sábado, dezembro 29, 2012

Ondas

Este Natal, como despedida de Paris, tive direito à oferta de um magnífico trabalho de Gérard Castello-Lopes.

Não revelo, mas gostei muito, da interpretação que quem mo ofertou fez da natureza das ondas deixadas pelo cacilheiro.

sexta-feira, dezembro 28, 2012

O Conceito e as estratégias

Como membro da comissão, convidada e nomeada pelo governo, coordenada pelo professor doutor Luís Fontoura, que nos últimos meses preparou a proposta do novo "Conceito estratégico de segurança e defesa nacional", devo dizer que me tem divertido o modo como alguma comunicação social, bem como certa blogosfera, têm abordado o fruto do nosso trabalho. E da diversão passo mesmo à estupefação quando vejo grupos e classes profissionais assumirem "ameaças", caso o documento venha a ser adotado. A tudo isto acresce uma espécie de movimento contestatário do exercício, entrincheirado numa publicação militar que sempre me habituei a respeitar e que estranho ver convertida num "bunker" da reação ao texto.

Afinal de contas, que diabo fizemos nós de tão "subversivo" para provocar estas reações? O documento em causa foi elaborado sob uma metodologia que privilegiou uma completa liberdade na abordagem de temáticas que definimos como essenciais. De facto, procurámos não respeitar nenhum "politicamente correto" e, em especial, cuidámos em não condicionar o aprofundamento das questões à presunção de quaisquer sensibilidades que viessem a ser suscitadas pela sua futura leitura.  Desta forma, reconheço que o texto pode aparecer como heterodoxo face a algum senso comum, habituado a um rame-rame de ideias recicladas e de reiteração de platitudes.

Quando aceitei fazer parte desse grupo, parti do princípio, que creio correto, de que o que o executivo pretendia de nós era obter um conjunto organizado de reflexões sobre a melhor forma de perspetivar as condicionantes estratégicas de um país como Portugal, num mundo em mutação e perante uma situação conjuntural nacional muito particular. Foi isso que fizémos. Não elaborámos um "programa de governo", preparámos algumas ideias que os poderes públicos podem, se assim quiserem, vir a utilizar, ou não, dentro da legitimidade, que é exclusivamente sua, para selecionarem as opções que consideram mais adequadas para o país. Nem mais, nem menos.

Uma última nota para referir que a visível heterogeneidade política, bem como de formação profissional e académica, dos componentes do grupo de trabalho impede, em absoluto, e presumo que para engulhos de muitos, que o texto possa ser acusado de estar ideologicamente "enviezado", tutelado por conluiados interesses obscuros ou de "capelinha". Percebo que essa circunstância possa irritar alguns setores críticos, que assim ficam desmunidos desse tradicional argumento desvalorizador. Mas que se há-de fazer? 

quinta-feira, dezembro 27, 2012

O dilema das gravatas

Pode ser impressão minha, mas acho que anda por aí um dilema não muito bem resolvido no tocante ao porte de gravata em certas ocasiões, mais ou menos oficiais. Isto passa-se em Portugal, mas não só.

Conhecendo os usos e costumes dos serviços do protocolo, acho que a crescente intermitência com que algumas personalidades  usam ou deixam de usar gravata em certos e não determinados momentos públicos deve estar a provocar sérias dores-de-cabeça em quantos têm por missão dar recomendações sobre o vestuário a utilizar nas comitivas oficiais. Tanto mais que este "desgravatamento" está longe de ter ainda um registo solidamente tipificado em função das diversas ocasiões, suscetível de poder ser identificado como a criação de uma regra: para assinar um acordo usa-se gravata, mas para visitar uma feira comercial o adereço é dispensável? E para um encontro técnico? E se ele for ao ar livre é diferente? "Negoceia-se" com os interlocutores se se aparece ou não com gravata?

Assim, ou muito me engano ou anda hoje muita gente perdida nessas comitivas oficiais, pelo mundo fora, fazendo e desfazendo o nó, sem regra e sem rumo, apenas sempre cuidando, disciplinadamente, de seguir o padrão observado pelas chefias das delegações.

Em Portugal, eu próprio, devo dizê-lo, sofri desse "gravatal" dilema este Verão, numa reunião de trabalho, em Portugal. Levado pela filosofia subjacente à decisão do Ministério da Agricultura de abolir as gravatas nos seus serviços, preparava-me para ir de colarinho aberto para uma reunião nesse domínio com técnicos da UNESCO, no calor estival da Régua. Pensava eu que ia "na moda". E não é que, afinal, para essa reunião, estava previsto o uso da gravata? Lá afivelei à pressa o adereço... 

Há dias, nessa observação antropológica a que me tenho dedicado, nesta semiótica da gravata, assisti, na televisão, a uma cena algo curiosa. Um governante passeava por uma rua, num país bem quente, sem gravata. Nada de estranhar: a ocasião estava longe de ser solene ou de rigor e o mais natural era adotar um traje aligeirado em matéria de protocolo. Porém, logo atrás, surgia um destascado membro da comitiva de fato completo e gravata. Segundos depois, numa outra imagem, quase sequencial, essa mesma segunda figura já era vista sem gravata, parecendo assim ter adotado, a meio do percurso, o exemplo liberal dado pelo seu superior. A reportagem prosseguiu e, alguns instantes mais tarde, o membro do governo, sempre sem gravata, era entrevistado para a câmara. Atrás, a tal figura da comitiva, lá estava, de novo, com gravata! Que grande complicação! (A explicação estará porventura no "cuidado" com que a comunicação social terá feito a montagem da peça).

Neste domínio, aqui pela embaixada em Paris, as coisas, muito em breve, vão ficar facilitadas. Ou melhor, pelo menos com as gravatas, o problema não se colocará nunca. O futuro embaixador só usa "papillon"...

quarta-feira, dezembro 26, 2012

António de Figueiredo

Há semanas, uma das mais fiéis amigas deste blogue, Helena Oneto, referiu-se, num comentário, a António de Figueiredo (1929-2006), um jornalista português que passou grande parte da sua vida em Londres. Decidi lembrá-lo hoje.

Para a minha geração, António de Figueiredo era um nome mítico do jornalismo português que, no estrangeiro, que se opunha ao Estado Novo. Representante do general Humberto Delgado em Londres, a partir de 1959, havia trabalhado na secção portuguesa da BBC e no "The Guardian", tendo artigos dispersos por imensas outras publicações. Em 1961, tinha ficado histórico o seu "Portugal and its Empire: the truth" e, em 1975, foi muito divulgado o livro que publicou na Penguin, "Portugal: fifty years of dictatorship". Amigo de Basil Davidson, dedicou, como este, uma grande atenção à luta anti-colonial e anti-apartheid, sendo internacionalmente reconhecido como um especialista na matéria. Após 1974, e de quando em vez, textos seus surgiram na imprensa portuguesa.

Um dia, em Londres, creio que em 1990, o Eugénio Lisboa (com ou sem o Rui Knopfli, já não recordo bem), levaram-me a almoçar com ele a um restaurante italiano de Knightsbridge, onde o Eugénio era "habitué". Ambos haviam conhecido Figueiredo em Moçambique, para onde fora viver aos 17 anos e se iniciou no jornalismo. Envolvido na luta oposicionista em Lourenço Marques, viria a ser preso na sequência das "eleições" perdidas pelo "general sem medo", sendo depois expulso para Portugal. No ano seguinte, rumou a Londres, onde ficou até à sua morte, em 2006.

António de Figueiredo movimentava-se com alguma dificuldade, devido a uma doença de espinha que o limitava. Tinha uma memória fantástica, histórias curiosas sobre o mundo que rodeou o "general sem medo" e sobre o ambiente da oposição à ditadura portuguesa em Londres. Não era aquilo a que se chama um homem naturalmente simpático. Havia nele uma certa amargura e alguma acidez crítica, talvez fruto de uma vida que não fora fácil e do que me pareceu ser a falta de um reconhecimento público, em Portugal, pelo papel político que desempenhara contra a ditadura.

Dois anos mais tarde, convidou-me para ir beber um chá a sua casa, nos arredores de Londres. Era uma residência modesta, onde vivia num mundo de livros, uma imensa e riquíssima biblioteca sobre África, construída ao longo de décadas. Esforçava-se por organizá-la, a fim de poder vender uma parte dela a um comprador público em Portugal, mas as suas condições físicas tornavam difícil a tarefa. Com sorte, consegui arranjar forma de custear um jovem colaborador, que com ele levou a cabo esse trabalho. Julgo que o negócio se concluiu e que António de Figueiredo pôde beneficiar desses recursos, uma soma considerável para a época, nos últimos anos da sua vida. Ainda tive o gosto de testemunhar, em 1993, o almoço em Belgrave Square em que o presidente Mário Soares o distinguiu com a "Ordem da Liberdade". Um gesto que, estou certo, muito apreciou.

