sábado, março 21, 2015

Memorabilia diplomatica (XII) - Loulé em Lomé


Foi em finais de 1989, em Lomé, no Togo, um pequeno país africano escrustrado entre o Ghana e o Benim. Estávamos no acto formal da assinatura da 4ª Convenção de Lomé, estabelecida entre a então Europa a 15 e os 69 países espalhados pela África, pelas Caraíbas e pelo Pacífico.

Foi uma cerimónia interminável, com imensos discursos e com os representantes de cada país (eram 84!) a serem chamados, um a um, a assinar o texto, no palco de um grande auditório da capital do Togo. Logo que o nome de um país era mencionado nos altifalantes, e enquanto se processava a deslocação do respectivo dignitário para a mesa da assinatura, desciam, pelas escadarias laterais do anfiteatro, coloridos grupos de dançarinos, ao som de uma música alusiva ao país em causa, levando à frente a bandeira e um cartaz com uma grande fotografia do respectivo chefe de Estado.

Como a ordem era alfabética, Angola foi o primeiro país de expressão portuguesa a ser chamado. Para nossa imensa surpresa, a música que acompanhou a assinatura pelo ministro angolano foi ... a "Tia Anica de Loulé". Esperámos por Cabo Verde, para ver se alguma morna de Cesária Évora era selecionada. Qual quê! Lá saiu outra vez a "Tia Anica"! E o mesmo aconteceu no caso da Guiné-Bissau, de Moçambique e de S. Tomé e Príncipe. E, claro, a coreografia do governante português, com o retrato imenso de Mário Soares a descer nas mãos de jovens pelas escadas do auditório, também se fez ao som da mesma música. Chegámos a interrogar-nos sobre se a alusão a Loulé não seria uma compensação pelo facto do primeiro-ministro ser de Poço de Boliqueime...

Cuidámos em não suscitar a nossa estranheza pela escolha da música junto dos nossos colegas dos PALOP, tanto mais que, no caso das antigas colónias francesas, britânicas ou belgas a seleção musical foi bem africana. É que, com resquícios de radicalismo, alguns poderiam ter pensado que se trataria de uma forma encapotada de neo-colonialismo musical da nossa parte, muito embora a organização do evento fosse africana.

Ele há cada uma!

sexta-feira, março 20, 2015

Memorabilia diplomatica (XI) - O quarto

Era no tempo das negociações para a entrada de Portugal nas Comunidades Europeias, essa primeira década dos anos 80 em que, com muito esforço e dedicação, vários sectores da sociedade portuguesa foram chamados a dar o seu testemunho sobre as práticas em vigor no nosso país, a fim de as procurar tornar compatíveis com as que eram seguidas nessa Europa a que pretendíamos aderir.

Naquele dia, eram os nossos produtores de leite que explicavam qual o tipo de vasilhame que era usado em Portugal. O técnico que tinha ido a Bruxelas falava um francês sofrível, com algumas falhas que, não sendo trágicas, eram, pelo menos, cómicas.

Uma delas teve graça e ficou na história da nossa adesão. Ao referir-se ao tipos de garrafas utilizadas em Portugal para a venda de leite, terá dito mais ou menos isto: "Au Portugal, nous avons des bouteilles de litre, de demi-litre et de chambre de litre".

O espanto dos auditores de língua francesa terá sido muito, ao serem confrontados com esta criativa forma de se referir ao quarto de litro...

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

quinta-feira, março 19, 2015

"Provedor do Povo"


A revista "Visão" publica hoje o perfil desejável do futuro Presidente da República, pela pena de seis convidados. Eis o que eu escrevi, deixando entre parêntesis as partes do texto enviado e que a revista entendeu, no seu legítimo critério editorial, não aproveitar:
 
(Desde há muitos anos que nunca foi tão "fácil" escolher um Presidente. A última década ensinou bem o país). O futuro presidente, num tempo que se sabe que será muito exigente, deverá ser capaz de utilizar a legitimidade única que lhe advém do sufrágio universal para funcionar como um referente do interesse coletivo, uma espécie de um "provedor do povo", aglutinador, respeitador dos partidos mas claramente independente deles. Deve ser alguém que, no caminho para Belém, leve a ambição de ser um potenciador das reformas da modernidade do país, ligadas às funções de soberania: uma remodelação profunda do sistema de justiça, a modernização e adequação das forças armadas e de segurança às novas exigências, uma requalificação profunda da nossa máquina de representação e negociação externa. Deve ser alguém que consiga congregar vontades para os compromissos, para além dos ciclos políticos (tendentes à neutralidade absoluta da Administração Pública, para a fixação de uma agenda nacional destinada a favorecer o investimento produtivo, para uma estabilidade temporal dos critérios funcionais da Educação). No plano externo, sem duplicar as funções do governo, deve ser alguém de cuja imagem e postura o país se orgulhe, pela sua cultura, pelo seu prestígio, pelo seu rigor e pela experiência que se impõe aos seus pares. Deve ser também alguém isento de quaisquer "trapalhadas" sobre o seu passado, sobre as suas contas, com uma imagem de seriedade à prova de bala, não porque o diz mas porque todos o reconhecem assim. Será esse o meu presidente. O nome é apenas um detalhe.

Memorabilia diplomatica (X) - Diálogo


O diretor-geral estava estupefacto! O telefone interno tocara e, do outro lado da linha, tinha ouvido esta insolência:

- És um cretino! Li agora o teu papel para o ministro. Está uma boa porcaria! Espanta-te depois que ele te dê uma embaixada num sítio sinistro!

O diretor-geral, embaixador "chevronné", reagiu, com um berro surdo:

- Sabe com quem está a falar? Daqui é ... - e disse um nome que, nesses anos 70, fazia tremer meio ministério.

Do outro lado da linha, o interlocutor fez uma pausa reflexiva. Percebera que cometera uma incumensurável "gaffe". Após o que interrogou:

- E sabe quem eu sou?

- Não! - respondeu, irritado, o diretor-geral.

- Ainda bem... - disse o equivocado correspondente, numa voz prudentemente anasalada para a ocasião. E desligou, nesse tempo dos velhos telefones que não identificavam a origem das chamadas. A verdade é que o tal diretor-geral, nas vezes em que o encontrou, nunca lhe falou no assunto...

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

O Estado do Governo

O governo que, sob o seu ódio ideológico ao Estado, mais tem procurado instrumentalizar a Administração Pública, ao mesmo tempo que a despreza, humilha e enfraquece sempre que pode, é o mesmo governo que se esconde atrás dessa mesma Administração, deitando as culpas para os seus agentes e fugindo à assunção de responsabilidades políticas, logo que as coisas começam a correr mal para os seus interesses, por virtude da destruição e desqualificação organizada da máquina pública, que deliberadamente empreendeu.

Brasil

 
Na Económico.TV participei ontem num debate sobre a situação político-económica que o Brasil atravessa, no programa "Acerto de contas".
 
Pode ver aqui a 1ª parte e aqui a 2ª parte.
 

quarta-feira, março 18, 2015

Memorabilia diplomática (IX) - Uma profissão improvável

 
Era um homem encantador, que conheci num "Dez de junho", poucos dias após chegar ao meu primeiro posto, em Oslo, em 1979. Estaria na casa dos cinquenta, com um ar um pouco mais velho, porque a vida dura que o trouxera emigrado para a Noruega, onde labutava numa fábrica, não ajudava a conservar a frescura. Tinha vindo da Beira, de onde conservara a maneira de falar própria, com muitos "ches" à mistura. Viera com a sua mulher, há mais de vinte anos e o seu português, embora fluente, ressentia-se já disso. Dois filhos tinham-lhe nascido nas terras nórdicas. Nas visitas que, por vezes, me fazia na embaixada, quando por lá passava para renovar o passaporte ou tratar de qualquer outro documento, falava-me com orgulho do excelente percurso académico da prole.
 
Um dia, já no período final da minha estada no posto, convidou-nos para ir almoçar à sua casa, num fim de semana. Era um moderno apartamento numa zona fora de Oslo, mobilado e decorado ao gosto de quem trouxera a saudade do Portugal rural agarrada à pele. Notava-se que a vida de operário especializado lhe tinha garantido proventos para uma existência relativamente desafogada, a qual, claro, lhe havia dado oportunidade de construir a casa na aldeia beirã, para a qual regressaria no final da aventura norueguesa. Estava muito grato à Noruega: a ele e à mulher, dera-lhes trabalho e bom salário, usufruíam do Estado social, tinham uma boa pensão à sua espera, educara-lhes os filhos.
 
O almoço, que era um gesto bem amável de despedida, era também sobre isso. Um dos rapazes acabara, com excelente nota, o curso de Relações Internacionais, na universidade de Oslo. Com dupla nacionalidade, por consenso familiar, tinha intenção de ingressar na carreira diplomática portuguesa. Não sabiam por onde começar para concretizar o sonho do rapaz e, por isso, pediam a minha ajuda.
 
