedicada às comunidades portugueses no exterior, ao ser referido um tema de literatura, apareceu a identificação de um cidadão como residente em Genebra, na "Suissa".

É claro que o escriba da legenda não estava a procurar transcrever a forma antiga do nome do país alpino. Fê-lo, obviamente, por efeito dessa iliteracia que hoje se propaga como endemia, sem vacina à vista, na nossa comunicação social, que leva a erros de calibre bem mais chocante, de que as legendas que correm no fundo dos telejornais são recorrente sintoma.

O grande problema é que, no caso vertente, e muito provavelmente, ninguém fez qualquer observação ao "jornalista" em causa, os poucos que terão notado o erro não o devem ter considerado relevante e, dessa forma, tudo vai continuar na mesma. Aliás, é nessa "cultura" de facilismo e de falta de exigência que alegremente prossegue o "serviço público" fornecido por essa boa ideia transformada em tragédia "pimba" que dá pelo nome de RTP Internacional.

Álvaro Salema

Ontem, numa conversa, veio à baila o nome de Álvaro Salema. Muitos dos leitores deste blogue não o conhecerão bem, alguns nem sequer terão ouvido falar deste ensaísta e jornalista que desapareceu, com 77 anos, em 1991, e que, com Álvaro Cunhal, chegou a dar aulas a Mário Soares, no Colégio Moderno.

Devo começar por dizer que, de há muito, considero que Álvaro Salema é uma das  importantes figuras portuguesas a que o 25 de abril, por que tanto lutou, não fez a justiça que lhe era devida. A culpa é de todos nós, a começar pelo próprio Álvaro Salema. Já explico porquê.

Salema foi uma figura da maior importância na vida intelectual portuguesa, a partir dos anos 40. Professor e crítico literário, foi um escrupuloso cultivador de uma ética pública de grande rigor, que o levava a um auto-apagamento que acabou por afetar a visibilidade do lugar que lhe é devido na história cultural de Portugal. A política era, para ele, um espaço de exercício de serviço à comunidade, pelo que alimentava uma exigência que o tornava quase intolerante perante os que entendia que dela apenas se serviam. Com um intocável currículo na luta pela democracia,  ao tempo em que era arriscado assumi-la como objetivo, foi preso e perseguido. Nunca procurou cargos ou prebendas, alimentando mesmo um cáustico desprezo por quantos viviam nessa obsessão.

Durante muitos anos, Álvaro Salema foi redator principal do "Jornal do Comércio", um dos mais antigos diários económicos portugueses. Dirigiu os suplementos literários do "Diário de Lisboa" e de "A Capital" - ao tempo em que esses espaços tinham um papel fundamental na vida intelectual do país. Colaborou em inúmeras publicações, como a "Seara Nova", o "Sol Nascente" ou o "Colóquio Letras", tendo obtido distinções internacionais pelos seus trabalhos de crítica literária, distribuídos por vários livros.

Por razões que não vêm para o caso, tive o ensejo de privar com Álvaro Salema. Dele recolhi exemplos de postura ética que me levam a manter uma grande admiração pela sua memória. Achei importante dizê-lo aqui.

sexta-feira, julho 23, 2010

Talentos

É muito gratificante, como hoje aconteceu na distribuição dos Prémios Talento, ver indicadas e distinguidas várias personalidades que orgulham a nossa comunidade em França. 

A multiplicidade dos "talentos" nomeados - e muitos outros o poderiam ter sido - é bem demonstrativa do modo como os portugueses em França têm sabido construir os seus percursos de êxito. É o próprio nome de Portugal que resulta prestigiado dessa sua afirmação.

quinta-feira, julho 22, 2010

Forcados

A imagem que hoje deu a volta ao mundo - uma figura, dentre os assistentes da estrada, vestido de forcado a correr atrás dos líderes da etapa do Tour de France que terminou no histórico Col du Tourmalet - ilustra bem as dificuldades da diplomacia pública portuguesa.