Vale a pena ver o que o "The Guardian" escreveu por ocasião da sua morte. Porque não consegui encontrar nenhuma fotografia de António de Figueiredo, deixo a capa do seu conhecido livro de 1961.

A descoberta da pólvora

Uma figura política francesa, militante contra o casamento entre homosexuais, afirmou, com a maior seriedade, que, na realidade, nada impede que os homosexuais se casem: "Os homosexuais podem-se casar naturalmente, desde que com uma pessoa do outro sexo...".

Porque será que nunca ninguém se tinha lembrado disto?

terça-feira, dezembro 25, 2012

Fitas diplomáticas?

Foi há minutos, num intervalo entre dois programas - ou da SIC i ou da RTP i, os únicos que por aqui (a espaços) se veem. Aparentemente, é uma nova novela. Nela, um pai dizia para um filho qualquer coisa como: "Mas eu achava que gostavas de ser diplomata!".

Temo o pior! "Zooms" sobre mãos ansiosas nas esperas na sala dos embaixadores? Planos fixos no Livro Branco? "Travellings" à volta dos claustros? "Long takes" nas salas do Protocolo? "Nuits américaines" na Cifra? "Contre-plongées" nas escadas entre os palácios? "Fade-outs" sobre as saídas à sucapa? Contra-campos no Pacto? "Close-ups" sobre as malas do Expediente? Planos de corte no Corepe?

Ou será que, muito simplesmente, se trata de propaganda institucional para o próximo concurso de admissão de diplomatas, que me dizem que abriu há dias, sem grande divulgação?

À esquina da Gomes

Sabem o que é a Gomes? A maioria dos leitores deste blogue não sabe, estou certo. Tal como acontece em todas as cidades, Vila Real tem um café de culto. Neste caso, a Pastelaria Gomes.

Porquê a Gomes? Porque sim. Distinguiu-se sempre da antiga Pompeia, do meu desaparecido amigo Neves, por ser mais cosmopolita; da Rosas, do sr. Rosas, por ser mais intimista e dispensar as bizarrias do Toninho; do Excelsior, por ser mais elitista, por esconder os bilhares e não ter dominó; do Clube, por não ser habitual por lá ver comerciantes de gado de samarra e cajado; do Imperial, do sr. Lima, por ali não ser hábito ver o patrão a bater nos clientes; da Brasileira, logo em frente, porque, c'os diabos!, nunca custou nada atravessar a rua.

A Gomes começou na "Gomes velha", onde ainda me recordo de ver, à porta, o sr. Gomes e onde hoje se vai pelo bolo-rei, pelas "cristas de galo", pelos "jesuítas" ou, sazonalmente, no S. Brás, pelas "ganchas" e pelos "pitos" de Santa Luzia, embora a concorrência doceira do Lapão seja cada vez mais feroz. Foi depois construído o novo edifício, que teve a imensa novidade de possuir um elevador... que nunca ninguém viu funcionar. E que tinha, no alto de um mastro, uma misteriosa lâmpada que se mantinha acesa enquanto a casa estivesse aberta à noite, sinal de que podiam ser servidos, se se apressassem, os "connaisseurs" que viessem do Porto, pela estrada velha, logo que chegados à "curva do espanto", em Arrabães, primeiro lugar de onde, no Marão, se vislumbravam as luzes da cidade.

Se a memória me não falha, a Gomes foi, em Vila Real, o primeiro café onde as mulheres podiam ir, com naturalidade, sozinhas. Dizia-se, nesses anos, que receber um convite para tomar chá na Gomes ("em cima", sempre "em cima") com a dona Irene Viana (mulher do dentista e meu professor de ginástica) era o passaporte para a entrada das senhoras na sociedade local. E, glória das glórias!, embora poucos se lembrem disso, a Gomes foi talvez o único lugar público do género onde, que me lembre, nunca entrou uma infernal televisão.

Na Gomes sempre houve zonas geográficas mais ou menos consagradas, que não revelo para não identificar alguns dos seus regulares ocupantes. Entre eles, há os que afivelam sempre um ar "grave", de "polícia da Régua", que parece fazer parte da condição necessária para serem levados a sério. Outros falam para serem ouvidos nas mesas ao lado, num dispensável, por ineficaz, esforço de proselitismo. Os mais discretos, mas, nem por isso, os menos atentos, ficam-se pela mesa mais misteriosa de todo o café, com dois lugares, que está perto da porta interior, o único poiso onde se consegue ter uma conversa "tête-à-tête", sem risco de penduras.

A disposição física do espaço torna a Gomes uma espécie de plateia de um antigo teatro francês, com o "coté cour" e o "coté jardin" a ser dado pelas entradas - seja pela antiga máquina do fiambre (sede clássica de pouso do Zé Araújo), seja pelo antigo balcão dos "furinhos" dos chocolates, onde se colocavam jornais com suporte de madeira e onde, durante muito tempo, esteve o telefone preto. Essas duas entradas do proscénio (o Achilles explicaria isso, mas quem não for de Vila Real sabe lá quem era o Achilles) induzem uma visível timidez em certos visitantes ocasionais, atarantados pelo infalível escrutínio, seguido de cochicho. No verão, tirado o vetusto "estrado", a saída para a avenida muda o cenário, que se prolonga então pela esplanada. Obter por aí um café, em dias de enchente, é um privilégio que obriga a meter cunhas.

Foi pela Gomes que eu comecei a parar, ainda nos tempos de liceu, com mesa marcada "em cima", ao canto esquerdo de quem entra, com o brandy L34 a acompanhar o café, erro que sinto, para sempre, na memória do meu fígado. Por aí passei muitas horas a discutir coisas fúteis da vida e, cada vez mais, da política. Para as caves da Gomes fui cooptado, ritual de iniciação a que atribuí grande importância, para a visualização de alguns filmes heterodoxos, trazidos da estranja por ousados viajantes locais, sobre cujo conteúdo a moral deste blogue me não deixa elaborar. Foi na Gomes que, com alguns outros, fui, em 1969, interpelado pelo comandante da GNR, por comentários entendidos como "subversivos", que, sem consequências de maior, nos conduziram ao Governo civil.

A Gomes, honra lhe seja!, foi sempre um espaço plural, nunca foi grandes políticas sectárias, por lá pararam, serenamente, todas as tendências, da Situação ou da Oposição - e eu estive, ao longo dos tempos, em ambas, e não necessariamente por esta ordem. Em várias décadas, nunca deixei de "ir à Gomes", nas minhas estadas aperiódicas por Vila Real. E por lá passo, com gosto, em férias, sempre que posso, para rever amigos e conhecidos. E, claro, para comer um covilhete ou uma fatia de bola de carne.

A Gomes dos dias de hoje está diferente da dos velhos tempos. Às vezes, vejo-a um pouco desleixada, o pessoal, embora simpático, tem um ar um tanto errático e demasiado "casual" para o meu gosto - eu venho dos tempos clássicos do João, do "Sapo", do Gonçalo, do Fernando ou do José. Mudaram agora de traje, depois de uns balandraus que usaram, pretendidamente de côr laranja, muitas vezes já a justificarem uma visita aos sucessores do Alarcão (se não é vila-realense, passe para o parágrafo seguinte). Prova de uma mudança radical da Gomes é o facto de, julgo que pela primeira vez na sua história, "A Voz de Trás-os-Montes", no ano passado, não trazer um anúncio natalício que já havia ficado histórico na cidade: ao canto de um grande espaço em branco, havia uma nota que dizia: "se a Pastelaria Gomes necessitasse de publicidade, utilizaria este espaço". As instituições - e a Gomes é uma instituição - fazem-se de simbolismos. E estes devem respeitar-se, sem o que a identidade se esvai. Atenção, ó gente da Gomes!

Hoje, dia de Natal, a Gomes estará fechada, creio eu (com a crise, sabe-se lá!). Mas há um lugar que, com toda a certeza, não "fecha" e à volta do qual a cidade gira. Esse lugar é a esquina da Gomes, um marco geográfico, charneira entre a avenida Carvalho Araújo e o largo do (regressado) Pelourinho. Por lá nos encostávamos, na adolescência, para ver sair o "pequename" da missa da Sé, logo em frente. Nos invernos, a esquina é sede de ventanias sem par, onde confluem grupos que atiram uns aos outros um indizível "Méixiôres!" (que do vila-realez apressado se transcreve como a saudação "Meus senhores!", enviada de um grupo de passeantes a outros), nesta época natalícia logo seguido do clássico "Continuação!", expressão que se utiliza até aos Reis. Por lá se passeiam, nos dias 25 de dezembro, com sol ou sem ele, as camisolas-de-losangos e os cachecóis que "saíram" nas prendas da véspera, vestindo amigos e conhecidos, mais ou menos "graves", que, do percurso do liceu ao "cabo-da-vila" (desistam aqui os não-vilarealenses), calcorreiam, devagar, a memória sedimentada desde a infância. Como aqui agora fiz, "preso", este ano, a Paris.

