Os tempos hoje serão outros, mas sou do tempo em que o exercício discricionário da hierarquia permitia a certas chefias assumirem atitudes de forte autoritarismo. A certeza de que a opinião dos dirigentes dos serviços era uma incontornável chave para promoções ou colocações colocava os respetivos subordinados numa dependência quase humilhante.
A memória da carreira diplomática portuguesa, aliás como de qualquer outra, está cheia de historietas de autoritários chefes. Famoso, entre nós, era um embaixador que sempre obrigava o respetivo secretário, numa capital do Médio Oriente (em que, curiosamente, já não temos embaixada), a ficar de pé, ao lado da sua mesa de trabalho, enquanto despachava a papelada do dia, às vezes por mais de uma hora. Há quem diga que o secretário deverá a essa penitência algum distúrbio psicológico que veio a revelar.
Estas patéticas expressões de autoritarismo não se ficavam pelos postos no estrangeiro, também se praticavam em Lisboa. Num verão do final dos anos 70, durante as férias de um subdiretor-geral (na altura, a designação oficial no MNE era "adjunto do diretor geral") da área económica, o lugar foi interinamente preenchido por um diplomata mais velho que, por uma qualquer razão, transitava pelas Necessidades, desde há alguns meses, sem ocupação fixa.
Aquele nosso chefe interino compensava a sua manifesta irrelevância profissional, que o mantinha oficialmente sem destino, com uma soberba de atitude de onde destilava uma importância que só ele se atribuía. Além do mais, a sua postura contrastava vivamente com o colega que estava a substituir - um homem cordial, muito apreciado pelos colaboradores.
Logo no segundo dia da presença desse episódico chefe, fui ao seu gabinete, para lhe entregar um documento. Mal levantou os olhos à minha chegada, apenas grunhindo um relutante "bom-dia" à saudação que lhe dirigi. Notei, então, que tinha desaparecido a cadeira que sempre estivera em frente à secretária. Decididamente, o homem era dos que queria ter as pessoas de pé, durante o despacho.
Passei a "boa nova" a quem comigo assegurava a permanência na Direção-geral dos Negócios Económicos, nesse verão, que já se anunciava curioso. Ao contá-la a um colega um pouco mais antigo do que eu, figura alta e com voz tonitruante, notei-lhe um brilho irónico no olhar, acompanhado de um "logo veremos!".
Na tarde desse dia, o nosso grupo de jovens diplomatas das "Económicas", que regressava do tradicional almoço nas "Espanholas" (um restaurante vizinho, onde a densidade de pessoal diplomático costuma ser superior aos níveis recomendados pela OMS...), foi surpreendido por um desafio desse nosso colega: "Vocês não querem ver a minha ida a despacho?" Porquê? "Logo verão!", disse, críptico.
Um tanto artificialmente, colocámo-nos à conversa no "hall", para o qual dava o gabinete da chefia. Um minuto depois, o nosso colega emerge da sua sala de trabalho com uma pasta de papelada na mão, pisca-nos o olho e, decidido, entra no gabinete do nóvel chefe. Nem trinta segundos eram passados e já a porta se abria de novo, com o jovem diplomata a sair, sem papéis na mão, e a dizer alto, lá para o fundo do gabinete: "É um minuto, já volto!". E vimo-lo avançar decidido para a sua sala de trabalho.
Perplexos, interrogámo-nos sobre a cena. Ter-se-ia esquecido de alguma coisa? Algum papel? Mas, afinal, o que é que esta ida a despacho tinha de tão especial?
Tudo ficou mais claro, quando, instantes depois, o vemos regressar, a sorrir, com uma cadeira na mão, que introduziu no gabinete onde iria a despacho.
Não ouvimos, embora possamos presumir, a reação do chefe à entrada da cadeira. Mas ficou-nos para sempre no ouvido a voz muito forte do nosso colega, ainda a porta não estava totalmente fechada, a dizer: "Então não vê? É uma cadeira, para eu me sentar!".
Desde essa tarde, e pelo tempo que durou o interinato da chefia, passámos a poder contar com uma cadeira no gabinete desse esquecido chefe interino, onde sempre nos sentávamos para o despacho. Às vezes, para grandes males...