"Slow limite"

"Grosses têtes" é um divertidíssimo programa radiofónico diário da RTL, que muitas vezes roça o "politicamente incorreto". Dirigido, desde 1977 (!), por Philippe Bouvard, é feito de questões muito diversas, colocadas pelo animador aos convidados, geralmente gente com muita graça e sentido de humor. Às vezes, são horas de grande gozo!

Há dias, um dos convidados, chamado a qualificar a canção "Et si tu n'existais pas", de Joe Dassin, saiu-se com esta: "No meu tempo, era chamado o "slow limite". Num baile, se com ele não se conseguisse 'sacar' uma namorada, então o caso estava perdido".

Aqui fica, para análise. ilustrada por uma imagem desviada dessa "Enciclopaedia Britannica" do romantismo que é o Criativemo-nos.

quarta-feira, julho 21, 2010

Ainda um telegrama

O curto e incisivo telegrama que ontem referi num "post" fez-me lembrar uma outra historieta similar, também famosa na nossa "casa".

Um dia, a um embaixador, foi pedido por telegrama que efetuasse uma determinada diligência, junto do ministério dos Negócios Estrangeiros local. O assunto era relativamente urgente. 

Passaram alguns dias e não houve resposta. Na antiga linguagem tradicional, que poupava artigos e preposições, Lisboa voltou a insistir: "Muito se agradeceria Vexa resposta urgente nosso ...." (indicando o número do telegrama que havia formulado o pedido).

O embaixador mantinha-se, contudo, em silêncio. O posto era distante, os telefonemas eram difíceis, a via telegráfica continuava a ser a única utilizável. 

Com paciência, a "Secretaria de Estado" (designação histórica pela qual todos nós tratamos a sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros, em Lisboa, em especial na correspondência) lá insistiu, já mais seca: "Aditamento nossos .... e .... Solicita-se resposta urgente Vexa".

Nada. O nosso homem em posto continuava a não dar sinal de si. É nessa conjuntura que o Secretário-Geral, o chefe da carreira, abandonando a prudência de estilo que os hábitos da casa sempre impunham, expediu um curto, incisivo, claro e hoje histórico telegrama, com uma única palavra: "Então?!". A história não acolheu a resposta que o embaixador terá, finalmente, dado.

Recobro privado

"Para um T3, parece-me caro demais. Não tem outras opções? É que aquela zona vinha-me mesmo a calhar! O miúdo tem a escola perto".

Não era visível a cara da senhora funcionária do hospital que, em bem alta voz, usava, sem quaisquer peias (ou comentário reprovador de colegas), o seu telemóvel, na sala de recobro, onde os doentes acabados de sair de operações "regressam", desejavelmente em sossego, ao reino da consciência. Eu acordei da minha operação com a história do T3, que durou longos minutos. Outro doente, que gemia em permanência, pareceu-me pouco capaz de se entusiasmar com a transação em curso. Os restantes, ou estavam ainda sob o efeito da anestesia ou, silenciosamente, partilhavam, como eu, este interessante diálogo sobre o mercado imobiliário lisboeta. Registo que, acabada que foi a conversa sobre o apartamento, a temática do debate entre as funcionárias passou para hipóteses de troca de tarefas laborais para o resto da semana, ou coisa assim. Sempre em voz bem alta, claro. Seria de propósito, para nos acordar?

Era assim o ambiente de atendimento "profissional", ontem, ao final da tarde, na área de "recobro" de um conhecido hospital de Lisboa. Privado, para que reze a história. Imagino que, no tempo do Mundial de futebol, o recobro se devesse fazer com transmissão direta... 

terça-feira, julho 20, 2010

Quê?

Como aqui já referi, o modo mais vulgar de comunicações entre o Ministério dos Negócios Estrangeiros e os postos diplomáticos e consulares são os chamados “telegramas”. O nome advém do facto de, no passado, ser utilizada a via telegráfica para a expedição dessas mensagens. Nos dias de hoje, não obstante a via ser diferente, a designação manteve-se.

Todas as carreiras diplomáticas estão cheias de histórias em torno de famosos telegramas, que ficaram na respetiva memória coletiva, cujo estilo de escrita foi variando ao longo dos tempos, mas que sempre marcam muito o próprio retrato de quem os subscreve.  