(Este texto surgiu aqui no dia 25 de dezembro de 2011. Republico-o hoje, "a pedido de várias famílias" (mais precisamente, três), porque não terá perdido atualidade - a Gomes nunca muda! Perdem-se, contudo, alguns deliciosos comentários que, quem assim quiser, pode ir procurar na versão original. Ah! na fotografia, expressionisticamente "suja" de hoje, a "tal" esquina da Gomes está à direita. Ela é mais famosa que fotografada.)

Guimarães

Guimarães 2012 - capital europeia da Cultura acabou. E correu muito bem, diria mesmo muito melhor do que alguns esperavam e talvez bastante bem melhor do que outros desejavam.

Ao longo de mais de um ano, como membro do Conselho Geral da Fundação Cidade de Guimarães, tive oportunidade de acompanhar a seriedade com que a equipa chefiada por João Serra levou a cabo a preparação e execução deste trabalho. As condições estiveram longe de ser as ideais, com recuos nos financiamentos públicos que obrigaram a uma ginástica de difícil montagem, "a meio do jogo". 

O mais interessante em todo este processo foi ter tido o ensejo de observar o modo como a cidade de Guimarães se foi "apoderando" do exercício, usando-o com crescente gosto, dele partindo para o usufruto de uma nova maneira de se olhar como centralidade cultural. Guimarães, com esta experiência, reforçou o seu lugar nos roteiros nacionais e europeus, juntando um tom de contemporaneidade à imagem histórica tradicional, para além de ficar dotada de novas e valiosas infraestruturas e renovação urbana, de que o Toural é um excelente exemplo.

Uma palavra final é devida a António Magalhães, presidente da municipalidade de Guimarães, que teve a coragem, no momento certo, de assumir com frontalidade as ruturas que era preciso fazer. A sua aliança operativa com João Serra foi a chave deste sucesso, ao qual não é alheio Jorge Sampaio, na orientação firme do Conselho Geral da Fundação, como tive o ensejo de testemunhar. 

Em Portugal, o que corre mal é quase sempre selecionado como notícia. Com Guimarães 2012, e por uma vez, o jornalismo adversativo está apreensivo. A experiência mostra que não descansará enquanto não inventar alguma coisa, quanto mais não seja ressuscitando, oportunamente, alguns fantasmas. É só aguardar...

segunda-feira, dezembro 24, 2012

Desagravo*


((*) Alguns palermas - o nome é esse - não conseguiram ver neste texto a ironia que ele obviamente continha. Mas alfabetização dessa gente é possível!)

Neste Natal, uma palavra de desagravo é devida a um homem que dá pelo nome de Artur Baptista da Silva, nas últimas horas alvo de uma violenta campanha de difamação mediática. 

Com uma imperdoável precipitação, a nossa comunicação social colocou em dúvida as suas credenciais como importante responsável técnico dentro das Nações Unidas. Pelo que me toca, devo dizer que enquanto não ouvir uma atestação pessoal de Ban Ki Moon, a palavra de Artur Baptista da Silva é-me pelo menos tão válida quanto a dos seus detratores. E o facto das estruturas principais das organizações internacionais estarem, nesta época, em período de férias torna difícil credibilizar, com segurança, qualquer contestação que delas eventualmente possa emergir, quiçá infirmando as relevantes responsabilidades que o Professor Baptista da Silva afirma exercer dentro da ONU.

Uma meridiana prudência aconselha, assim, a que se tente ir um pouco além de meros pormenores de natureza adjetiva, como seja essa sempre despicienda questão dos cursos ou títulos académicos, bem como das instituições universitárias que os emitiram. A experiência dos jornalistas portugueses já os deveria ter ensinado a não seguirem por esse tipo de caminho. E talvez seja muito mais prudente e avisado começar a julgar a idoneidade do Professor Doutor Baptista da Silva em função da real substância daquilo que ele próprio tem vindo a dizer sobre a nossa situação económica, a exemplo do que lhe ouvi, sob o olhar grave e perscrutante do participantes, no recente "Expresso da Meia Noite" da SIC.

A minha pergunta é muito simples: como é possível alguém ter o topete de qualificar o Professor Baptista da Silva como um "impostor" quando, nos últimos meses - eu diria mesmo, nos últimos anos! - muitos dos economistas portugueses, seus eventuais colegas, nos encheram os ouvidos e os dias com coisas bem menos bem articuladas? Não me venham dizer que esses economistas são todos uns impostores! Acredito mais rapidamente no Pai Natal do que nisso, desculpem lá! 

Não conheço pessoalmente Baptista da Silva. A sua cara, porém, diz-me qualquer coisa, não me é estranha, embora não possa garantir, a 100%, tê-la avistado algum dia no "Indonesian lounge" ou na "cafeteria" do palácio de vidro, em Nova Iorque. Graça teria se tivesse sido nos corredores da OMPI...

(Em tempo e para os leitores mais ingénuos: com este post, divulgado numa altura em que a patranha já era evidente, quis apenas significar que Portugal se está a transformar num país de Baptistas da Silva... Os portugueses mereceram bem, neste Natal, esta divertida e ubuesca história, onde a realidade de cruzou com a ficção, num registo a que não faltou um discurso a armar ao técnico especializado, o qual, só pelo facto de tratar de coisas sérias, foi logo tomado a sério! E toda a comunicação social portuguesa, que foi alegremente na onda, vinga-se agora com o desmascarar deste editorialista económico do "Borda d'Água". Com Baptista da Silva nas televisões e o regresso de Vale e Azevedo fica constituído um belo dueto dos especialistas do "faz-de-conta", digno do crédulo país do absurdo em que, afinal, parece que nos estamos a converter. Uma boa consoada para todos!)

sábado, dezembro 22, 2012

Este Natal

Este ano, não passarei o Natal em Vila Real. Na vida, isso aconteceu-me apenas duas vezes: quando vivia em Londres, já nem sei bem porquê, e, no ano passado, porque fiquei por aqui, por Paris, na ressaca de uma questão de saúde. 

Devo dizer que não sinto falta deste Natal, em Vila Real. Seria um Natal triste, depois de um tempo recente em que, por lá, perdi pessoas com cuja falta me não reconciliei. Aliás, nos últimos anos, pelas leis da vida ou da morte, chamem-lhe como quiserem, os Natais têm vindo a tornar-se momentos um pouco mais sofridos do que agradáveis.

Nem sempre foi assim. Até à minha adolescência, os meus Natais dividiam-se entre Viana do Castelo e Vila Real. E eram muito, mesmo muito agradáveis e alegres.

"Exilado" em Vila Real desde os anos 40, o meu pai rumava a Viana com a família, poucos dias antes do Natal, do mesmo modo que fazia nas "férias grandes" e na Páscoa. Invariavelmente, ano após ano. Não tinhamos carro. Íamos de comboio, em três etapas épicas. Primeiro de Vila Real à Régua, na velha linha do Corgo, bancos de "sumopau", com as faúlhas da fumarada das máquinas a entrarem-nos pelos olhos, se acaso espreitávamos pela janelas. Da Régua ao Porto, o comboio era melhor, embora mais monótono. Por um tempo, o Douro ia ali ao lado, mas nós, nessa época, nem olhávamos para ele. (Era uma viagem em que, no Verão, em algumas estações, mulheres vendiam regueifas e água em recipientes de barro: "Água e bilha, 15 tostões!", apregoavam).  A aproximação do Porto, anunciada por túneis sucessivos cuja travessia nunca, até hoje, me sossegou, induzia-me uma recorrente inquietação. É que via o meu pai, com a sua organização meticulosa, preocupado em conferir ao minuto os atrasos, que nessas alturas eram frequentes, por forma a tentar perceber se "dava tempo" para chegar a Campanhã ou mesmo a S. Bento ou se, pelo aperto dos horários, tínhamos de mudar para a linha do Minho em Ermesinde, num rebuliço de bagagens e gentes, com a certeza de ter de ir de pé até Viana, nesses períodos de inevitável enchente dos comboios. É curioso que, até hoje, o nome Ermesinde provoca em mim um "frisson" subliminar, ligado a essa angústia de infância. 