Era um miúdo tímido, com ar vivo. Ainda à mesa, perguntei-lhe pela composição do curso, para perceber se se coadunava com as nossas exigências. Quando falou - e era a primeira vez que o ouvia - caí das nuvens! O licenciado com mérito na universidade norueguesa tinha, em português, uma fala hesitante, articulava muito mal as frases, sofria de uma imensa pobreza vocabular. Ele era, simultaneamente, um norueguês educado, seguramente bem fluente, e um português que nem sequer tinha o ritmo discursivo, já de si muito pobre, dos seus pais. Copiava-lhes o sotaque, num registo caricatural, que redundava numa sonoridade bizarra. Só um ou dois anos de "imersão total" na sociedade portuguesa, com alguém que o ajudasse a adquirir uma cultura linguística suficiente, permitiria que viesse a obter as bases mínimas para poder apresentar-se ao concurso para diplomata em Portugal. E, mesmo assim...
 
Eu não sabia o que havia de dizer àqueles pais que tinham o sonho de ver o seu filho como meu futuro colega. Perguntei-lhes qual o plano de vida que tinham para ele. A confiança era imensa: apenas queriam saber os requisitos para o concurso. O rapaz haveria de se preparar, lá em Oslo, para um dia ir fazer as provas a Lisboa. Embaraçado, dei conta da imensa exigência do exame, do facto de serem centenas ou para cima de um milhar de candidatos para um admissão de uma dezena ou um pouco mais, das temáticas de História portuguesa que era fundamental dominar. Disse-lhes que havia candidatos que passavam meses consecutivos a estudar os temas para as provas, frequentando a biblioteca das Necessidades. E que a esmagadora maioria não era admitida. Os meus avisos não desanimavam o meu amigo, embora eu pudesse detetar no filho alguma perplexidade.
 
Dias depois, enviei-lhes o regulamento do concurso, agradecendo-lhes a simpatia do almoço. Parti da Noruega para Angola, algumas semanas depois. Nenhuma das caras de jovens colegas com os quais me cruzei, nos anos seguintes, nos claustros e corredores do palácio das Necessidades, era o filho daquele meu amigo português da Noruega.      

Netanyahu


Em meados de 1996, recebi no meu gabinete o embaixador de Israel em Portugal. Meses antes, em Jerusalém, ambos havíamos almoçado em casa de Itzahk Rabin, horas antes deste ser assassinado. A partilha desse momento criara entre nós uma relação especial.

Israel tinha ido a votos, semanas antes. Netanyahu acabava de ser nomeado primeiro-ministro. O embaixador cessava as suas funções, por ter atingido a idade da reforma. Ia regressar a Israel. Era uma figura muito simpática, popular em Lisboa, onde ia deixar grandes amigos. Ofereceu-me um livro de Amos Oz, que tinha acabado de ser publicado em português. Trocámos algumas palavras amáveis, como é uso nas despedidas, desejei-lhe felicidades pessoais e fui levá-lo ao pátio do Palácio da Cova da Moura, onde estava o seu carro. Lá chegados, perguntei-lhe se achava que a vitória do Likud ia induzir mudanças drásticas no processo de paz que, pelo menos no papel, parecia ainda poder subsistir. Otimista por dever de ofício, disse-lhe que não esquecia que o mais corajoso passo político que testemunhara por parte de um governo israelita - o tratado de paz com o Egito - fora dado precisamente por um governo Likud. Seria este novo governo Likud capaz de uma "paz dos bravos"?

O embaixador olhou para mim de um modo estranho. Fez um ricto facial que não me pareceu dever-se ao sol que lhe banhava a cara. Notei lágrimas a surgirem-lhe nos olhos. Agarrou-me o braço com força e, com visível dificuldade para dizer o que diria de seguida, ousou expressar: "Meu querido amigo. Provavelmente, eu não deveria estar a dizer-lhe isto, mas digo-o: com a eleição de Netanyahu, o meu país entrou no caminho da tragédia. Qualquer paz é impossível com ele. Não o conhecem!". E entrou no carro. Nunca mais o vi. Não sei se, quase duas décadas passadas sobre aquele momento, ainda será vivo. Espero bem que sim.

Lembrei-me dele há minutos. Os israelitas voltaram a escolher Netanyahu.

terça-feira, março 17, 2015

Renascença



Hoje, 3ª feira, a partir das 23 horas, estarei no espaço da Grande Entrevista da Rádio Renascença, à conversa com Raquel Abecasis.

Em tempo: veja um extrato aqui

Memorabilia diplomatica (VIII) - O adido


MNE, há mais de 30 anos. 

O diretor-geral, à secretária, de óculos na ponta do nariz, lia lentamente a informação de serviço que o adido de embaixada tinha preparado. De pé, o chefe de repartição e o jovem autor do texto mantinham-se num reverente silêncio, esperando o veredito.

Acabada a leitura, o diretor-geral levantou os olhos, deu um leve suspiro, olhou para o adido e disse: "Deixe ficar o papel", com uma implícita indicação de que o funcionário poderia retirar-se. 

Quando ficou a sós com o chefe de repartição, este último, pressentindo algum desagrado no modo como o seu superior tinha acolhido o texto, perguntou: "Não gostou da informação? Posso mandar refazê-la...".

O diretor-geral não respondeu logo. Levantou-se, caminhou para a janela e ficou a ver a ponte sobre o Tejo. Segundos depois, voltou-se, encarou o chefe de repartição, deu um suspiro ainda mais longo e inquiriu: "Você sabe quando é que este tipo entrou na carreira?". 

- Julgo que foi no concurso de há cerca de dois anos. Porquê?

- Por nada. Ele não tem culpa nenhuma, é apenas um incompetente que não sabe escrever português e que vai demorar alguns anos até se tornar num funcionário sofrível. Até lá, quem sofre é o Estado. O que eu gostava de saber é quem foram os cretinos dos membros do júri de admissão que o não chumbaram...

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

O terraço de Varufakis


A Europa vive um momento raro de teatro. Confrontada com o corpo estranho que é o novo governo grego, que desde o início lhe contesta a filosofia orientadora, foi a cara de Dijsselbloem, o ministro holandês que preside ao Eurogrupo, a que melhor refletiu, desde o início, aquele misto de perplexidade e arrogância que foi a reação do “statu quo” comunitário. O jogo facial não terminou, porém, por ali. Entre o semblante fechado de Schauble e o ar jovial, latino do Norte, de Juncker, a Europa tentou descobrir a melhor forma de flexibilizar uma Grécia desengravatada, que lhe provocava a coreografia consuetudinária. A Europa não quer perder, sabe que não pode ser vista a perder, mas tem consciência de que o sentido de responsabilidade impõe que mostre um mínimo de abertura.

Quer Bruxelas quer Atenas começaram por navegar à vista. Os gregos colocaram em cima da mesa um conjunto de ideias, racionalmente coerentes, mas completamente à revelia da ortodoxia dominante. Não era difícil prever que a resposta institucional fosse, em absoluto, negativa. A Comissão, com anos de experiência em adocicar Estados recalcitrantes, lançou, talvez cedo demais, uma espécie de boia semântica, que pudesse salvar as duas faces que se confrontavam. Os alemães, sujeitos a uma barragem mediática sem precedentes por parte das novas autoridades gregas, forçaram a recusa do gesto. A sua opinião pública, com os títulos da imprensa a ressoarem diariamente as provocações helénicas, não compreenderia. Nem a senhora Merkel ousou fazer de “good cop”. Para Berlim, a Grécia terá de “morder o pó”, como se dizia nos “westerns”…

Numa tática antiga, as instituições procuraram – e não admiraria que viessem a procurar de novo – explorar uma possível dualidade interna grega, entre um primeiro-ministro que parecia politicamente mais abordável e um ministro das Finanças que dava ares de caminhar em glória aos ombros de si próprio, como se as derrotas o fortalecessem. Por um momento, chegou a parecer que ambos diziam coisas algo diferentes, mas o tropismo da política interna acabou por também reempolgar Tsipras.

A Europa tem do seu lado o tempo, a Grécia tem a pressa, que lhe limita as opções. Bruxelas percebeu que era importante atenuar a estratégia confrontacional grega. Deu-lhe, num papel, as “instituições”, em lugar da “troika”. Em contrapartida, obrigou-a a aceitar a ida a Atenas dos seus técnicos. Os gregos avançaram generalidades, Bruxelas recupera agora a mão e quer coisas concretas, calendários, quantificações. Atenas dá sinais de que parece esperar que, na iminência de uma situação de catástrofe, a Europa conclua que pode ser politicamente mais barato um compromisso.