Os telegramas que saem de Lisboa para os postos são sempre assinados “Nestrangeiros”, como acrónimo de “Negócios Estrangeiros”. Os diplomatas em posto, quando responsáveis pelas missões (em titularidade ou por substituição), usam uma forma abreviada do seu próprio nome, assente no apelido. Quando há diplomatas com o mesmo apelido (imaginemos, Silva), têm de se diferenciar adicionando um nome próprio (Carlos Silva ou José Silva) ou um outro apelido (Cruz Silva). O que nunca deve acontecer é alguém subscrever correspondência exclusivamente com nomes próprios (Carlos Manuel, por exemplo).  

Um dia, uma jovem e azougada diplomata chegou ao seu primeiro posto e, num arroubo de independência e modernidade, modelou assim o telegrama em que deu conta da sua chegada: “Assumi gerência. Isabel”. O Ministério, que não costuma achar muita graça a estas familiaridades, respondeu-lhe, de imediato: “Isabel quê? Nestrangeiros”.

segunda-feira, julho 19, 2010

Doinel

Quem gosta dos filmes de François Truffaut - e eu gosto imenso e julgo ter visto todos - guardou para sempre no seu imaginário a figura de Antoine Doinel, representada pelo ator Jean-Pierre Léaud. Numa inesquecível série de cinco filmes, iniciada com os "Quatre-cents coups", "Doinel" foi crescendo aos nossos olhos, a partir dos 14 anos, evoluindo num modelo que, contudo, fixou algumas linhas comportamentais comuns. Sempre agitado, com um rosto de gravidade assustada, misto de timidez e indecisão, mas capaz de rasgos atrevidos de surpresa, "Doinel" foi uma figura, em parte autobiográfica, que Truffaut utilizou, com o seu imenso génio, para nos retratar uma França em mudança acelerada de costumes.

O António Alves Martins, o MFB ("militante de fato branco") do MES de que em tempos aqui já falei, ao tempo em que era estudante de sociologia por Paris, contou-me ter ido passar férias com um grupo à Côte d'Azur, que incluía Jean-Pierre Léaud, cujos humores eram difíceis de prever e controlar, mas que podia ser divertidíssimo. Uma vez, em Nova Iorque, em 1992, fiquei numa mesa ao lado de Léaud, no "Michael's Pub", onde ambos e muita mais gente tinha ido ver Woody Allen tocar clarinete, nessas celebradas segundas-feiras. Passei a noite a tentar lembrar-me do seu nome e só me veio à memória "Antoine Doinel". Hoje, com o Google no Iphone, tudo seria mais fácil.

Jean-Pierre Léaud teve uma longa carreira no cinema francês. Para além de Truffaut foi muito utilizado por Jean-Luc Godard, tendo, ele próprio, dirigido alguns filmes. A meu ver - mas esta é uma opinião que vale o que vale - nunca foi um ator excecional e jamais ultrapassou uma aceitável mediania.  Porém, há que reconhecer nele um dos nomes emblemáticos da "Nouvelle Vague" francesa, em cuja história tem um lugar.

Há dias, numa madrugada televisiva, surgiu-me uma comédia romântica de 1996, intitulada "Pour rir!", na qual Léaud contracena com Ornela Mutti. Por uma imensa curiosidade, muito centrada na evolução artística de Léaud, vi o filme até ao fim. A opção iria revelar-se quase masoquista: tive de suportar a inenarrável prestação de Mutti. Machistamente, devo dizer que ela perdeu muitos dos atributos que, durante anos, nos faziam esquecer a sua mediocridade como atriz. Enfim, não ganhei muito para a minha cultura cinematográfica. Para o que aqui me interessa, foi quase patético ver um Léaud de 60 anos assumir os trejeitos e a "coreografia" típicos de um "Doinel" adolescente. 