Passávamos quatro ou cinco dias em Viana, com a ceia da Consoada no casarão da minha avó materna, no largo Vasco da Gama, um ambiente que, para a vida, me ficou como sinónimo de férias. Lembro-me bem do presépio que, em cada ano, saía de um armário, do musgo que íamos buscar ao quintal, para colocar sobre um papel forte manchado, e de uma famosa "vaca" que o não era (mas esta é uma "private joke" familiar...). Com os meus primos, jogava pinhões ao rapa e inventávamos algumas maldades inocentes, para encher as noites em que os adultos se entretinham em conversas que só com os anos fomos conseguindo acompanhar. Eram serões muito agradáveis, com todos à volta da minha avó e nós, os mais novos, a traquinar pela imensa casa.

Na tarde de 25 de dezembro, depois da "roupa velha", comida impreterivelmente ao meio dia e meia (a minha avó era de horários sagrados), partíamos para o Porto, comigo já contentado com algumas prendas recebidas. Parte das quais, contudo, para meu silencioso desconsolo, eram sempre pacotes de meias (isso mesmo, meias!), uma oferta regular de duas tias, compradas no Eugénio Pinheiro, ali na Picota. Desse regresso de comboio, tenho para sempre na memória a imagem do meu pai a ler "O Comércio do Porto", nesse dia sempre com as páginas muito ilustradas, com coloridos motivos natalícios. E da minha mãe entretida com a então famosa "Eva" do Natal, uma revista que eu só via surgir nessa altura, com numeração para sorteio de uma moradia. Nunca nos "saiu", diga-se, porque toda a sorte que tivémos deu sempre muito trabalho.

A chegada à estação de S. Bento, com fumarada, apitos e uma barulheira que eu achava o máximo do cosmopolitismo, que depois me lembrava alguns filmes, era um momento desejado. Aguardavam-nos familiares muito próximos, com os quais, após uma ritual passagem para abraços em casa de outros, avançávamos para Vila Real. Ia-se por Santa Catarina, pelo Marquês e por Costa Cabral adiante, passando próximo de Ermesinde (outra vez!), rumo às temíveis curvas do Marão. A elas nos abalançávamos depois de um "reforço" em Amarante, no Zé da Calçada, com aquisição da doçaria na Lai-Lai, ao lado. Passada a Pousada e o ansiado Alto de Espinho, onde a curvaria amainava, as luzes de Vila Real, avistadas de Arrabães, prenunciavam já a outra noite de Natal que aí vinha, desta vez em casa dos meus avós maternos, numa bela e alegre noitada, com outros tios e outros primos. E com novas prendas, claro!

Eram dias felizes. Foram-se os avós, foram-se os pais, foram-se quase todos os tios. Restam os primos, "primos-irmãos", uma rede renovada em gerações, assente num tecido de muito forte amizade. Mesmo assim, este ano, não tenho vontade de passar o Natal em Vila Real.  

É só saúde!

No Hospital de S. João, no Porto, "cada cirurgião faz, em média, uma cirurgia por semana" e "30 cirurgiões nunca foram ao bloco operatório".

Quem afirmou isto foi o presidente do Conselho de administração do Hospital de S. João.

Tal como, há dias, no caso dos "médicos a mais" em Portugal, confesso a minha total incompetência para abordar este tipo de assuntos, fiel ao meu lema de só falar daquilo que sei ou julgo saber. Mas, como simples cidadão, não consigo deixar de achar tudo isto um pouco estranho. Mas, com certeza, devo ser eu quem está a ver mal as coisas.

Haja saúde!

Continuação...

Nos apertos, é sempre muito cómodo haver soluções fáceis, à mão de semear. 

Neste caso, uma vez mais e para não variar, elas saem desse cordeiro eterno para todas as missas - os funcionários públicos. Ou, como se diz na minha terra, nesta época, "continuação"...

Como se vê aqui e aqui.

sexta-feira, dezembro 21, 2012

Boas Festas...

 ... para todos os leitores deste blogue.

Para os republicanos e para os monárquicos, para os críticos e para os defensores do acordo ortográfico, para os que adoram touradas e para quantos as detestam, para quem é de direita e para quem anda pela esquerda, para os bloguistas "graves" da política e para os que não se levam muito a sério, para os adeptos do Sporting e para os adeptos do resto, para os pessimistas e para os meus comparsas otimistas - para todos, Festas Felizes e os meus votos de que 2013 (13, cruzes!) não venha a ser tão mau como alguns já o pintam.
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Post-scriptum só para vilarealenses. O meu amigo Francisco Agarez insinuou, no Facebook, que a fotografia acima reproduzida não parecia ser de Vila Real. Ora isso é um óbvio absurdo. Mandei-lhe a seguinte mensagem: 

Caro Francisco Agarez: mude de óculos, homem! A foto já tem uns anos, mas então não se vê logo que é a avenida Carvalho Araújo, em Vila Real? O vulto a subir é o Bertelo, saído da Sé, junto ao Pátio das Cantigas. A seguir, dos Correios, espreita o Setas e, logo adiante, passados os Quinchosos, junto ao portão do Seminário, lá está a batina do padre Sarmento. Os carros de praça que passam são do Falei e do Bragança. Na reentrância da pensão do Camposana está bem à vista a figura do Honório (não, não é o Fernando Pessoa!), com o saco de plástico na mão. Na vitrine da Pompeia, nota-se que o Neves está a correr os estores. Logo depois, o padre Henrique (então não vê?) está à porta da Voz de Trás-os-Montes, tendo ao lado o Alvelos, que acaba de fechar o Turismo (lá estão as bilhas de segredo de Bisalhães na montra!). Com algum cuidado, vê-se o dr. Zézé a sair do Clube pela escada para a avenida. E, um pouco acima, o Sarreiro encerra a sua loja e o Zé Araújo fecha a porta da Galeria d'Artes, ao lado do barbeiro. Não sei bem quem é o miúdo que está a sair da porta do edifício da Caixa mas, bem mais ao fundo, à direita, embora um pouco mais difícil de descortinar, podem ver-se garrafões a sair do Alcino para a carrinha do António da Toca da Raposa, bem como a barriga proeminente do Furriel, de chapéu na cabeça, a falar com o Chico Costa, de boina basca. Logo depois, bem visível, lá está a bela varanda dos Mota e Costa, com o João Albardeiro encostado à parede a falar com o Quim Rato. Finalmente, só por distração é que você não viu o Pincha e o Chico Cereja a discutir nas escadas do Tribunal. Caramba, homem, vá ao Frederico ver esses olhos! E já que anda ali pelo Pelourinho, compre-me um bolo-rei. Mas na Gomes velha, está bem?)

Em tempo: e o Francisco Agarez respondeu:


Tem toda a razão, meu caro Francisco, mas que quer? Ainda uso as cangalhas que o pai do Frederico me receitou em 1959 e que aviei no Ferreira oculista. Eu bem andava a estranhar ver tudo desfocado à minha volta e já me tinha convencido de que tinha mesmo de mudar de lentes. Mas quando me preparava para passar das intenções aos actos levei com o OE 2013 e encolhi-me todo. Tenho o azar de ter graduações diferentes nos dois olhos (defeito de fabrico de que já não tenho junto de quem reclamar), o que me impede de comprar os óculos novos numa loja das Three Gorges. E também, para lhe dizer quanto é franco, acho que o melhor é mesmo continuar assim, que o que está para vir não é bonito de se ver e já não tenho pernas para ir à caça de lebres e aparentados. Um Bom Natal para si e para a sua mulher".

Nos comentários, alguns vilarealenses ajudaram ainda a "ler" melhor a fotografia. 

TAP

Afinal, não foi o fim-do-mundo para a TAP.

quinta-feira, dezembro 20, 2012

Casa da Música

É uma muito má notícia, a acrescer a outras tantas que nos atormentam os dias, a crise por que passa a Casa da Música, no Porto. Criada no quadro do Porto - Capital Europeia da Cultura, o projeto revelou-se um êxito e uma decisiva contribuição para o reforço de uma centralidade cultural na região.

2012 foi um ano que ligou a Casa da Música a França, com uma programação específica dedicada a este país, cujo lançamento tive o gosto de fazer na embaixada em Paris. Cidade, aliás, onde a respetiva orquestra teve uma prestação de relevo.

Espero que da solução para este impasse não acabe por sair um remendo de gestão que seja o início de um declínio de um grande projeto. Da vida de um país também faz parte a cultura e esta ajuda a atenuar muitas outras mazelas.