Pelo meio de tudo isto, Varufakis posou, de senhora ao lado, para o “Paris Match”, num terraço à vista da Acrópole, Santorini fresco no copo. Numa conferência, fez um “dedo de honra” aos alemães. Se esta tática grega funcionar, modestamente, reverei tudo o que quatro décadas de diplomacia me ensinaram. E com grande gosto, confesso.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, março 16, 2015

Memorabilia diplomática (VII) - Quem vê caras...


São duas curtas cenas que se ligam.
 
A primeira passou-se em Arusha, na Tanzânia, durante uma reunião da então SADCC, em 1988. A delegação portuguesa não tinha conseguido arranjar quartos individuais para toda a gente, pelo que eu partilhava um deles com o meu colega João Salgueiro. A certa altura da madrugada, o João acordou-me, chamando a atenção para uma gritaria no corredor do hotel. Era a voz de um homem que insultava uma mulher, a qual lhe respondia num nível idêntico de linguagem. A curiosidade é que a "conversa" era... em português! Abri a porta do quarto e vi passar uma mulher negra, lindíssima, completamente nua, com umas peças de roupa na mão, saída do presumível dissídio num quarto vizinho. Perguntei-lhe: "Precisa de ajuda?" Ela olhou-me com uma cara angustiada, respondeu com um "não" quase impercetível e desapareceu, a correr, na esquina do corredor. Era, com toda a certeza, da delegação de um país de expressão portuguesa. No dia seguinte, porém, não a descortinei em nenhuma dessas delegações.
 
Decorreram alguns meses. Uma outra deslocação, desta vez para uma reunião da Convenção de Lomé, agora na ilha Maurícia. Num corredor de acesso à sala da sessão, encontro jubiloso com a delegação de um país de língua portuguesa, com troca amigável de abraços entre os dois membros do governo e cumprimentos entre os restantes delegados. Numa dessas saudações, deparo com o sorriso tímido de uma delegada, que me disse, baixo: "Olá, como vai?". A cena foi rápida, mas o tempo suficiente para eu perceber que se tratava a minha "conhecida" de Arusha. Os nossos colegas lusófonos afastaram-se mas o Duarte de Jusus, que estava ao meu lado e ouvira a saudação da delegada, comentou: "Era muito bonita! Você conhecia-a?". O António Dias e o José Manuel Correia Pinto costumam citar a minha exclamação, que provocou gargalhadas em toda a nossa delegação, mas de que hoje, confesso, me arrependo: "Eu já vi esta mulher nua!". E na passada contei, também um tanto impudentemente, a cena de Arusha. Na altura, o Duarte de Jesus, que é um homem sempre sereno, manifestou apenas a sua surpresa por eu me recordar de uma pessoa que vira só durante alguns segundos. Gostaria de ter tido o génio de lhe responder: "Eu nunca esqueço uma cara..." 

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

Lajes


Há 12 anos, dia por dia, teve lugar aquela que ficou conhecida como a "cimeira" das Lajes, no Açores. Politicamente foi uma farsa destinada a criar a ilusão de que ainda era possível evitar que os Estados Unidos invadissem o Iraque, à procura das "armas de destruição maciça". A história e farta documentação provam hoje que essas armas nunca existiram e que a decisão de Washington estava tomada, independentemente de qualquer legitimação da comunidade internacional.
 
Portugal prestou-se ao triste papel de hospedeiro nas Lajes. Ao país, o primeiro-ministro de então, Durão Barroso, ficou para sempre a dever uma explicação pelo facto de ter conduzido Portugal a um papel servil e desonroso. O ministro da Defesa de então, Paulo Portas, também ainda há-de explicar um dia as provas da existência dessas armas, que então disse que "viu".
 
Somos um país sem memória porque, se a tivéssemos, talvez alguém chamasse hoje à pedra um bando de propagandistas, alguns sob a capa da profissão de jornalistas, feitos "neocons" da paróquia, que, dos jornais aos blogues, passando pelas complacentes televisões, argumentaram então, por semanas, em favor da "justeza" dessa guerra, que acabou por conduzir o Iraque à situação em que está, pasto para o atual Estado Islâmico e para o incontrolável caos que afeta toda a região. Um deles, hoje alcandorado a um posto de nomeação governamental, escreveu então que, se acaso se viesse a provar que as tais "armas de destruição maciça" não existiam, se "passearia nu pelo Rossio". Não há, por ora, notícias desse triste espetáculo, que o país anseia ainda testemunhar.
 
A propósito da publicação do livro de Bernardo Pires de Lima: “A Cimeira das Lajes - Portugal, Espanha e a guerra do Iraque” (ed. Tinta da China, Lisboa, 2013), escrevi no nº 44 da revista "Relações Internacionais" um texto sobre a obra, que pode ser consultado aqui

Brasil...

 
Para um amigo do Brasil como eu sou, que por aí tive a experiência mais impressiva da minha carreira profissional, o que por lá se passa traz-me sentimentos contraditórios.

Por um lado, preocupa-me ver uma sociedade atravessada por uma tensão social muito forte, com a emergência de quase "dois Brasis", que prolongam a dualidade política pressentida na última eleição. Inquietam também os apelos populistas ao regresso da ordem militar, mesmo se todos percebem que as condições para esse estado autoritário de coisas estão muito longe de existirem. Mas que a memória desses tempos de chumbo se exiba sem vergonha é, pelo menos, triste.

Por outro lado, o Brasil que ainda ontem desceu às ruas demonstra a vitalidade de um país que começa a ter plena consciência da incompatibilidade de construir uma nação desenvolvida e moderna sob um sistema político marcado pela podridão, pelo patrimonialismo e pela sujeição a uma classe política sem escrúpulos e com fortes vícios incrustados.

Nas ruas que ontem se vestiram a verde e amarelo há de tudo: desde os ressabiados pela perda de poder, que os anos Lula haviam retirado legitimamente a quem mais beneficiava do forte contraste social, até uma nova classe média, ou com esperanças de o ser, que não aceita que o seu petróleo, do "Estado Petrobras", alimente bolsos corruptos, lado a lado com uma população condenada a transportes miseráveis, serviços de saúde indignos, rodovias em descalabro, em suma, políticas públicas fortemente ineficientes.

Deve ser muito difícil gerir um país de 200 milhões de habitantes, dirigir uma administração que, para funcionar, tem de conseguir aliar sob o mesmo programa mais de uma dezena de partidos, acomodar os seus interesses, muitas vezes contraditórios, que se cruzam com as idiosincrasias dos equilíbrios políticos e sociais de 27 Estados. Em período de ciclo económico negativo, tudo se torna pior, porque as margens financeiras para um forte keynesianismo deixaram de existir. Em especial, deve ser muito complicado gerir as frustrações que se seguem às fortes esperanças criadas pelo anos Lula, desse tempo do Brasil-vedeta, que ombreava e era admirado pelos poderosos do mundo - o Brasil do sonho do biodiesel, do ouro do pré-sal, dos êxitos do Fome Zero, da explosão da educação para todos. Um tempo em que, para muitos, tudo ia ser possível, nesse otimismo que é a riqueza maior daquela terra.
 
Dilma Rousseff não parece ser a figura ideal para encarnar esse otimismo. Mas é a presidente que foi eleita e o "impeachment" de que muitos falam, e que teria consequências gravíssimas para a normalidade constitucional que o Brasil ganhou, não tem hipóteses de se concretizar, tanto mais que teria que ser desencadeado no âmbito de um Congresso desprestigiado e, ele próprio, com uma legitimidade muito fragilizada, depois dos recentes escândalos.

Resta a hipótese de Dilma Rousseff conseguir vir a interpretar a pressão popular e impor uma reforma política com reais consequências no sistema de poder. Conhecendo alguma coisa do Brasil político, alimento sérias dúvidas que isso seja possível. Mas, às vezes, os suicidas conseguem ter serenidade para se arrependerem e regressar à vida.

domingo, março 15, 2015

Memorabilia diplomatica (VI) - O último


O gabinete não era grande. Para além, do seu titular, com jeito, cabiam sentadas umas quatro pessoas, para além dos que ficavam encostados, de pé, no vão da janela ou na moldura da porta de entrada, ou de quantos só assomavam por escassos minutos. Era um fim de tarde, nos anos 80, naquela representação diplomática portuguesa, numa capital europeia.

Eu estava por ali de passagem, ido de Lisboa para uma reunião. Com o colega em casa de quem me alojava mantinha-me por ali à conversa, nesse que era gabinete de um outro diplomata.
 