Há atores que guardam uma imagem que acaba por se impor nas diferentes figuras que interpretam, por mais diversas que estas sejam. São "characters" - e isso pode ser uma coisa positiva ou tornar-se pesada e desinteressante, particularmente quando os filmes e as personagens têm de ser desenhados em função dessas suas conhecidas peculiaridades. Foi o que me pareceu, neste triste "Pour rir!",com Jean-Pierre Léaud. 

Boas férias, leitores...

domingo, julho 18, 2010

SAS

O escritor francês Gérard de Villiers revelou, numa entrevista, que acaba de regressar da Guiné-Bissau. Assim, podemos esperar que, dentro de algumas semanas, venha a surgir um romance centrado em Bissau, com uma capa em que erotismo e armas serão os fatores  indispensáveis, em que surgirão misturados política, dinheiro e mulheres, num complexo de personagens reais e de figuras fictícias, projetado num cenário de mistério e risco, em que o príncipe austríaco Marko Linge e a sua eterna noiva, a condessa Alexandra, acabarão por ultrapassar grandes perigos e maiores aventuras.

Desde há décadas, a um ritmo de três ou quatro romances anuais, a receita é idêntica. A série SAS - situada entre o policial e a espionagem -, cuja edição já conheceu melhores dias, mas que é ainda um garantido êxito de livraria (de aeroporto), acaba por ser uma espécie de roteiro turístico imaginário, centrado quase sempre em países em convulsão ou com tensões à flor da política local. Já experimentei testar diversos cenários descritos por Villiers com a realidade e, podem crer, as coisas aproximam-se muito.

Recordo-me do sucesso que, aí por 1976, fez em Portugal o seu "Les sorciers du Tage", onde se ficcionava a Revolução portuguesa, misturando figuras do MRPP e da LUAR, com ambientes lisboetas, em que cenas implausíveis se cruzavam com personagens que se aproximavam da realidade.

Neste tempo de férias, recomendo a quem puder que revisite aquele curioso romance de Gérard de Villiers.

Em tempo: hoje, por outras razões menos simpáticas, fiquei a saber melhor o que podem ser os feitiços do Tejo...

sábado, julho 17, 2010

Quai

Com variações ao longo das épocas, existe em França um certo fascínio em torno da atividade do Quai d'Orsay (o "Quai", para os iniciados), o Ministério francês dos Negócios Estrangeiros.

Esta mitificação está bem patente num album humorístico de banda desenhada, intitulado precisamente "Quai d'Orsay - chroniques diplomatiques", que está a ser um sucesso de vendas. O trabalho, que já se fala poder vir a ter uma sequência em breve, é claramente inspirado na figura do antigo ministro Dominique de Villepin, cuja memória de gestão frenética da casa se reflete no traço do desenho e no tom dos diálogos, que são da responsabilidade de um seu antigo colaborador. Não sendo uma obra excecional no género, devo reconhecer que não deixa de ser interessante reconhecer na história algumas das mais tradicionais liturgias diplomáticas, na descrição do dia-a-dia dos "Estrangeiros". 

Como seria uma visão humorística das Necessidades?

sexta-feira, julho 16, 2010

Basil Davidson (1914-2010)

Alguém dizia, há semanas, que, por vezes, é preciso alguém morrer para darmos conta de que, afinal, ainda estava vivo. É uma frase cruel, de que me lembrei ontem, ao dar de caras, num jornal, com um obituário de Basil Davidson, que pensava desaparecido há muito.

Davidson faz parte do elenco dos mais proeminentes europeus que apoiavam as lutas anti-coloniais. Historiador de grande mérito, que teve a África pré-colonial como objeto privilegiado de análise, viria a destacar-se num trabalho de divulgação internacional dos movimentos independentistas nas colónias portuguesas e na denúncia do "apartheid". Essa sua simpatia pelo anti-colonialismo levou Edward Said a dizer que "in effect, (he) crossed to the other side". Antes disso, porém, Basil Davidson teve um percurso aventuroso pelos mundos da "intelligence" britânica e uma carreira jornalística muito diversificada, em grande parte como correspondente parisiense de jornais britânicos.