Disponibilidade

Não sou um leitor atento dessa bíblia quotidiana que se chama "Diário da República", que até tem "cadernos" (séries) como os grandes jornais. Mas há quem seja. Por isso, a meio da manhã de hoje, essa sentinela cívica que é o meu velho amigo José Dias lá me assinalou que o referido periódico traz hoje a minha exoneração da embaixada em Paris e da UNESCO, "por passar à disponibilidade", com efeito retardado até ao meu aniversário.

Devo dizer que, ao ler o decreto, senti uma sensação curiosa. É o fim de um ciclo, neste caso, o último episódio da crónica de uma saída anunciada. A obrigatoriedade de abandonar o serviço ativo no estrangeiro aos 65 anos é algo que muitos colegas meus contestam, por acharem essa "deadline" etária menos compatível com a tendência universal para se exercerem as funções até mais tarde na vida. Como quem me conhece sabe, não comungo dessa perspetiva, por duas razões.

Em primeiro lugar, porque havendo hoje menos postos diplomáticos e consulares de carreira, tendo sido reduzidos os lugares de chefia no MNE em Lisboa e havendo um manifesto "engarrafamento" na categoria profissional que permite o acesso às chefias de missão no exterior, é para mim mais do que natural que sejam dadas possibilidades a alguns colegas de ascensão a essa titularidade. E isso, naturalmente, passa pela "saída de cena" dos mais antigos. Nada de novo, basta cumprir a lei, que tem décadas. Por isso, também não se justificam os arroubos de "jeunisme" que afetaram algumas pressurosas fontes (quase) anónimas do MNE, ao darem parangonas à baixa da média etária dos novos chefes de missão. 

Em segundo lugar, esta obrigatória passagem à "disponibilidade" - curioso conceito, mais adequado a uns dos que a outros, diga-se... -, em particular se associado à possibilidade de acesso à aposentação, abre a hipótese a alguns diplomatas de, a partir dos 65 anos, ainda terem acesso a uma "segunda vida" profissional, que permita complementar as suas pensões de aposentação, sobre cujo futuro fiscal me abstenho naturalmente de falar. Como uma lei (do anterior governo, diga-se) deixou de permitir acumular essa pensão de aposentação com qualquer prestação de serviço público, mesmo o ensino, resta a opção de enveredar pelo setor privado, a quem tiver possibilidade de o fazer. Para quem acha que aprendeu, no decurso de uma longa vida profissional, algo que ainda pode ser útil a quem o reconheça como tal, e tendo a faculdade de não sofrer, além do mais, da menor incompatibilidade, julgo que esse é um caminho mais do que legítimo.     

Discursos

Por aqui, os jornais trazem, nos últimos dias, citações de frases que, no passado, foram pronunciadas, por responsáveis políticos franceses, por ocasião de encontros franco-argelinos. São expressões que, no respetivo contexto histórico, pretenderam ter um significado próprio, por assinalarem uma linha política que era desejado destacar. E, de facto, juntar hoje essas citações ajuda a perceber melhor o esforço que, em cada época, foi feito para tentar melhorar as relações da França com a sua ex-colónia magrebina.

A profissão ensina-nos, contudo, a ter alguma prudência quando observamos o débito de um discurso político. É importante que se saiba que, a um certo nível elevado de responsabilidades, raro é o político que escreve os seus próprios discursos - ou porque não tem tempo ou porque não tem jeito ou por qualquer outra razão. A maioria dessas prestações públicas ou são colagens de contribuições diversas ou assentam no trabalho de um "ghost writer" ou, o que é mais comum, resultam da combinação de ambas as coisas. É claro que também há alguns raros políticos que, perante um projeto que lhes é apresentado, "trabalham" os textos, os reescrevem, em especial para certas ocasiões tidas por importantes. Mas já fui testemunha de figuras políticas a pronunciarem, sem alterarem uma vírgula, discursos preparados por outros. Algumas vezes sem sequer se darem ao trabalho de os lerem antes...

Não é este o caso dos "grandes" discursos, claro. Mas, mesmo nestes, no tocante às "grandes frases" que se pretendem deixar para a História, eu recomendaria a quem as ouve que relativize sempre a genuinidade da sua real paternidade. Porquê? Porque a história política prova que grande parte das citações que fixaram um lugar no imaginário público foram, de facto, escritas por outra pessoa que não o político que as pronunciou, isto é, são obra de um "ghost writer" ou, como se diz em francês, de um "nègre", às vezes possuidor de uma escrita genial, que ajuda muito um político a brilhar.

Mas a vida política também prova que não é possível fazer uma boa carreira apenas "às costas" dos discursos dos outros e que, por essa razão, os verdadeiros grandes políticos são aqueles a quem a História fez merecer as belas frases que alguém lhes colocou na boca.        

quarta-feira, dezembro 19, 2012

A diplomacia de Salazar

"A diplomacia de Salazar (1932-1949)" é um excelente trabalho de investigação feito pelo meu colega Bernardo Futscher Pereira, recentemente editado pela Dom Quixote.

O livro é redigido num estilo fluente e de muito agradável leitura, sem recurso a academismos pesados ou a um "oficialês" em que muitos de nós, diplomatas, por vezes incorremos. Quase diria que estamos perante uma escrita tributária de uma boa escola jornalística, fruto da passagem do autor por essa área, quando, de Nova Iorque, escrevia para o há muito desaparecido "O Jornal", ao tempo que o seu pai - um dos mais brilhantes nomes da nossa diplomacia - representou Portugal junto das Nações Unidas.

Este trabalho ajuda-nos a entender melhor o processo decisório de Salazar, no seio da tormenta política internacional dos anos 30 e 40 do século passado, ao tempo em que tinha como rede de trabalho um conjunto de excelentes profissionais da diplomacia, uns "de carreira" outros de origem política, que serviam a estratégia de um país que então procurava furar por entre as pingas dos conflitos europeus, da Guerra Civil de Espanha à Segunda Guerra mundial. Mas, mais do que isso, este é um livro que nos revela, de forma viva e fundamentada, as tensões dentro do regime, os seus conflitos de personalidades e de vaidades, num tempo ainda de maturação da ditadura.

Para quem se interessa pela prática diplomática, não deixa de ser interessante apreciar a condução do jogo tático a que o ditador se dedicava, na sua quase solidão de S. Bento. A gestão política dos regimes autoritários tem a "vantagem" de não ter necessidade de viver sob o "peso" do escrutínio democrático, de poder ter à mão arbitrária a polícia política e a repressão, como instrumentos que pode utilizar, de certo modo a seu bel-prazer. Salazar orientava o país no plano externo, notoriamente preocupado em preservá-lo dos efeitos dos conflitos, mas igualmente cuidando em salvar o seu regime dos "riscos" de uma contaminação democrática que podia colocar em causa o seu próprio poder.

Não faço parte de quantos, nomeadamente nos corredores das Necessidades, sempre santificaram a habilidade do ditador, embora, como profissional, não deixe de apreciar o desenho tático da sua estratégia diplomática. Talvez isso aconteça porque herdei histórias de quem ouviu os fusilamentos matinais dos "rojos" espanhóis nos muros de Tui, devolvidos pela polícia portuguesa às forças franquistas, ou porque conheço o suficiente da tragédia pessoal de Aristides de Souza Mendes, sacrificado ao cinismo da realpolitik, a qual, pelos vistos, se sobrepunha à ética de um país que se pretendia dirigido pela moral cristã. 

Como técnico da diplomacia, é-me muito interessante analisar os expedientes a que Salazar recorreu para fugir aos conflitos peninsular e mundial, mas, nem por um segundo, deixo de pensar que isso foi feito tendo como pano de fundo, por décadas, um regime sinistro. A diplomacia não é uma prática neutral, não está desligada dos princípios em que se apoia, e, em especial, não pode constituir-se numa mera lógica de fins.

terça-feira, dezembro 18, 2012

Do Golfo à Turquia

Nestes tempos em que a pressão das questões internas (com a Europa comunitária tida como tal) aparece quase como obsessiva na nossa agenda política, é muito importante, e prova da maturidade das nossas relações externas, que Portugal continue a assumir a sua vocação internacional e a afirmar-se, em vários outros espaços, como um parceiro fiável e coerente. Por isso, é relevante a atual presença do ministro dos Negócios estrangeiros no Golfo, tal como é de destacar a deslocação que o primeiro-ministro hoje fará à Turquia. Portugal tem de continuar a apostar na crescente abertura da sua economia a novos espaços e novos mercados. Mas, para que isso frutifique, a política é indispensável. Estas duas deslocações configuram a desejável continuidade com uma linha diplomática que vem de há muito e que importa prosseguir.

