Aquele meu conhecido parisiense, um homem encantador que vivia numa "péniche" atracada a um cais do Sena, estava claramente hesitante quando me abordou. Queria ter-nos como convidados para um jantar no seu barco, onde vivia rodeado de antiguidades, mas não sabia se eu aceitaria que, na ocasião, também estivesse o seu "ami Jean-Marie".
À primeira não percebi, à segunda lá entendi que se tratava de Jean-Marie Le Pen, o líder da extrema-direita, antigo candidato à presidência da República francesa, à época ainda presidente do Front National. Tratava-se de uma personalidade que, pelos seus propósitos negacionistas e outras tomadas de posição conexas, fazia claramente parte das figuras "non fréquentables" para um grande número de franceses.
Estávamos em 2010. Le Pen continuava a ser, a grande distância, dentre as personalidades do espetro político francês, a mais polémica. A sua filha estava então prestes a assumir a presidência do seu partido, o "Front National" (hoje ""Rassemblement National").
Confesso que tinha alguma curiosidade em conhecer, ao vivo, essa figura, com a qual eu próprio tivera uma "accrochage" no Parlamento Europeu, uma década antes, a propósito da chegada ao poder da extrema-direita austríaca (curiosamente, por estes dias, um quarto de século depois, o cenário volta a repetir-se). E, ultrapassando algumas hesitações íntimas, decidi aceitar o tal convite para jantar.
Há figuras que são exatamente aquilo que é a sua caricatura. Le Pen é uma delas. As suas reações em privado, a sua forma de estar e de interagir, reproduziam precisamente a imagem que eu tinha dele, recolhida das muitas aparições que lhe vira na televisão.
Foi cordial para com o embaixador de um país que conhecia bem e sobre cujos nacionais, sem ser entusiático, disse as coisas óbvias do "politicamente correto" francês. Contou-me das suas viagens ao Porto, como velejador, onde conheceu o "Duque" da Ribeira, de quem se teria tornado amigo. Elogiou as qualidades gastronómicas de um restaurante português da periferia de Paris, que era então uma espécie de cantina informal do "Front National", por se situar ao lado da respetiva sede. Não me disse, mas isso eu sabia, que havia uma presença de portugueses e luso-descendentes nos apoiantes do partido.
À mesa, fiquei à sua direita (tem alguma graça, ficar "à direita" de Le Pen). Dominou a conversa, com um discurso bastante crítico do então presidente Sarkozy, muito centrado na necessidade de reforço das políticas securitárias e no combate ao que considerou ser a "permissividade" na gestão dos fluxos migratórios.
Os circunstantes, gente claramente conservadora, mostravam-se simpáticos perante o que ouviam. Um, dentre eles, chegou mesmo a afirmar que, pela primeira vez, encarava votar "Front National" nas próximas eleições. O ambiente estava longe de ser desfavorável a Le Pen, bem pelo contrário.
Durante muito tempo, mantive-me bastante discreto na conversa, interessado que estava em olhar a personagem. "Entre la poire et le fromage", como se diz na linguagem social francesa, decidi intervir.
Disse que o fazia como observador estrangeiro, não comprometido com a vida política francesa. Mas que não resistia a expressar uma curiosidade. Como ele bem constatara, algumas das suas propostas políticas até eram relativamente bem aceites, porque, aparentemente, iam ao encontro das preocupações, em matéria de segurança, que uma certa França alimentava. Por essa razão - perguntei eu a Le Pen - por que razão persistia em manter, no seu discurso político, uma outra dimensão, assente em pressupostos como a desvalorização da barbárie nazi nos campos de concentração, temática com óbvias conotações antijudaicas, que acabava por radicalizar a postura do "Front National" e dele afastar potenciais simpatizantes?
Le Pen olhou-me, talvez surpreendido pela frontalidade da questão. Mas reagiu bem. Sem hesitações, perguntou-me: "Está a referir-se ao 'detalhe'? ". Estava. Como disse, ficou famosa a frase em que Le Pen, a propósito da quantificação do número de assassinatos nazis nos campos de concentração, disse que isso não passava de um "detalhe" no contexto das mortes do segundo conflito mundial. E, nesse jantar, voltou a repetir isto. E acrescentou, por exemplo, que era muito estranho que nunca se falasse no facto das linhas de caminhos de ferro que levavam aos campos de concentração alemães nunca tivessem sido bombardeadas pela aviação aliada (confesso que até então nunca ouvira falar do assunto!).
Tudo isto acabou por dar, por completo, e em escassos minutos, a volta ao ambiente. As mostras de simpatia pelas políticas securitárias ou de controlo da imigração preconizadas por Le Pen dissolveram-se no ar, que se tornou pesado. O jantar terminou de forma um tanto apressada.
À saída, o convidado que havia dado mostras de poder vir a votar "Front National" aproximou-se de nós e, em voz baixa, pediu desculpa por termos sido testemunhas de "algumas tomadas de posição que envergonham a França". Vim a saber depois que era uma figura da comunidade judaica.
Jean-Marie Le Pen, indiscutivelmente a grande personalidade da extrema-direita francesa no pós-guerra, morreu hoje.
No debate no Parlamento Europeu, em janeiro de 2000, em que fui por ele zurzido, a propósito da questão austríaca, houve uma figura francesa que saiu em minha defesa - e a quem, anos mais tarde, tive o ensejo de agradecer pessoalmente a sua atitude. Foi François Bayrou. É hoje primeiro-ministro do seu país.