O dono do gabinete, com quem eu tinha uma relação distante, era conhecido por ser uma das pessoas que mais tarde saía das instalações. Era uma figura muito loquaz, com um humor cortante, algo ácido, muito radical nas opiniões. Era um homem inteligente e não deixava de ser divertido. Porém, a partir de uma certa altura, pelo menos para mim, senti por ali algo indefinido de desagradável: sempre que alguém abandonava o gabinete era mimoseado por ele com comentários depreciativos, do género "esta também tem a mania que é esperta!" ou "este tipo é um parvo e ainda nunca ninguém lho disse". Alguns dos que ficavam riam-se, numa partilha cobarde da crítica, nas costas do ausente. Outros, como era o meu caso, que mal conhecia a maioria dos visitantes, faziam um sorriso amarelo, onde abafavam o incómodo.

O tempo ia correndo, comigo "morto" por sair dali. Mas fui ficando, porque dependia da boleia do colega que me aboletava, com quem tinha um jantar, cuja hora se aproximava. A certo passo, no gabinete, para além do seu titular, ficámos só eu e o meu amigo. Ousei dizer: "se calhar, temos de ir andando..." Vi que o meu amigo se apressou a aproveitar a sugestão. Despedimo-nos do agora solitário mal-dizente e saímos. No elevador, comentei:

- Desculpa ter apressado a conversa, mas já creio que estamos já em cima da hora do restaurante.

O meu amigo retorquiu:

- Fizeste bem, mas não podíamos sair mais cedo.

Não percebi, mas ele explicou:

- Eu, daquele gabinete, sou sempre o último a sair. É a única garantia de que ele, logo de seguida, não vai dizer mal de mim a quem por lá ficar...

Razões para morrer

Há dias, atentei numa cerimónia em Londres onde se honrava a memória dos 453 militares britânicos mortos no Afeganistão, na decorrência da ação militar desencadeada nesse país por uma coligação de forças liderada pelos EUA. Recordo que se tratou da resposta militar aos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, a coberto de um mandato das Nações Unidas, com indiscutível legitimidade. O Afeganistão acolhia grupos terroristas que, naquele como noutros casos, se tornaram fortemente detrimentais para a paz mundial. Portugal integrou essa ação e fez bem.

Porém, ao refletir sobre os 453 mortos britânicos (para 2356 americanos e 2 portugueses), não pude deixar de comparar este sacrifício com o resultado efetivo deste esforço político-militar. Olhando para o Afeganistão dos nossos dias, para a extrema fragilidade das suas instituições políticas, para a permissividade ao compromisso com alguns grupos de "talibans" claramente responsáveis por ações de extrema violência, observando os efeitos que a campanha teve na perigosíssima desestabilização do Paquistão, a interrogação é legítima: valeu a pena? Se eu me coloco esta questão, muito mais legítimo é que ela surja aos familiares dos mortos.

Nos últimos tempos, temos vindo a assistir a uma evidente retração do Reino Unido no cenário político-militar global. O tradicional "compagnon de route" dos EUA mostra-se cada vez mais relutante a envolver-se em aventuras militares, sendo a da Líbia, em 2011, a última conhecida - cuja resultante está bem longe de se poder considerar brilhante. Pensando nos 453 mortos no Afeganistão, no peso orçamental de umas forças armadas qualificadas, nos militares e nas suas famílias, pergunto-me sobre a liberdade que um governo como o britânico terá hoje para comprometer tropas em zonas de conflito e de risco, que não sejam percebidas pelas populações como representando a sua fronteira natural de segurança.

E dei comigo a pensar sobre a NATO, sobre o artigo 5º do seu tratado constitutivo, sobre a agressão a um Estado dever ser considerada como uma agressão a que todos os outros têm de responder. Até que ponto a acumulação destas frustrações geopolíticas, a atenção crítica das opiniões públicas, o regredir do patriotismo, a leitura diferenciada dos interesses não terá já corroído os fundamentos de um compromisso que vem de um tempo em que o adversário era claro e existencial, em que quase ninguém aceitava o princípio complacente do "better red than dead"?

Esta é uma questão da maior importância, num tempo em que se ouve Jean-Claude Juncker falar, com alguma ligeireza, da necessidade do "exército europeu"? Onde está o "patriotismo" europeu que pode levar alguém, algum dia, a correr o risco de poder morrer em combate longe da sua fronteira natural? Devemos refletir muito bem em tudo isto quando analisamos a questão da Ucrânia e das fronteiras NATO por essa área.

Incredulidade

Na passada quinta-feira, ouvi na rádio as primeiras informações sobre a medida governamental, anunciada nesse mesmo dia, relativa a novos apoios ao regresso de emigrantes. A síntese fornecida pareceu-me redutora, algo caricatural, pelo que, concluí, só podia ser uma apresentação fantasiosa. Desde logo, pela ousadia "keynesiana" que transpirava do projeto, completamente à revelia da fúria liberal que tem varrido o país. Por isso, decidi ir ver as coisas com mais calma.

Embora eu não navegue nas águas oficiais dominantes, um mínimo de rigor impõe-me a obrigação de atentar nas iniciativas legislativas da maioria cessante. Faço parte de quantos acham que um governo, lá porque não nos é simpático, não produz, sempre e necessariamente, coisas negativas. Algumas vezes há-de acertar, caramba!

Assim, e por esta pudica prudência, fui ler um pouco mais sobre a iniciativa. E não quis acreditar! É preciso um executivo estar num estado de estertor, de indigência de ideias, para conseguir produzir um projeto daqueles. O mais impressionante é, de longe, o seu grau de "ambição": 20 a 30 iniciativas para começar, podendo vir a atingir o número astronómico de 200 (!!!) pessoas. Tudo não quantificado, que isso de contas é para se fazer mais tarde...

Que arrojo! Pode aferir-se, desde logo, o impacto fortíssimo deste programa no crescimento do produto nacional. E, em especial, podemos imaginar o gáudio e o entusiasmo transbordante que esta iniciativa legislativa vai provocar nos quase 300 mil portugueses obrigados a sair do país nos últimos anos, ao saberem que, no limite máximo de abrangência do modelo, menos de um em cada 1000 dentre eles, terá à sua disposição verbas para lançar um negócio, num regresso estimulado à mãe pátria - uma barbearia, um café, quiçá uma tabacaria num vão de escada! Imagino-os, pelo mundo, prenhes de gratidão, embora talvez ligeiramente perplexos: porque este ainda é, aparentemente, o mesmo governo que os estimulou a saírem da "zona de conforto", isto é, que lançou as bases das políticas públicas negativas que hoje contribuem para o seu atual desconforto. Mas o que lá vai lá vai, não é? Amigos como dantes, especialmente em ano de eleições...

O eleitoralismo e o populismo são muito maus conselheiros. É que não deixa de ser irónico ter sido dado a este programa o acolhedor nome de "Vem", logo por parte de um governo que, com o empurrão benévolo deste tipo de genialidade legislativa, não tarda se vai.

sábado, março 14, 2015

Memorabilia diplomatica (V) - A viagem impossível

Foi noutro março, em 1976.

Eu estava em S. Tomé, ao serviço do nosso então Ministério da Cooperação, para tentar acabar com uma greve dos professores cooperantes que, meses antes, tinham sido enviados de Portugal para o novo país. No jardim da residência do embaixador, entrei à conversa com uma velha empregada, a quem procurei indagar como é que os santomenses estavam a viver a sua independência recente.

"Eu não sou de cá, sou de Cabo Verde", respondeu-me a senhora. "Vim para S. Tomé há muito tempo".

"E agora, com o seu país também independente, tenciona regressar? Tem lá a sua família...", comentei.

Demorei uns segundos a entender o olhar triste da mulher e a indizível tristeza da sua resposta: "Eu não posso regressar nunca à minha terra. Não vou voltar a ver a minha família. Não tenho dinheiro para voltar. Vou morrer por aqui."

Tudo o que eu sabia sobre a tragédia dos "contratados" caboverdeanos, levados para um trabalho quase escravo nas roças santomenses, nada representava, ao lado da lição da vida daquela mulher, que nunca teria suficientes posses para a aventura que representaria regressar à sua terra natal, com a qual não havia já ligações marítimas e as vias aéreas eram muito escassas, complicadas e caras. 

Anos mais tarde, ao ouvir Cesária Évora cantar o "Sodade", onde se fala, em crioulo, de "esse caminho longe, esse caminho para S. Tomé", percebi melhor o drama criado pela dispersão humana no nosso passado colonial.

Ontem, ao ver anunciado num jornal que as autoridades de S. Tomé vão finalmente conceder a nacionalidade aos descendentes dos caboverdeanos imigrados no país, lembrei-me dessa minha conversa com a empregada da nossa embaixada.

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

sexta-feira, março 13, 2015

Não há só notícias más!


 
Fico satisfeito pelo facto da administração da RTP ter escolhido para novo diretor de informação o jornalista Paulo Dentinho, um grande profissional da nossa comunicação social, a quem, ainda há dias, aqui fiz uma referência.
 