A região do Golfo, com o petróleo e o gaz que lhe alimentam as ambições, é vista pelo mundo como uma "mina" onde todos procuram o novo ouro. O Golfo - os "golfos", porque cada país da área é um caso e só uma grande ingenuidade poderia aconselhar a tratá-los da mesma forma - é uma zona geopolítica onde, por detrás das torres do progresso, espreitam inquietações regionais, algumas variadas tensões internas latentes e a comum preocupação com o futuro. Ainda há dias tive oportunidade de testar no Oman, com interlocutores locais, mas também com amigos do Qatar, dos Emirados e do Bahrein, o modo como o nosso país é "lido" na região, a simpatia histórica de que disfrutamos, a confiança que em nós depositam, talvez pela nossa dimensão e seguramente pelo apreço que lhes merece a nossa atitude. Claro que podemos e devemos explorar economicamente esta realidade, e ninguém levará a mal que o façamos, mas não é menos importante, para Estados que vivem num contexto regional muito particular, que saibamos dar notas claras e inequívocas do modo como somos fiéis aos nossos compromissos para com eles, nas arenas internacionais onde nos movemos, no tocante aos seus interesses e aos cenários que mobilizam as suas preocupações. Isso é válido para a questão do Irão, como o é para o caso sírio e, naturalmente, na atitude quanto à Palestina*.

O caso turco tem uma dimensão diferente, mas nem por isso deixa de ser menos relevante. Desde há vários anos, Portugal tem tido para com a Turquia um comportamento político de uma coerência exemplar, em especial nos quadros da União Europeia e da NATO. O nosso país cedo compreendeu e disse alto que era essencial para a Europa conseguir estabelecer com Ancara uma sólida relação de confiança, não hesitando em deixar públicas mensagens de apoio à sua aproximação às instituições europeias, mesmo quando, a partir de certa altura, essa linha de abordagem entrou em contra-ciclo com a atitude de outros parceiros, como é o caso do país onde estou acreditado. No caso da NATO, Portugal não esqueceu nunca que a Turquia funcionou como a linha da frente das tensões com o mundo soviético, tendo sido, por décadas, um fiel aliado ocidental, pelo que as suas mais recentes crises de segurança, como foi o caso do Irão e agora da Síria, não nos podem ser indiferentes. Ancara é hoje um país emergente da maior importância, um parceiro indispensável numa vital zona de confluência de poderes e temos que perceber que uma errada atitude europeia face à Turquia poderia, inclusivamente, ter consequências detrimentais para quantos, dentro do país, pugnam pela prevalência de valores que nos são caros. Basta olhar para um mapa para se perceber a cegueira que significaria o alheamento europeu face à evolução deste país. E Portugal tem dado provas de que percebe muito bem isto (leia-se aqui).

Por isso, nestes tempos de "Europa, Europa, Europa", é bom que a política externa portuguesa saiba olhar para além da espuma do euro.  

* Alguns amigos árabes perguntaram-me, nas últimas semanas, se não havia uma contradição pelo facto de, recentemente, termos votado a favor do novo estatuto da Palestina na ONU quando, há uns meses, o país se havia abstido em idêntico voto no seio da UNESCO. Expliquei que entendia que a posição do governo português fora assumida sob a seguinte racionalidade: a sede para o "upgrading" do estatuto da Palestina eram as Nações Unidas, pelo que era aí que uma primeira decisão deveria ser assumida. Quando ela finalmente teve lugar, Portugal votou a favor, como seria expectável, à luz do nosso tradicional posicionamento na questão. Nessa assumida lógica, a decisão de antecipar, num órgão subsidiário do sistema onusino como é a UNESCO, a elevação do estatuto internacional da Palestina terá parecido, aos olhos do governo português, uma inversão da hierarquia natural das coisas. Contudo, convirá notar que, mesmo nessa votação na UNESCO, Portugal não se opôs à proposta apresentada e que acabou por ser aprovada, tendo apenas optado pela abstenção.

segunda-feira, dezembro 17, 2012

Paulo Castilho e o francês

Paulo Castilho é diplomata, além de um amigo pessoal. Mas é, para além disso, um excelente escritor. Já aqui falei do seu último romance, "Domínio Público", que há semanas recebeu o Prémio Fernando Namora.

Ontem, chegou-me o último JL onde Paulo Castilho assina o "Diário" da quinzena. Noto o que ele ali escreve sobre a língua francesa em Portugal:

"É uma pena que atualmente em Portugal se despreze o francês e já quase ninguém o fale ou leia. Foi e é a língua de uma grande cultura, ainda hoje com um movimento editorial de um enorme vigor, em muitas áreas superior ao inglês. Agora corremos atrás da língua inglesa e de tudo o que tenha um ar de Inglaterra ou de América sem nos darmos conta de quanto nos encontramos longe da mente anglo-saxónica. Não os compreendemos plenamente e eles não nos compreendem a nós e, na verdade, tendem a tratar-nos com alguma condescendência. Os franceses não são certamente perfeitos, mas são mais 'a nossa gente' ".

100% de acordo, Paulo*.

(Curiosamente, ao olhar para o currículo diplomático de Paulo Castilho, verifica-se que esteve quase sempre colocado em paises anglo-saxónicos (EUA, Reino Unido, Irlanda) ou onde o inglês é usual (Suécia), apenas com uma estada num país de língua francesa, quando serviu junto do Conselho da Europa, em Estrasburgo. O que escreveu torna-se assim mais significativo).

Soberania

Onde se devia cortar, dentro da despesa pública?, perguntou "O Sol" ao antigo governante Nuno Morais Sarmento. Eis parte da resposta:

"Nas funções de soberania, a rede diplomática é ainda hoje a de um país com ambições imperiais ou de potência regional. Manifestamente não é esse o tempo que vivemos".

Tomei boa nota.

Médicos

"Portugal está a caminho de ter médicos a mais", afirma, corporativamente alarmado, o senhor bastonário da Ordem dos Médicos.

Ótimo!, devem dizer os portugueses. Com médicos a mais, pelas leis do mercado, espera-se o surgimento de mais profissionais da medicina espalhados pelos locais remotos do país, para atendimento das populações deles mais carenciadas, tabelas salariais mais razoáveis para as contratações de acesso ao setor público, e, claro!, a baixa drástica do preço das consultas no privado.

Se nada disso acontecer, porque será? Ou também foi já revogada a lei da oferta e da procura?

domingo, dezembro 16, 2012

Uma América

É uma ingenuidade pensar que uma tragédia como a que agora ocorreu nos Estados Unidos pode desencadear uma onda eficaz para a limitação do acesso às armas de fogo naquele país. E que, se acaso fosse possível (e não é), isso resolveria alguma coisa de essencial.

Os europeus têm de entender, de uma vez por todas, que a América não é uma espécie de Europa apenas um pouco "diferente". Os Estados Unidos são um país com uma matriz fundacional própria, o que lhes induz uma cultura mental e comportamental de uma outra natureza, com uma leitura da liberdade individual muito diversa da que prevalece deste lado do Atlântico.

A América é um mundo à parte, ou melhor, são muitos mundos à parte, alguns que rejeitamos profundamente, outros que muito nos seduzem. A América que persiste na pena de morte é a mesma América que elegeu um presidente negro, num país onde, até há escassas décadas, a segregação racial era lei. E, por muito que a América nos faça partilhar os custos de alguns dos erros estratégicos que pratica pelo mundo, essa é a mesma América que, nas praias da Normandia, morreu pela liberdade da Europa - a qual, claro, era também do seu interesse.  

Apesar de tudo, quando nós, europeus, olhamos em volta, somos obrigados a convir que a América continua a ser o melhor aliado que temos para a defesa de alguns - mas não de todos - dos valores que assumimos por essenciais. Embora isso não obste, claro, a que cada um de nós, no velho continente, acabe por ter o seu diferente "amigo americano".

Obélix, le belge

A gastronomia belga vai ter de dedicar-se mais ao javali para alimentar o novo patriotismo de Gérard Dépardieu.

Com a continuação desta desigualdade nos sistemas fiscais, a Europa não vai longe.

O "momento zero"

Há dias, jantávamos com um amigo do Porto, que a Paris aporta com alguma regularidade, até porque foi por aqui que estudou e ainda tem poiso. O local era, tal como o filme, "um americano em Paris", um restaurante cujo nome não vem para o caso, bastante movimentado, ruidoso e animado, ali para os lados do Beaubourg (a foto é de lá). 

A refeição já ia avançada quando decidimos mudar de vinho, cansados da opção por um tinto do "novo mundo" que nos tinham impingido. Olhámos em volta, tentando "to catch the eye" de um dos fâmulos que, minutos antes, giravam pela sala. Qual quê! Ninguém aparecia!