(Estes episódios já foram por aqui contados no passado. Achei interessante relembrá-los no dia da morte de Jean-Marie Le Pen.)
À primeira não percebi, à segunda lá entendi que se tratava de Jean-Marie Le Pen, o líder da extrema-direita, antigo candidato à presidência da República francesa, à época ainda presidente do Front National. Tratava-se de uma personalidade que, pelos seus propósitos negacionistas e outras tomadas de posição conexas, fazia claramente parte das figuras "non fréquentables" para um grande número de franceses.
Estávamos em 2010. Le Pen continuava a ser, a grande distância, dentre as personalidades do espetro político francês, a mais polémica. A sua filha estava então prestes a assumir a presidência do seu partido, o "Front National" (hoje ""Rassemblement National").
Confesso que tinha alguma curiosidade em conhecer, ao vivo, essa figura, com a qual eu próprio tivera uma "accrochage" no Parlamento Europeu, uma década antes, a propósito da chegada ao poder da extrema-direita austríaca (curiosamente, por estes dias, um quarto de século depois, o cenário volta a repetir-se). E, ultrapassando algumas hesitações íntimas, decidi aceitar o tal convite para jantar.
Há figuras que são exatamente aquilo que é a sua caricatura. Le Pen é uma delas. As suas reações em privado, a sua forma de estar e de interagir, reproduziam precisamente a imagem que eu tinha dele, recolhida das muitas aparições que lhe vira na televisão.
Foi cordial para com o embaixador de um país que conhecia bem e sobre cujos nacionais, sem ser entusiático, disse as coisas óbvias do "politicamente correto" francês. Contou-me das suas viagens ao Porto, como velejador, onde conheceu o "Duque" da Ribeira, de quem se teria tornado amigo. Elogiou as qualidades gastronómicas de um restaurante português da periferia de Paris, que era então uma espécie de cantina informal do "Front National", por se situar ao lado da respetiva sede. Não me disse, mas isso eu sabia, que havia uma presença de portugueses e luso-descendentes nos apoiantes do partido.
À mesa, fiquei à sua direita (tem alguma graça, ficar "à direita" de Le Pen). Dominou a conversa, com um discurso bastante crítico do então presidente Sarkozy, muito centrado na necessidade de reforço das políticas securitárias e no combate ao que considerou ser a "permissividade" na gestão dos fluxos migratórios.
Os circunstantes, gente claramente conservadora, mostravam-se simpáticos perante o que ouviam. Um, dentre eles, chegou mesmo a afirmar que, pela primeira vez, encarava votar "Front National" nas próximas eleições. O ambiente estava longe de ser desfavorável a Le Pen, bem pelo contrário.
Durante muito tempo, mantive-me bastante discreto na conversa, interessado que estava em olhar a personagem. "Entre la poire et le fromage", como se diz na linguagem social francesa, decidi intervir.
Disse que o fazia como observador estrangeiro, não comprometido com a vida política francesa. Mas que não resistia a expressar uma curiosidade. Como ele bem constatara, algumas das suas propostas políticas até eram relativamente bem aceites, porque, aparentemente, iam ao encontro das preocupações, em matéria de segurança, que uma certa França alimentava. Por essa razão - perguntei eu a Le Pen - por que razão persistia em manter, no seu discurso político, uma outra dimensão, assente em pressupostos como a desvalorização da barbárie nazi nos campos de concentração, temática com óbvias conotações antijudaicas, que acabava por radicalizar a postura do "Front National" e dele afastar potenciais simpatizantes?
Le Pen olhou-me, talvez surpreendido pela frontalidade da questão. Mas reagiu bem. Sem hesitações, perguntou-me: "Está a referir-se ao 'detalhe'? ". Estava. Como disse, ficou famosa a frase em que Le Pen, a propósito da quantificação do número de assassinatos nazis nos campos de concentração, disse que isso não passava de um "detalhe" no contexto das mortes do segundo conflito mundial. E, nesse jantar, voltou a repetir isto. E acrescentou, por exemplo, que era muito estranho que nunca se falasse no facto das linhas de caminhos de ferro que levavam aos campos de concentração alemães nunca tivessem sido bombardeadas pela aviação aliada (confesso que até então nunca ouvira falar do assunto!).
Tudo isto acabou por dar, por completo, e em escassos minutos, a volta ao ambiente. As mostras de simpatia pelas políticas securitárias ou de controlo da imigração preconizadas por Le Pen dissolveram-se no ar, que se tornou pesado. O jantar terminou de forma um tanto apressada.
À saída, o convidado que havia dado mostras de poder vir a votar "Front National" aproximou-se de nós e, em voz baixa, pediu desculpa por termos sido testemunhas de "algumas tomadas de posição que envergonham a França". Vim a saber depois que era uma figura da comunidade judaica.
Jean-Marie Le Pen, indiscutivelmente a grande personalidade da extrema-direita francesa no pós-guerra, morreu hoje.
No debate no Parlamento Europeu, em janeiro de 2000, em que fui por ele zurzido, a propósito da questão austríaca, houve uma figura francesa que saiu em minha defesa - e a quem, anos mais tarde, tive o ensejo de agradecer pessoalmente a sua atitude. Foi François Bayrou. É hoje primeiro-ministro do seu país.
(Estes episódios já foram por aqui contados no passado. Achei interessante relembrá-los no dia da morte de Jean-Marie Le Pen.)
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