Lembro-me bem do impacto que teve, nos meios oposicionistas portugueses, a publicação do seu "The Liberation of Guine", editado pela Penguin em 1969, um dos mais de 30 livros que escreveu, alguns editados em Portugal, mas só depois do 25 de abril.

Jornalismo adversativo

Portugal tem uma das mais brilhantes escolas daquilo que se pode qualificar como "jornalismo adversativo". Trata-se de um apurado estilo, que exige uma grande experiência para garantir a sua hábil utilização, que consiste em relativizar e atenuar, pela negativa, qualquer notícia através da qual possa transparecer uma ideia positiva ou otimista.

Há anos que constato que esta é, verdadeiramente, uma especialização de um certo jornalismo português, muito patente nos títulos dos jornais ou dos seus "sites" informáticos, mas igualmente presente, quase por  um peculiar imperativo deontológico doméstico, nos noticiários televisivos. Os exemplos são aos milhares, pelo que aconselho o leitor a estar atento, nos próximos dias, à eventual divulgação de qualquer estatística ou linha tendencial positiva. Logo verá que, no segundo seguinte, aparece uma frase começada por: "Porém ..." ou "Mas, contudo,..." ou "No entanto,...".

Querem exemplos? "As praias portuguesas foram consideradas das mais limpas da Europa, em 2009. Porém, neste domínio, a Itália evoluiu mais do que Portugal, nos últimos dez anos". Ou ainda: "Há menos incêndios em Portugal em Julho de 2010 do que em idêntico período de 2009, mas isso pode ter ficado a dever-se às temperaturas mais baixas".

As estatísticas económicas e sociais são "bombo da festa" deste "jornalismo". Qualquer índice positivo em Portugal aparecerá, inevitavelmente, diminuído por um outro que permita negativizá-lo ou por uma oportuna comparação ("Contudo, dentro da UE, a economia de Malta cresceu mais no mesmo período" ou "No entanto, Portugal não conseguiu chegar ao nível de recuperação de postos de trabalho obtido por Chipre").

De notar que há uma "regra de ouro" nesta escola de jornalismo: nunca se "poluem" as notícias negativas com notas positivas, como por exemplo: "Desemprego cresceu no último mês, mas a taxa do seu crescimento tem vindo a diminuir de forma sensível, o que aponta para uma recuperação". 

Era só o que faltava!, estarão a dizer os cultores do "jornalismo adversativo".

quinta-feira, julho 15, 2010

Novas Fronteiras

"Europa - Novas Fronteiras", revista do Centro Jacques Delors, a entidade portuguesa que possui a melhor base de dados sobre assuntos europeus, acaba de editar mais um número, desta vez dedicado aos 25 anos de adesão de Portugal às instituições europeias.

Contribuí para este volume com um texto sobre um tema delicado: a atitude dos diplomatas portugueses em face do projeto europeu, antes e depois do 25 de abril. Tenho a consciência que não é um texto consensual, que alguns colegas meus nele se não reverão, mas é o que eu penso. Quem o quiser ler, pode fazê-lo aqui.

quarta-feira, julho 14, 2010

"Concierges portugaises"

Invariavelmente, as referências são extremamente elogiosas: "A minha "concierge" (porteira) é portuguesa. Uma mulher seriíssima. Está no prédio há muitos anos". Ouvir coisas assim da boca de parisienses, em especial de residentes nas áreas mais ricas da cidade, é uma banalidade antiga, para qualquer embaixador português. As "concierges" portuguesas são uma imagem de marca da nossa presença em Paris e esses parisienses ricos não deixam de no-lo lembrar a todo o tempo. 

Talvez por isso, aqui há uns meses, num jantar social, decidi divertir-me um pouco, quando vizinhos de mesa voltaram a falar-me, pela enésima vez, das suas "concierges" portuguesas. Era a noite do 1º de abril, e lancei para a mesa aquilo a que os franceses chamam  um "poisson d'avril", uma "mentira de abril".

Fazendo um ar (falsamente) cansado, adiantei: "Nem me falem nas "concierges"! Não imaginam o problema orçamental que elas me criam!". Parte da mesa olhou-me, surpresa, porque não era óbvia a razão do impacto das "concierges" no orçamento do embaixador português.