Também me congratulo que, num gesto que é uma bela "resposta" à rádio privada que o dispensou, a informação de todas as rádios públicas tenha passado a ser dirigida por João Paulo Baltazar, alguém que não conheço pessoalmente mas que me habituei a respeitar nas ondas da TSF. Espero agora a sua melhor atenção para essa "deserdada" dos últimos anos que tem sido a RDP Internacional.
 
Afinal, não há só notícias más!

BES

Interrogo-me seriamente sobre a utilidade da comissão parlamentar sobre o BES. Percebo que, para as senhoras e senhores deputados, que, com cara grave, afivelam as suas indignações e se esforçam por mostrar ao país (em ano eleitoral, rende) a utilidade da função que cumprem, isso possa ser tarefa útil. Mas para além do estímulo ao "voyeurisme" sobre os ex-poderosos, ali justamente humilhados, em face da evidência das suas traficâncias, e do observar do desplante e contradições sem consequências de alguns dos depoimentos, o que é que o país ganha com este exercício? Explorar as divergências entre quem, sem exceção, empochou muitos milhões que saltaram dos bolsos dos pobres investidores que agora "assaltam", com todo o direito, as agências do Novo Banco, justifica todo este alarido? Ficamos a conhecer melhor o que por aí anda no mundo das negociatas financeiras? Talvez. E depois? No que me toca, já deixei de acompanhar o exercício. Fico impacientemente à espera da Justiça, a mesma que "engaiola" com toda a facilidade um carteirista do elétrico 28 mas, aparentemente, não tem "espaço" de cela para os "megacarteiristas" de alguma banca. A mesma Justiça que, estranhamente, sobre este caso, não faz o menor "leak" para o "Correio da Manhã". Por que será? Alguém já se perguntou?

Memorabilia diplomatica (IV) - O voto dos outros


Um dia de 1986, com Portugal recém-ingressado nas Comunidades Europeias, fui ao gabinete do secretário de Estado da Cooperação receber instruções para uma reunião no Luxemburgo. O ambiente na delegação portuguesa que ia a essa reunião era algo tenso, por virtude de uma disputa de competências, cuja substância não vem aqui para o caso. Por essa razão, eu ia "de pé atrás" e mais fiquei quando me foi dito, para além de uma orientação sobre o sentido de intervenção em dois ou três pontos da agenda, que, nos restantes, deveríamos "seguir os ingleses". Devo dizer que fiquei chocado, pelo que isso traduzia de abdicação de pensarmos pela nossa cabeça e de entregarmos a defesa dos nossos interesses, que os havia nesses pontos, aos humores de voto de outrem.
 
Um mimetismo teimoso com as posições de Londres foi, durante muito tempo, uma orientação que a linha política dominante nas Necessidades prosseguiu, no início da nossa experiência comunitária. Portugal parecia ter assumido que alguma identidade de pontos de vista com o Reino Unido, que tradicionalmente se verificava em matéria de segurança e defesa no quadro da NATO, era extrapolável para as áreas da vida comunitária. O tempo veio a provar que essa orientação estava totalmente errada e que, cada vez mais, a postura europeia de Portugal devia afastar-se da linha britânica, a qual, além de ter uma agenda de interesses muito própria e diversa da nossa, contribuía frequentemente para o nosso isolamento.

A imagem de uma diplomacia portuguesa "tutelada" pelos britânicos continuou, contudo, por algum tempo, nas instituições comunitárias. Cerca de uma década depois da cena que abriu este texto, um jornalista europeu, em Bruxelas, depois de eu ter anunciado a apresentação de uma qualquer proposta, perguntou-me, durante uma conferência de imprensa, se "tinha coordenado isso com os britânicos". Perante a minha questão "porquê com os britânicos?", o jornalista inquiriu: "então Portugal não coordena sempre previamente as suas posições com Londres?". E ficou surpreendido quando eu lhe garanti que não.

Nesta questão de sentido de voto, é muito divertida a história que Margarida Ponte Ferreira contou ontem na minha página de Facebook. Numa determinada negociação técnica, o delegado grego disse ter tido instruções da sua capital para acompanhar o sentido de voto de Portugal. A delegada portuguesa confessou que, provavelmente pelo facto do assunto não ser relevante para nós, Lisboa tinha indicado que deveríamos apoiar a posição que a França viesse a tomar. A resposta do delegado francês foi lapidar: ele tinha instruções para votar em sentido contrário aos britânicos...    

quinta-feira, março 12, 2015

Do blogue para o facebook

Tenho aprendido muito com as redes sociais. E uma das conclusões a que cheguei é a de que o humor e a ironia, tal como acontece a alguns vinhos, "viajam mal" nessas redes. Venho a constatar ser quase impossível tratar de forma leve e bem disposta alguns temas sem que isso desencadeie, de imediato, um cerrar de sobrolho por parte de alguns moralistas de sofá. Alguns leitores, embora poucos, em lugar de olharem despreocupados para as historietas simples que por aqui se relatam, partem de imediato para um policiamento dos episódios, insistindo em retirar deles ilações supostamente éticas, muitas vezes descontextualizando os factos, no lugar e no tempo.
 
Todas as três historietas diplomáticas que até agora aqui transcrevi foram imediatamente pasto para comentários de "rightouseness", de apontar acusador de vícios de comportamento, subjacentes aos factos relatados, as mais das vezes com uma crítica acerba ao comportamento dos agentes do serviço público neles envolvidos. Imagino que isso possa vir a agravar-se com outros episódios que aí vêm. Alguns desses comentários roçaram mesmo o insultuoso, o que também levo à conta dos tempos de confrontação que por aí já se vivem. E, por isso, não foram acolhidos, porque o masoquismo não é uma qualidade de que me orgulhe. 
 
Nestes dias em que parece estar na moda não sermos "perfeitos", quero dizer que assumo para mim esse estatuto, sem a menor dificuldade. Imagino que alguns leitores sejam irrepreensíveis modelos das virtudes, com que todos os outros não fomos abençoados. Só lhe posso desejar que lhes faça bom proveito.

Memorabilia diplomatica (III) - A guerra das alcachofras


Num passeio de manhã, num mercado de legumes, deparei com uma bancada cheia de belas alcachofras. Isso recordou-me uma historieta diplomática do final dos anos 80.

Estávamos nos tempos da renegociação da Convenção de Lomé (agora já vamos na Convenção de Cotonou), o acordo que, nomeadamente, permite aos países africanos (e também a outros, das Caraíbas e do Pacífico) exportar para a Europa, em condições privilegiadas, algumas das suas produções agrícolas, parte das quais essencial para sustentarem as suas débeis economias. Nesses cíclicos momentos negociais, os produtores europeus tentavam sempre convencer os seus governos a evitar que a Europa fizesse novas concessões. A Comissão Europeia, responsável pela negociação, propunha uma lista de possíveis novas aberturas e os vários Estados europeus retiravam dela, apresentando as suas razões, produtos que entendessem concorrentes com os seus.

O nosso Ministério da Agricultura enviara-nos uma lista de “produtos sensíveis” para os agricultores portugueses. Conseguíramos sustentar a maior parte deles, mas, nas versões sucessivas dessa “lista negativa” (como é vulgarmente chamada) europeia, a Comissão teimava em não incluir - imaginem! - as nossas alcachofras. Porque não compete aos diplomatas, que se encarregam de negociar, serem eles a “deixar cair” as objecções colocadas pelos departamentos especializados, era nosso dever tentar encontrar, e até inventar, todos os argumentos possíveis para sustentar o bom fundamento das nossas posições de defesa comercial.

Num determinado passo das discussões técnicas, uma nova proposta da Comissão de “lista negativa” europeia chegou à mesa das negociações. Mas, uma vez mais, nada de alcachofras... Pedimos a palavra e regressámos ao nosso argumentário, tão convincente quanto possível, sublinhando que as margens de comercialização dos nossos produtores de alcachofras eram já muito reduzidas, que uma invasão do nosso mercado por alcachofras de origem africana originaria um desastre económico no sector, etc. Não sei se fomos ao ponto de referir a possibilidade de crescimento de desemprego sectorial, bem como outros efeitos colaterais de natureza social, mas devemos ter ficado perto disso.

Recordo-me que a enfática posição portuguesa foi apoiada pela Grécia e pela Itália, embora, em ambos os casos, com uma convicção que se me afigurou um tanto débil, o que tomei à conta do facto de poderem estar a reservar-se para um defesa prioritária de outros produtos, em que teriam maior interesse direto.