Foi então que esse meu amigo, se saiu com a exclamação: "Estamos no 'momento zero'!". Olhámos para ele, perplexos, desconhecedores do significado do comentário. Esclareceu-nos: "Desde há muitos anos que me convenci que, em todos os restaurantes, há, a certa altura, um 'momento zero'. Trata-se de um vazio momentâneo, que chega a durar minutos, durante o qual os empregados se somem, talvez para fumar um cigarro ou para outras pausas mais básicas, em que o patrão se recolhe por instantes ao escritório, em que o pessoal do balcão, por qualquer razão misteriosa, se eclipsa. Não há ninguém na sala! Ou, se acaso resta alguém, estão recolhidos em espaços inacessíveis, sempre de costas voltadas ou, mesmo se de frente, assumem um olhar vítrio e distante, neutralizados por um cansaço que os torna inoperacionais. É um 'momento' que normalmente acontece quando a refeição já vai adiantada, sem um novo turno de clientes no horizonte, em que se caminha para as derradeiras sobremesas. Ah! Então na altura dos cafés, é uma tragédia, é quando geralmente acontecem os grandes 'momentos zero'!".

O tempo que esse amigo demorou a explicar-nos a teoria do "momento zero", que já testou pelos mundos que visitou - o "momento zero" é transversal a todas as civilizações gastronómicas, note-se -  e que afirmou com a sabedoria de quem vive em frente ao palácio de Cristal, acabou por ser suficiente para que um empregado surgisse, finalmente, ao fundo e, face ao agitar sedento dos nossos braços, nos trouxesse um "pichet" de aceitável "rosso" italiano, para substituir o australiano quer eu caíra na asneira de escolher no início. O "momento zero" acabara.

Fiquei a pensar no assunto. E lembrei-me de uma história de um "momento zero" que me aconteceu um dia: estávamos num restaurante, durante largos minutos ninguém aparecia para dar sequência ao serviço e, em desespero de causa, tive então a ideia de ligar pelo telemóvel ... para o próprio restaurante. Atendeu-me uma voz, a quem eu perguntei: "Podia, por favor, mandar alguém atender a mesa junto à janela?". Vieram que nem setas...

sábado, dezembro 15, 2012

Um tema polémico

O debate sobre o casamento e a adoção homossexual está a agitar a França*. Para nós, portugueses, é, de certo modo, um "déjà vu". Em Portugal, a questão foi ultrapassada, embora se saiba que há importantes setores da nossa sociedade que nunca se reconciliaram com as soluções encontradas. Em ambos os países, o fator religioso tem um natural papel decisivo na formatação das atitudes. Mas cada vez mais me convenço que não é o fator mais condicionante.

Ontem, uma pessoa francesa amiga, com quem falava sobre o assunto, dizia-me: "Eu posso aceitar o princípio do casamento homossexual, embora não entenda bem a sua necessidade, dado que existe já a "união de facto" a proteger legalmente essa vida em comum. Mas não posso aceitar a possibilidade de adoção de crianças por homossexuais". Tenho visto esta atitude assumida por imensa gente, tanto em França como em Portugal.

A rejeição da adoção de crianças por homossexuais masculinos (o problema coloca-se menos na homossexualidade feminina, se pensarem bem) parece-me ter subjacente uma questão de que ninguém fala mas que, estou cada vez mais convicto, constitui a grande motivação por detrás da atitude: os riscos da pedofilia. Porquê? Porque, lá no fundo, mesmo muitos dos que acabam por "compreender" a homossexualidade não deixam de a associar a uma certa "anormalidade", pelo olham para os homossexuais como pessoas pouco "fiáveis", as quais, tendo incorrido nessa "perversão", podem, com facilidade, ser tentadas a outras. Essas pessoas não consideram que os riscos de pedofilia sejam equivalentes no caso de um casal heterossexual, precisamente porque consideram "normais" as pessoas nele envolvidas.  

À luz do debate francês, tenho pensado alguma coisa sobre este tema, o qual, no passado, nunca me interessou muito. E, mesmo que isso possa chocar alguns espíritos, cheguei à conclusão de que a rejeição da adoção de crianças por homossexuais não deixa de representar, de certo modo, uma forma subliminar de homofobia. Mas reconheço que este será, por muitos anos, um debate complexo.

*na imagem, a capa do "Libération" de hoje, que me chegou já depois de ter escrito este post

quinta-feira, dezembro 13, 2012

Património

Desde fevereiro deste ano, tem-me cabido dirigir a missão portuguesa junto da Unesco, em acumulação com a embaixada portuguesa em Paris. Só o consegui fazer graças ao esforço denodado da pequeníssima mas bem mobilizada equipa que permanece na nossa delegação, a qual se desdobra para poder acorrer à imensa diversidade de atividades que têm lugar no seio da organização.

Mesmo com esses limitados meios existentes, julgo que temos conseguido "dar conta do recado" e, muito em especial, que temos estado bem atentos a todas as questões que se prendem com a defesa dos interesses portugueses. Sendo a UNESCO uma organização em que a África é a principal prioridade e onde a promoção internacional da língua portuguesa encontra um espaço privilegiado de afirmação, a diplomacia portuguesa não pode, naturalmente, "deixar cair" a UNESCO.

Por esse motivo, porque a nossa visibilidade na organização é essencial para a nossa política externa, as autoridades portuguesas aceitaram a proposta que formulei no sentido de apresentarmos a nossa candidatura à mais prestigiosa instância da UNESCO, o "Comité do Património Mundial" - o grupo de 21 países que decide da classificação dos bens aos quais a UNESCO atribui um estatuto mundialmente reconhecido, acompanhando posteriormente a respetiva preservação e o cumprimento das regras para tal estabelecidas. Desde há vários anos, Portugal tem diversos bens que já mereceram o estatuto de "património mundial" e integram a respetiva lista. Nesse âmbito, aliás, o nosso país dispõe, de há muito, de uma experiência da maior valia, que é mundialmente reconhecida. Colocá-la ao serviço da UNESCO será, assim, um importante fator de prestígio para o nosso país. A decisão sobre a nossa candidatura, um "combate" complicado onde teremos de defrontar adversários de peso, será tomada pelos Estados membros da UNESCO na segunda metade de 2013. 

Já não estarei em Paris para acompanhar o essencial desse esforço promocional, mas ele ficará em excelentes mãos: as do meu sucessor, em França e na UNESCO, o embaixador José Filipe Moraes Cabral, que foi um dos principais - senão mesmo o principal - responsáveis pela eleição de Portugal para o Conselho de Segurança da ONU, onde depois, durante dois anos, representou Portugal. Lá de Lisboa, como dizem os brasileiros, estarei "a torcer" para que essa nossa nova candidatura possa ter sucesso.

OSCE - Dez anos depois

Foi exatamente há dez anos. Portugal teve durante 2002, a presidência da OSCE - Organização para a Segurança e Cooperação na Europa.

A OSCE é um produto da "détente" entre o Leste e o Oeste, que emergiu nos anos 70. Coube-lhe a importante missão de gerir um processo de redução de tensões criadas durante a "guerra fria", dando corpo organizativo a um processo de diálogo Leste-Oeste iniciado em 1975. A organização foi tão longe quanto era possível na compatibilização de ambições políticas manifestamente contraditórias, de que os Estados Unidos e a Rússia eram os polos extremos, com alguns escassos Estados da União Europeia a procurarem mostrar-se relevantes num terreno geopolítico que, afinal, acabava por ser essencialmente o deles.

Portugal, que organizara em 1996, em Lisboa, uma das mais bem sucedidas cimeiras da história da OSCE, tinha conquistado o direito a exercer a presidência da organização, durante todo o ano de 2002. Era um tempo que acabou por se revelar decisivo, porquanto o 11 de setembro ocorrera no ano imediatamente anterior e a temática do combate terrorismo estava na agenda internacional obrigatória.

O governo português de então, recém-nomeado depois de um sufrágio ocorrido no início do ano, tomou a decisão de mudar a titularidade da equipa diplomática que, em Viena, conduzia a presidência portuguesa da OSCE. Com esse pretexto, afastou-me da chefia da missão junto das Nações Unidas em Nova Iorque, onde eu estava colocado há cerca de um ano, e determinou que eu fosse dirigir o período final da nossa presidência da OSCE, em Viena. Recordo-me de uma conferência que fiz, no dia em que foi conhecida essa decisão, num seminário internacional em Cascais, à qual dei o título de: "Terrorismo - da ONU para a OSCE". Alguns, numa estranha leitura, interpretaram o título dessa minha prestação muito para além daquilo que ele, naturalmente, pretendia significar: a deslocação do tratamento daquela temática da ONU para uma organização de natureza regional como era a OSCE. Há gente muito desconfiada...