Sem deixar "cair a bola", e baixando o tom de voz, esclareci: "Há um segredo que vos quero contar, embora peça a maior descrição". Com isso consegui, como é dos livros, uma atenção acrescida: "Como devem imaginar, a existência de uma imensidão de "concierges" portuguesas em muitas casas de Paris não passou desapercebida aos nossos serviços secretos. Naturalmente, eles não podiam deixar de aproveitar o potencial que representava a existência de um grupo de cidadãs nacionais colocadas em lugares tão vitais para a obtenção de informações".

A cara dos circunstantes, damas e cavalheiros da alta sociedade, alegrada pelos efeitos do lauto jantar, começou a fechar-se, aos poucos, com alguns convivas, até aí mais distraídos e distantes na mesa, a sentirem-se mobilizados para tentar seguir melhor o que eu dizia. 

"Há uns anos, consciente deste potencial, um dos meus antecessores propôs "trabalhar" essa rede em termos de obtenção de informações sobre personalidades de relevo. E, desde então, a Embaixada tem uma estrutura, com cerca de 10 pessoas, que se dedica a "debriefar" as "concierges" que se prontificaram a colaborar conosco - e muitas foram. Cabe sempre ao embaixador, claro!, separar o que é a informação com algum significado político ou económico daquela que se prende com costumes, vícios e outro "gossip". Tudo isso, posso garantir, é destruído imediatamente. Depois de eu ler, claro...".

Verifiquei ter ganho, nesses instantes, o silêncio reverencial dos meus pares, com alguns homens a emborcarem um forte golo de "armagnac" e algumas senhoras a tentarem diluir num copo de água o espanto que lhes causava esta minha surpreendente "revelação".

Alentado com a audiência, continuei: "O grande problema que tenho, como compreenderão, é que as nossas "concierges", com uma ou duas exceções, não fazem relatórios escritos, limitam-se a falar para um gravador, o que obriga a um moroso e custoso processo de transcrição. Ora isso ocupa-nos muita gente e, com as restrições orçamentais a que cada vez mais estamos sujeitos, o sistema começa a tornar-se insustentável".

Os convidados, casal anfitrião incluído, já não tugiam nem mugiam, imaginando eu que à mente lhes deveria estar a aflorar a imagem da madame Conceição ou da madame Isaura, com que sempre se cruzavam nas entradas das suas belas casas do XVIème. Para moderar o impacto financeiro da minha história, mas sempre com um ar de estudada gravidade, esclareci: "É claro que nós não pagamos nada às senhoras. Elas são voluntárias. Quando muito, às vezes, pelo Natal, mando-lhes uma garrafa de Porto. É um sistema similar àqueles que vocês, em França, fazem como os "honorables correspondants", que julgo que o vosso serviço de informações ainda utiliza pelo mundo...".

Trocas de olhares foram elucidativas da perturbação que a minha história estava a causar em alguns dos presentes. Poderia a sua "concierge portugaise" ser parte dessa rede de "intelligence", alimentada pelos embaixadores portugueses? Que saberíamos deles que não devêssemos saber? 

Deixei passar algum tempo mais antes de esclarecer, para imenso gaúdio de todos e algum visível alívio de alguns, que tudo não tinha passado de uma completa invenção da minha parte, uma mentira do 1º de abril, tão necessária a distender o ambiente nestes tempos pesados de crise.

Mas, quem sabe!, isso pode não ter impedido em absoluto que alguns desses amigos,  ao sairem de casa no dia seguinte, de atentarem melhor na cara de potencial Mata Hari da sua simpática "concierge portugaise"...

A aristocracia e a Revolução


Há uns meses, alguns portugueses residentes em Paris comentavam o facto de, não obstante a Revolução Francesa, de 1789, cuja data de 14 de julho é emblemática, ter sido muito violenta para com a aristocracia - ao lado dela, a Revolução do 5 de outubro de 1910 foi uma brincadeira -, há hoje em França muitas pessoas que usam abertamente os seus títulos nobiliárquicos - nos cartões de visita, nos convites e, em geral, na vida social. Isso acontece, aliás, muito mais do que em Portugal, onde parece haver uma maior contenção e parcimónia no seu uso.