Finalizada que foi a apresentação do nosso caso, feita com todo o garbo possível, a Comissão Europeia tomou a palavra, através de Manuel Marín, o comissário do pelouro. Como quase todos os espanhóis, Marin falava (e julgo que ainda fala) um francês com uma pronúncia macarrónica, cheia de “xes”, o que dava às suas intervenções uma sonoridade algo caricata, um castelhano em tom rural beirão. Mas Marin – que, posteriormente, já foi ministro e presidente das Cortes espanholas – é um homem fino e muito inteligente. Além de ser um bom amigo de Portugal, diga-se de passagem. 

Dirigindo-se à presidência da sessão, disse ter tomado muito boa nota dos sólidos motivos que a delegação portuguesa, apoiada por outras, acabara de apresentar, "com tanto brilho", com vista a recusar, liminarmente, a possibilidade de autorizar a entrada de alcachofras africanas no mercado português.

Chegado que foi este ponto do discurso do comissário, a delegação portuguesa ficou mais descansada. Imagino que nos teremos recostado nas nossas cadeiras, prenhes de satisfação pelo dever cumprido. E preparávamo-nos para ouvir da Comissão Europeia a confirmação final de que, por consequência, ela iria, finalmente, colocar as nossas prezadas alcachofras na “lista negativa”.

Foi então que, continuando a dirigir-se ao presidente da sessão, como era de regra, mas olhando de viés para a delegação portuguesa, com um sorriso que adivinhávamos malandro, Marin acrescentou: “Mais, M. le Président, je dois vous avouer un secret: il n’y a pas des artichauts en Afrique” (“Mas, senhor Presidente, devo confessar-lhe um segredo: não há alcachofras em África”). Afinal - surpresa das surpresas! -, a África não produzia as alcachofras que nós, tão denodadamente, tentávamos impedir de concorrerem com as nossas!

A sala entrou em gargalhadas – e nós em sorrisos, definitivamente, bem amarelos. Pela teimosia do nosso Ministério da Agricultura, numa defesa pateta das nossas alcachofras, tínhamos perdido uma boa ocasião para não desperdiçar capital negocial numa discussão europeia.

Mas, também eu, devo confessar-lhes um segredo: hoje, no mercado, não me contive e deitei um olho às caixas que acondicionavam as alcachofras. Não fosse dar-se o caso de serem originárias de algum país africano. Não eram...

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

quarta-feira, março 11, 2015

O meu 11 de março

                                                Foto de António Pedro Ferreira

Faz hoje precisamente 40 anos.

A tensão fora imensa, durante todo o dia. Recordo os caças a passar a meio da manhã sobre Belém (que eu via da varanda da Ciesa-NCK, onde tinha o meu emprego matinal), as notícias do ataque aéreo e terrestre ao regimento do RALIS, o almoço rápido e pesado na messe do Instituto de Altos Estudos Militares, em Pedrouços, e uma infindável tarde, prenhe de boatos, telefonemas e dúvidas, passada entre a 2ª divisão do EMGFA, no palácio da Ajuda, e o então Instituto de Sociologia Militar (hoje Instituto de Defesa Nacional), na calçada das Necessidades.

Era o dia 11 de Março de 1975. Spínola havia provocado a revolta contra o MFA em Tancos, mandara avançar forças sobre Lisboa, convencido que poderia conseguir um levantamento de outras unidades, descontentes com a progressão radical da revolução. A tensão político-militar tinha atingido o seu ponto extremo e culminaria com a patética rendição dos pára-quedistas em frente ao RALIS, sob a mediação de Luís Costa Correia, com a fuga de Spínola para Espanha, a prenunciar que muita coisa poderia mudar a partir de então. Não sabíamos, porém, o quê e como.

A tarde acabou e eu regressei a casa, a ouvir a rádio e a ver, pela enésima vez, as imagens da televisão. Por um pressentimento de que algo iria passar-se ainda nesse dia, voltei ao Instituto de Sociologia Militar, depois de jantar. Começaram a aparecer por lá alguns milicianos do Exército, como eu e o Agostinho Roseta, militares da Marinha, gente vinda do RALIS, estes últimos a descrever com emoção os eventos da manhã. E surgiram algumas figuras gradas do MFA, próximas do PCP, como Ramiro Correia e o próprio Dinis de Almeida, figura do dia.

De repente, como que por acaso, começou a consensualizar-se uma onda de revolta pelo facto do “Conselho dos Vinte”, que funcionava como órgão militar máximo desde a extinção da Junta de Salvação Nacional, estar “placidamente reunido nos tapetes de Belém”, como alguém disse. Aparentemente, ao que nos chegava, o Conselho estaria apenas disposto a reflectir sobre a crise, sem cuidar de afastar ou punir alguns culpados óbvios, senão por acção, pelo menos por indesculpável omissão ou complacência com os “conspiradores spinolistas”, como o nosso radicalismo de então simplificava os revoltosos do dia.

Para muitos dos exaltados presentes, a lista dos responsáveis já era longa, desde os serviços de informação militar até certas figuras da hierarquia militar e à "reaccionária" direcção da televisão, o que significava, para alguns, querer atingir Ramalho Eanes, o general que, meses mais tarde, seria o comandante operacional do contra-golpe de 25 de Novembro de 1975.

Aí pelas 10 horas da noite, forma-se, no seio do "pessoal" que discutia a situação, uma ideia imparável: ir a Belém, interromper o “Conselho dos Vinte” e exigir uma reunião extraordinária da Assembleia do MFA, para essa mesma noite.

Dito e feito. Aí avançámos nós rumo à Presidência da República. Entrei ao volante do meu carro pelo pátio das Damas, à Ajuda, sem nenhum impedimento dos polícias do portão, como que amedrontados pelo aparato da fila de viaturas. A meu lado ia o Agostinho Roseta, dois desconhecidos oficiais da Marinha de boleia no banco de trás, a quem não arrancámos grandes palavras em todo o trajeto.

Depois, foi aquele povoléu de roldão pelos corredores, qual entrada no Palácio de Inverno, com escadas que notei que desciam e subiam de seguida, até que entrámos numa sala, onde demos de cara com o almirante Rosa Coutinho. O Conselho devia estar interrompido e o almirante, com o seu sorriso largo, olhando o nosso tom decidido e grave, lançou, divertido: “Até parece que vêm fazer um golpe de Estado!”.

Foi então que se ouviu uma voz, saída de uma cadeira à esquerda da porta por onde entráramos, e em quem não havíamos ainda reparado: “Eu não lhe dizia, meu almirante, que a rapaziada acabava por aparecer por cá?!”. Era uma figura muito conhecida do MFA, desde sempre muito ligada ao PCP.

Nesse instante, olhei para o Agostinho Roseta e ambos concluímos, em silêncio, estarmos a fazer o papel de “inocentes úteis” numa manobra para a realização de uma Assembleia extraordinária, muito bem urdida pelo "partido" e pela “esquerda militar” que lhe era afeta.

De seguida, as coisas precipitaram-se. Saímos para uma sala maior, os membros do Conselho acabaram por se juntar à tropa "amotinada" que nós éramos, houve uma dura troca de palavras durante cerca de um quarto de hora, com Vasco Lourenço a tentar ser a força moderadora do lado dos conselheiros, tendo o presidente Costa Gomes acedido, finalmente, à realização da Assembleia – esse areópago de cerca de 240 militares que era uma espécie de parlamento da revolução.

Meia hora mais tarde, perante o entusiasmo de muitos e o visível incómodo de alguns, estávamos a reunir, de volta à calçada das Necessidades, aquela que ficou conhecida como a “assembleia selvagem” de 11 de Março, uma Assembleia do MFA convocada em termos mais do que duvidosos e com uma composição mais do que nunca “ad hoc” – de que a melhor prova era a minha própria presença, que dela não fazia parte formal, embora, noutra qualidade, tivesse estado presente em reuniões anteriores, o que voltaria a repetir-se até julho.

Aquela foi a noite dos confrontos verbais extremos, de um apelo pateta e isolado a fuzilamentos de “traidores”, de uma imensidão de intervenções dramáticas, em que até eu não deixei de meter a minha breve colherada oratória. Às oito da manhã, estava a tomar pequeno almoço com o José Rebelo, então correspondente do “Le Monde”, sedento de notícias, numa leitaria no Saldanha.

O dia correu numa imensa agitação e, na noite desse já 12 de Março, ajudei a discutir, numa acalorada assembleia do Exército, os nomes para o Conselho da Revolução, que a reunião “selvagem” da véspera criara. A minha legitimidade para participar nesse exercício continuava a ser mais do que duvidosa, mas os tempos eram o que eram.

Antes, porém, num intervalo, fui procurado pela mesma figura que na véspera encontrara em Belém, a qual, a pretexto de felicitar-me por uma intervenção feita momentos antes, me deu a ler, para consideração e eventual apoio, uma proposta com nomes para figurarem como representantes do Exército naquele novo Conselho. O nome do próprio constava da lista.