A finalização de qualquer presidência da OSCE tem sempre como objetivo procurar assegurar compromissos sobre um grupo importante e muito diversificado de documentos, que possam consagrar linhas de orientação política futura para a organização. Porque todas as decisões deviam, desejavelmente, ser tomadas por unanimidade dos (então) 55 Estados membros, o esforço no sentido de equilibrar as concessões mútuas, sem baixar o nível de densidade dos texto, revelou-se extraordinariamente difícil. Basta lembrar que, no seio da OSCE, havia, como hoje ainda há, países que mantêm entre si tensões político-militares muito agudas. O trabalho de uma presidência é, assim, conseguir ganhar a confiança de todas as partes, mostrar-se um "honest broker" e ter a capacidade de avançar propostas que acomodem os interesses de todos. Uma tarefa nada fácil, diga-se.

A reunião final da presidência portuguesa teve lugar no Porto, no edifício da Alfândega, em dezembro de 2002. Por aí me competiu, por muitas e longas horas, presidir ao Conselho permanente da organização, onde fui tentando concluir uma imensidão de textos, o que incluía frequentes suspensões de sessão para "confessionários", isto é, encontros individualizados com partes em conflito ou divergência, conversas feitas sob compromisso de não poderem ser reveladas às outras partes...

(Porque a vida internacional também tem de comportar aspetos lúdicos, eu havia decidido "apresentar" o Porto às cerca de 700 pessoas que a reunião congregava. Para tal, escrevi e a OSCE publicou, ainda em Viena, um livrinho onde dava algumas dicas para visitas à cidade e, essencialmente, apresentava uma lista comentada por mim de 27 restaurantes do Porto e arredores, misturando diversos tipos de oferta gastronómica. Porque nas organizações internacionais alguns documentos de reflexão são designados "food for thought", lembrei-me de inverter os termos e dar ao guia o título de "Thoughts for food"... Foi um êxito! Ainda recordo a perplexidade do motorista que me acompanhava: "Ontem, um delegado ucraniano, pediu a um colega meu para o levar ao "Veleiros", em Perafita. Como é que é ele terá sabido da existência do restaurante?")

A uma década de distância, recordo um episódio que julgo muito significativo. No âmbito de um determinado documento em discussão, havia uma expressão, designada como um dos fatores negativos que a OSCE deveria condenar, por ser potenciadora de tensões e quiçá promotora de terrorismo. Era uma proposta que, desde o início, um país como o Azerbaijão considerava indispensável.

(Para um leigo nas coisas internacionais, pode parecer que este jogo com palavras é apenas um preciosismo formal, irrelevante e sem consequências. Não é assim: quando, num documento internacional, algo fica acordado por unanimidade, esse conceito e o seu enquadramento normativo convertem-se em doutrina obrigatória, sendo represtinado noutras decisões futuras, passando a referencial orientador da organização, a menos que um outro consenso alternativo, a obter também por unanimidade, o venha entretanto a substituir).

Sem surpresas, a delegação da Arménia opunha-se, desde o início, à inclusão da fórmula. Sendo a Arménia o grande defensor da secessão da região do Nagorno-Karabash, ocupada por populações arménias depois de um conflito sangrento, um território que continua a ser reivindicado pelo Azerbaijão como seu, temia que a inclusão no texto desse conceito, que não importa aqui desenvolver, pudesse vir a ser utilizado para desequilibrar o futuro tratamento deste "frozen conflict" na ordem internacional.

Quer a Arménia quer o Azerbaijão tinham os seus apoiantes entre os restantes Estados da OSCE, embora eles fossem já escassos, tanto mais que já existe um evidente cansaço na comunidade internacional sobre este assunto. Para a nossa presidência, o importante era conseguir "fechar" o documento, com ou sem a inclusão do tal conceito, que considerávamos pouco significativo, por várias razões.

A estratégia delineada foi começar por tentar perceber que outros interesses particulares, em matérias abordadas nas restantes conclusões, tinham os principais Estados que apoiavam a Arménia e o Azerbaijão. Identificados estes, procurámos acomodá-los, desde que obtida, por um "gentlemen's agreement", a contrapartida de que deixariam de dar apoio, em intervenções em sessão, às posições arménia e azeri.

Garantido assim o conveniente isolamento dos dois países, passou-se à segunda fase: convencer estes individualmente. Como? Obrigando os arménios a aceitar a inclusão da expressão mas, noutra parte do texto, inserindo uma outra formulação mais leve, ligeiramente "compensatória" e favorável aos seus interesses. Aos azeris foi dito que poderiam obter, na declaração final, a inclusão da expressão, mas que, em contrapartida, deveriam acordar com a tal frase "compensatória", a qual, contudo, não lhes agradava, por poder agradar aos arménios...

O meu colega azeri, Vaqif Sadikhov, cometeu o erro de, desde o início, assumir que a Arménia nunca aceitaria que o tal conceito integrasse o texto. Para essa convicção, diga-se, não fui de todo estranho, em várias conversas que com ele tive. Por isso, embora se mostrasse relutante a aceitar a frase "compensatória", nunca fechou, em absoluto, a porta a um compromisso, embora manifestamente convicto de que ele nunca se faria, por relutância do adversário.

Pela Arménia, Jivan Tabibian, o embaixador que era representante permanente do seu país junto da OSCE, dizia-me que tinha estritas ordens de Yerevan para recusar a inclusão da expressão, mas, mas últimas horas de negociação, notei que se sentia fragilizado pelo estranho afastamento público de um seu tradicional aliado, nos momentos em que o tema era discutido. Mal ele sabia que havíamos "comprado" o silêncio desse aliado noutro dossiê e que a Arménia estava agora sozinha em jogo. Por isso, fui-o vendo cada vez mais sensível à aceitação das diferentes formulações compensatórias que lhe fui apresentando. Mas foi só cerca da meia noite que, já com o respetivo ministro dos Negócios Estrangeiros ao nosso lado, acordámos numa fórmula final que iriam submeter à sua capital - com necessidade de ser validada pelo próprio presidente da República! E, às seis da manhã (a diferença horária ajudava), Tabibian ligou para o meu quarto, no Pestana da ribeira portuense, a confirmar-me a aceitação do nosso compromisso.

O dia começava bem. Restava agora convencer o Azerbaijão. O essencial do que pretendiam estava obtido, pelo que o importante era que não objetassem à tal fórmula "compensatória". Porque era decisivo garantir uma forte pressão sobre eles, pedi a Elisabeth Jones, "assistant secretary of State for European and Asian affairs", que chefiava a delegação dos Estados Unidos, para me acompanhar na "démarche". E assim aconteceu. Mas iríamos ter uma surpresa.

Sentados em frente a Vaqif Sadikhov, expliquei que tínhamos obtido da Arménia a concessão que queriam e que esperávamos - expliquei que falava também em nome da União Europeia, com os EUA 100% de acordo - que o Azerbaijão acedesse então a aceitar a fórmula "compensatória". Sadikhov olhou-me, perplexo: "Mas a Arménia aceita mesmo a inclusão da frase?" Confirmei que sim. A resposta dele desarmou-me: "Bom, então se eles aceitam, o compromisso não nos interessa. Fiquemos então com o texto original, sem nenhuma fórmula". Tínhamos andado mais de 48 horas a negociar para nada...   

Há semanas, no hall de um hotel em Baku, no Azerbaijão, caí nos braços de Vaqif Sadikhov, agora embaixador do seu país em Roma. Apesar de, nesses dias do Porto, termos mantido grandes discussões, havíamos ficado amigos. E lembrámos o seu antagonista Jivan Tabibian, um homem encantador, infelizmente desaparecido, já há uns anos. Na vida internacional, é importante, sempre que possível, garantir um espaço autónomo para as relações pessoais, ao lado das tarefas oficiais que nos incumbem, por mais desagradáveis que estas possam ser.

Uma nota final sobre essa reunião do Porto, em dezembro de 2002. Foi a última, na história da OSCE, onde foi possível garantir conclusões aprovadas pela unanimidade dos Estados membros da organização. A partir daí, nunca mais nunhuma presidência anual da OSCE conseguiu garantir conclusões consensuais, o que, naturalmente, muito enfraquece a capacidade de afirmação da organização. Por esse exercício de 2002, cujo inegável êxito ficou a dever-se a uma dedicadíssima equipa que tive o gosto de chefiar em Viena, Portugal ganhou um lugar na memória da OSCE, como frequentemente tenho visto ressaltado por muitos interlocutores. Quem eventualmente estiver interessado em saber um pouco mais sobre isto pode ler aqui.

Entrevista à revista "Must"

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