Um feroz republicano, presente à conversa, comentou: "Pois eu conheço alguns aristocratas lusitanos que continuam bem ciosos desses seus pergaminhos, não obstante haver uma lei de 1910, ainda em vigor, que impede o uso público dessas designações". E logo acrescentou, agora para espanto de todos: "E esses meus amigos, claro!, recusam-se a andar em auto-estradas". Ninguém percebeu nada! "Não andam em auto-estradas porquê?". O nosso jacobino amigo, lá esclareceu: "Ora essa, porque eles leem 'retire o título' e não querem correr riscos"...

Hoje, ao atravessar mais de metade de Portugal em auto-estradas, várias vezes me recordei que estávamos no dia 14 de julho. 

terça-feira, julho 13, 2010

Rui Knopfli





Conheci o Rui Knopfli em Londres, em 1990. Conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal desde 1975, era uma figura prematuramente frágil, nos seus 58 anos de então. Vergado e cansado, pendurado num eterno cigarro, tinha o mais caótico gabinete de que tenho memória. Homem de vícios que o foram debilitando, mantinha uma ironia cáustica e, sendo de trato fácil, era de condução diária difícil, pelos corredores da rotina diplomática a que nunca se acomodara verdadeiramente. 

Eternizado em posto em Londres, aposto que olhava para nós, companheiros episódicos, saídos da "carreira", com o olho arguto do artista, estudando-nos para nos sobreviver, até que fôssemos substituídos. Várias vezes "me passei" com os seus descuidos, das tropelias do eterno cão às suas frequentes ausências, para além de algumas teimosas presenças ainda mais complicadas. Mas nunca me zanguei com ele. Ficámos amigos, creio. 

O Rui era um fotógrafo magnífico - vale a pena ver o seu livro sobre a ilha de Moçambique - e tinha um ouvido apurado e atento ao jazz, área onde me deu a conhecer algumas excelentes novidades. Da sua terra moçambicana, contava histórias interessantes e divertidas, tributárias desse mundo que sempre lhe ficou nos genes e na escrita. Como ele próprio dizia: "Ter-se nascido ou vivido em Moçambique é uma doenca incurável, uma virose latente. Mesmo para os que se sentem genuínamente portugueses mascara-se a doenca, ignora-se, ou recalca-se e acreditamo-nos curados e imunizados. A mínima exposição a determinadas circunstâncias desencadeia, porém, inevitáveis recorrências e acabamos por arder na altíssima febre de uma recidiva sem regresso nem apelo".

Rui Knopfli foi um grande poeta, português e moçambicano. A sua "Obra Poética" está publicada pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda, com um prefácio magistral do Luis de Sousa Rebelo, há meses desaparecido. Para abrir o apetite à sua leitura, nestes tempos de férias, deixo aqui o seu delicioso (e trágico) "Justerini & Brooks":


Este punhal de veludo,
esta fria estalactite,
esta cicuta tão lenta
e que tão profundamente
fere. Esta lâmina
líquida, doirada,
este filtro parecido ao sol,
este rarefeito odor simultâneo
ao fumo, à água, à pedra.
Este adormecer antes do sono,
só preâmbulo da vigília,
que é o gélido acordar
da imaginação para
as fronteiras dormentes
do horizonte protelado.
Este trajecto subterrâneo e húmido
pelos túneis do infortúnio,
que é o adiar moroso
da morte, no prolongar
silencioso da vida,
lágrimas da noite tornadas
pranto da madrigada,
rumor débil e distante
brandindo já no sangue
o endurecer das artérias.



Rui Kopfli morreu em Lisboa, em 1997.

Botão errado

Foi ontem à tarde, na Fundação José Saramago. A homenagem ao Nuno Júdice era no 4° andar. Distraidamente, carreguei no botão do 3° andar. Ia...