Olhei para ele, “escaldado” pela cena de Belém, e retorqui apenas: “Não acha essa lista demasiado óbvia?”. Voltou-me as costas. Eu podia continuar a ser inocente, mas havia coisas para as quais já não me prestava a ser útil. Há dias encontrei-o na rua. E dei-lhe um abraço, claro.

Caramba, já passaram 40 anos.

(Reedição atualizada de um post antigo)

Corrupção


Não conheço Paulo Morais. Ouvi falar dele pela primeira vez quando, há anos, se soube que um vereador tinha abandonado a Câmara Municipal do Porto (creio que) em protesto contra a falta de determinação revelada pela instituição em matéria de combate à corrupção. Estranhei, tanto mais que se havia uma qualidade que se colara à pele do então presidente do município, Rui Rio, essa era a honestidade. Mas acabei por ficar com admiração por quem, aparentemente, queria ir mais longe nessa nunca concluída luta pela limpeza de processos na administração.

A partir daí, comecei a atentar mais no discurso público de Paulo Morais, que surgiu ligado à ONG Transparency International. Leio-o e ouço-o, a espaços. Notei que cavalgava essa saudável onda que percorre o país na rejeição dos atos de corrupção, na denúncia dos tráficos de influência e de todas as formas de conduta ilegítima e ilegal, que corroem a política e a administração pública.

Até aí tudo bem. Mas, ressalvada a hipótese de me ter falhado alguma coisa substancial (o que não excluo e, a ser verdade, me fará retratar) nunca me constou que Paulo Morais tivesse apresentado às autoridades dados comprovativos de malfeitorias dos quais tivessem resultados condenações. O que tenho visto é um discurso vago, que se aproxima muito da chamada "conversa de taxista", isto é, o apontar, com sobrolho cerrado e ar grave e indignado, de suspeitas sobre um mundo sem fim de áreas económicas e da administração, como se bastasse dizer que "toda a gente sabe" e "as autoridades que investiguem". Paulo Morais tem vivido a coberto de uma espécie de bula, que está consagrada aos olhos dos utentes dos meios de comunicação que lhe acolhem os textos e as intervenções, meio em que se criou já a ideia de que basta denunciar e que não se tem a menor obrigação de ir mais além - no género, "eu já avisei que ali há marosca, agora atuem". Acho isto de uma ligeireza inaudita.

Ontem, ficou-se a saber que Paulo Morais enviou à Assembleia da República dados sobre um determinado caso de corrupção em que o suporte das denúncias assenta... em citações de si mesmo e em programas de televisão em que participou. Com ironia, fez-me lembrar o exemplo daquele académico francês que passava o tempo a citar-se a si mesmo e de quem se dizia que tinha como rendimentos os "royalties" que recebia dos direitos de autor que pagava pelo uso das suas próprias citações...

O combate à corrupção, ao tráfico de influências e a outra criminalidade de "colarinho branco" é uma coisa demasiado séria para ficar reduzida a este tipo de caricaturas que só o desqualificam e apenas bebem de um populismo mediático que vive à base de "bocas & bitaites", apoiadas na má língua e na inveja reinante. Se Paulo Morais quer estar para além disto, tem de ser mais consequente e concreto. 

terça-feira, março 10, 2015

Aviso à navegação

Ontem, disse aqui que iria fazer parte de uma estrutura de aconselhamento para a elaboração do programa socialista para as próximas eleições legislativas. Horas depois, um jornal, ao acolher uma opinião minha sobre um qualquer assunto de política interna, atribuiu-me a qualidade de "conselheiro" do secretário-geral socialista, como que a sugerir que o que eu dizia refletia essa proximidade - melhor, que a minha opinião comprometia António Costa. Não sou "conselheiro" do meu amigo António Costa, sou conselheiro do "gabinete de estudos" que está a preparar o programa político do partido que dirige. Eu dou pareceres que os responsáveis políticos seguirão ou não. Tão simples como isso.

Coloquemos assim as coisas nos seus devidos termos. Nenhuma opinião minha vincula, em nenhuma circunstância, o Partido Socialista nem compromete politicamente António Costa, seja em matéria de política interna ou externa. Não sou dirigente do PS, não estou subordinado a qualquer disciplina opinativa e tudo - repito, tudo! - o que eu digo e escrevo responsabiliza-me exclusivamente a mim próprio e não pode ser tomado à conta de decorrer de qualquer linha partidária, de que não sou porta-voz. Nesse contexto, nào será de estranhar que, aqui ou ali, venham a encontrar, nas opiniões que eu vá emitindo, eventuais contradições com aquilo que o PS oficialmente preconiza.

Gostava que isto ficasse bem claro!

A Venezuela e a doutrina Monroe revisitada

A situação que se vive na Venezuela deve preocupar-nos a todos. Por lá reside a maior comunidade portuguesa emigrada num só país, cujos interesses económicos e segurança pessoal têm de merecer um atento acompanhamento diplomático da nossa parte, em especial no período de instabilidade político-económica que o país atravessa. Uma comunidade que, sem surpresas, não parece estar muito em sintonia com a linha política que domina o governo da Venezuela, mas a quem a prudência parece dever aconselhar contenção, neutralidade e um comportamento que, tanto quanto possível, não facilite a sua instrumentalização pelas forças político-partidárias que polarizam o debate. Mas, naturalmente, os portugueses e luso-venuzuelanos são livres de tomarem as opções que muito bem entenderem, na plena certeza de que as consequências que delas puderem resultar serão da sua inteira responsabilidade. 

A Venezuela que passou a existir depois da morte de Hugo Chávez acelerou ou sinais de instabilidade já existentes. Nicolás Maduro dá sinais de ser um líder fraco, enveredando por uma permanente fuga em frente, numa deriva que soa a desespero, agora agravado pela queda drástica dos preços do petróleo e pelas consequências que daí resultam para o alimentar de políticas públicas que tinham nessa matéria prima a essencial base financeira. O caminho "bolivariano" pôde manter-se enquanto apoiado em réditos regulares, que permitiam favorecer os "descamisados" e sustentar artificialmente preços e serviços, alimentando a gigantesca máquina estatal.

O presidente Lula, do Brasil, tinha algum "leverage" sobre Chávez e achava-lhe genuinamente alguma graça. Falei com ele algumas vezes sobre a personagem, que ele distinguia de forma muito clara de outros líderes locais, como Morales (da Bolívia) ou Correa (do Equador), e notei que, perdendo por vezes a cabeça com algumas das atitudes do líder venezuelano, tinha por ele alguma afetividade, embora estivesse muito longe de partilhar as suas bizarras e idiosincráticas atitudes. O Brasil foi um importante fator de tentativa de credibilização de Chávez junto de outros parceiros, com um sucesso que o líder venezuelano regularmente se encarregava de arruinar, pela imprevisibilidade das suas reações e atitudes.

Um dia, um importante ministro brasileiro, que acompanhou Lula numa das suas frequentes visitas a Caracas, contou-me uma história significativa que era bem reveladora do pensamento íntimo de Chavez. Numa conversa, Lula fazia notar a Chávez que os ganhos do Brasil, no seu comércio com a Venezuela, eram exponenciais. O Brasil nunca ganhara tanto nos seus negócios no país, numa a balança comercial lhe fora tão favorável. E, no entanto, "com amizade", afirmou que o Brasil não se sentia bem nessa relação tão desequilibrada, em grande parte devida à ausência de um setor produtivo venezuelano que se pudesse desenvolver e criar produtos essenciais à satisfação de setores básicos da sua população, nomeadamente na área alimentar. O Brasil estaria disposto a ajudar nisso, na criação de empresas industriais que pudessem substituir importações e reforçar a produção industrial venezuelana. 

Chavez olhou para Lula, percebeu a genuinidade do gesto e adiantou: "Tens razão! Já tinha pensado nisso e tenho um grupo a estudar a criação de um conjunto de empresas estatais dedicadas a vários setores de produção de produtos essenciais". O presidente brasileiro deu um salto na cadeira: "Eu queria dizer empresas privadas, não empresas estatais!" Foi a vez de Chávez se alarmar: "No, privadas, jamás!" Para logo acrscentar: "Os privados ligam-se logo à reação contra mim!".

No avião de regresso a Brasília, Lula comentou com os seus ministros e colaboradores: "Este Chavéz é incorrigível. Dificilmente não acabará mal, por muita ajuda que lhe dermos".

Chavéz "se calló" para sempre. Lula saiu de cena (por ora?). Na Venezuela, subiu Maduro, um subproduto da memória chavista. No Brasil, Lula, o tal que, segundo a tradição, "elege um poste", conseguiu eleger Dilma Rouseff e foi uma âncora indispensável à sua recondução. A aliança entre o Brasil e a Venezuela já teve dias melhores, com ambas as economias, em parte por razões diferentes, a atravessarem dificuldades. Em Caracas, nos dias que correm, as atenções devem agora estar voltada para o "big brother" do Norte. É que Washington, de quando em vez, lembra-se da "doutina Monroe", em especial quando as coisas lhe começam a correr mal noutras geografias e quando, para efeitos internos, tem de "compensar" os novos gestos face a Cuba. É tudo tão óbvio, não é?

Memorabilia Diplomatica (II) - O cozinheiro "iraniano"

Eu estava na Noruega, em 1980. Era, episodicamente, "encarregado de negócios", na ausência em férias do embaixador. A revolução no Irão acabara de acontecer. O Xá tinha saído do país, Khomeini tinha regressado do seu exílio parisiense. Em Oslo, o meu colega iraniano, Parviz Azarnia, uma figura muito ativa e agradável dos circuitos diplomáticos locais, desapareceu da circulação, de um dia para o outro. Pelas notícias, íamos seguindo a agitação no Irão, com grande curiosidade.

Um dia, na nossa embaixada, fui avisado de que um cidadão português, residente em Oslo, queria falar comigo. Os nossos compatriotas não excediam então as duas centenas, por todo o território norueguês. Apareceu-me um tipo gorducho, algo afogueado, a apresentar um problema. Desde há anos que era cozinheiro da Embaixada iraniana. De um dia para o outro, todos os iranianos da Embaixada, residência e chancelaria, se tinham ido embora. Ele estava sozinho, há duas semanas, sem saber o que fazer, quase sem dinheiro. Tinha a intenção de procurar um novo emprego. Mas não sabia o que havia que fazer com a chave da residência, de que era o único ocupante. E fez-me uma inesperada sugestão: podia eu ficar com a chave da Embaixada, dando-a, mais tarde, aos futuros novos colegas iranianos?

A ideia era bizarríssima. A embaixada iraniana era, e é, um imponente edifício quase em frente à nossa residência, em Drammensveien, em Oslo. Tive o bom senso denem sequer transmitir o assunto para conhecimento de Lisboa. Os telegramas com historietas, subscritos pelos substitutos dos chefes de missão são, no anedotário do MNE, motivo regular de gozo dos colegas. E a história de um cozinheiro português a "entregar-me" a Embaixada do Irão iria fazer o gáudio dos claustros das Necessidades, por muito tempo. Assim, optei por entrar em contacto com o serviço do protocolo do Ministério dos estrangeiros norueguês, com quem aconselhei o cozinheiro a falar. Nunca soube se o fez.

O que eu soube, poucos dias mais tarde, é que uma nova e mais ortodoxa equipa diplomática iraniana chegou, finalmente, a Oslo. O cozinheiro português terá sido de imediato despedido. O menu tinha mudado no Irão.

(Reedição de historietas da diplomacia por aqui já publicadas)

segunda-feira, março 09, 2015

Garagens


Um velho e querido amigo polaco, de há mais de duas décadas, antigo membro do governo e hoje deputado europeu, ironizava ontem no seu Twitter que, enquanto os cidadãos da Europa ocidental se preocupam em ter um segundo carro na sua garagem, os cidadãos do leste europeu preocupam-se em não ter por lá um tanque russo...

Esta é a mostra do contraste de perspetivas que se vive no seio da União Europeia sobre a questão russa. Na Polónia, tal como nos países bálticos, respira-se hoje um ambiente de pouco abafada angústia quanto à Rússia, às suas ambições e ao grau de determinação do mundo ocidental de lhe fazer frente. Essa Europa mais a Leste vê com preocupação que a prosperidade e o bem-estar no ocidente europeu, ameaçados, por exemplo, pelo custo das sanções à Rússia e pelas necessidades em fornecimento de gás cuja torneira está em Moscovo, são fatores que mobilizam, muito mais que a segurança, as respetivas opiniões públicas.

Ao meu amigo polaco eu poderia perguntar se o seu país e outros dessa área não terão, involuntariamente, sido co-responsáveis pela criação na Ucrânia de expetativas que o bom-senso deveria ter moderado e que, indiretamente, também estão hoje por detrás da tragédia que aquele país atravessa. Eu não tenho certezas mas, na verdade, também não sou vizinho próximo da Rússia.

A Europa, a Grécia e nós


Aqui fica o link para a intervenção que fiz na conferência "Grécia e agora?" promovida pelo Instituto de Direito Económico, Financeiro e Fiscal da Faculdade do Direito da Universidade de Lisboa, no passado dia 4 de março.

Declaração de interesses

Neste ano em que, lá para outubro, se decidirá a quem vai competir a futura liderança política do país, decidi aceitar o honroso convite que me foi feito para integrar um grupo de pessoas a quem caberá acompanhar a preparação do programa socialista para as próximas eleições legislativas.
 
Fazem parte desse grupo Ana Maria Bettencourt, António Correia de Campos, António Vitorino, Augusto Santos Silva, Gustavo Cardoso, Helena André, Helena Freitas, João Cravinho, Paulo Pedroso e eu próprio.
 
Há muito que decidi, em definitivo - e eu sou dos que levam a sério a palavra irrevogável -, nunca mais voltar a ter ação política ativa, mas considerei ser meu dever cívico integrar esta tarefa, pontual e limitada no tempo, de aconselhamento de quantos  se envolvem no esforço democrático e patriótico de preparar uma agenda de alternância, capaz de resgatar o país do improviso governativo que sobre ele se abateu nos últimos anos.
 
Se estiverem de acordo comigo, "wish me luck"! Se não estiverem, amigos como dantes e, lá para outubro, logo regressa o quartel-general a Abrantes...

domingo, março 08, 2015

Viva o Estado!

Nestes dias que antecederam o 8 de março, o que mais se ouviu por aí foi a crítica - muito justa - ao facto de muitas mulheres serem discriminadas, face aos homens, na sua retribuição salarial. 

Ninguém se terá lembrado - e seria muito justo que isso fosse dito - que, na Administração Pública, não existe hoje a menor discrepância de salários entre homens e mulheres.

Quando tanto se diaboliza o serviço público, convém que, ainda dentro do dia internacional da mulher, possamos, também a este respeito, dizer com orgulho: viva o Estado! 

8 de março

Neste dia internacional da mulher, e num tempo em que combate à violência doméstica está (felizmente) na atualidade, vale a pena lembrar, pelo que revela de um Portugal que, se calhar, ainda continua a existir por aí, o que uma mulher de A-Ver-o-Mar dizia à escritora Luísa Dacosta, quando interrogada sobre se o marido lhe batia: "Ele não me bate muito, só o preciso".

O drama presidencial


O senhor presidente da República deve receber em Belém os insofismáveis registos de opinião que dão nota de que a generalidade dos portugueses avalia hoje, de forma amplamente negativa, a sua prestação no lugar que ocupa. Seria interessante, se não fosse impossível, o país conhecer o que infere o chefe do Estado desse facto, a quem atribui as culpas desse estado de alma da nação face ao seu supremo magistrado - num fim de mandato que, por regra, leva à atenuação das arestas da crítica e à cristalização, no imaginário coletivo, de um somatório das qualidades que a benevolência da memória pública foi capaz de decantar nos titulares cessantes do cargo. Mas podemos imaginar, atentando naquilo que conhecemos da personagem, que o senhor Presidente não se deve auto-atribuir grandes responsabilidades nesse estado de coisas, passando as culpas para a conjuntura adversa, para o viés da comunicação social, para a má fé das forças políticas e dos fazedores de opinião. O senhor presidente, lá no fundo, deve achar-se filho daquela senhora que, ao ver um pelotão militar marchar, conclui que só o seu rebento leva o passo certo.

Ontem, o senhor presidente, ao comentar as trapalhadas das contas do primeiro-ministro com o erário, deu uma prova mais de que permanece numa profunda dessintonia com o país, que - com todo o devido respeito - não entende que lhe compete interpretar o sentimento maioritário dos portugueses e que o cargo que ocupa imporia que mantivesse, até ao último dia que o vai exercer, uma neutralidade e uma avaliação elevada da situação política que lhe compete tutelar. Resta a leitura de que, por detrás deste evidente gesto de não adesão à exigência nacional da clarificação, de uma vez por todas, do passado profissional, fiscal e contributivo do dr. Passos Coelho, o senhor presidente da República possa estar a ecoar subliminarmente o seu próprio embaraço, o facto de não ter deliberadamente deixado dilucidada uma questão que o país sabe que continua a ser-lhe incómoda: a sua lamentável relação com o caso BPN. Neste teatro de sombras em que o palácio de Belém se converteu, este parece ser o drama do senhor presidente. Que, para o país, é uma tragédia.

B & B

Há bastantes anos que ouvia falar daquele restaurante, situado numa certa capital de distrito, onde não vou muito e onde tinha escassas refe...