sábado, outubro 05, 2019

O cardeal


Nunca falei com Tolentino de Mendonça, e só esporadicamente fui leitor do que dele vi escrito por aí. Desse pouco que li, somado a boas opiniões a seu respeito que me têm chegado, resulta uma imagem muito positiva da figura daquele que é o novo cardeal português. 

Olhando as coisas de fora, sinto que a instituição religiosa a que ele pertence, cuja importância continua a ser muito significativa na sociedade portuguesa, sai prestigiada por esta escolha do papa.

Viva a República!


Calem-se ou pagam multa!


Hoje, dia "de reflexão", não se pode falar das eleições na comunicação social. Nem nas redes sociais, presumo. Um país que acreditasse na maturidade dos seus eleitores já teria posto termo a esta ridícula política de "faz-de-conta", que trata os portugueses como crianças.

O meu voto

(“Nunca digas em quem vais votar! O voto é secreto!”, dizia-me alguém um dia, equivocado com o sentido da frase. O voto ser “secreto” significa que ninguém deve ser obrigado a revelá-lo, mas não impede que o anunciemos, se assim quisermos fazer).

Votei sempre ao sabor do meus humores políticos. A liberdade e a independência são isso mesmo.

Votei na CDE durante a ditadura. Depois, nas primeiras eleições livres, em 1975, votei MES (uns gloriosos 1,02%), claro! Repeti o voto no MES em 1976 (“progredimos” para 0,57!). Podíamos ter ido longe, se tivéssemos continuado!

Nas presidenciais desse ano votei Otelo (sim, esse mesmo!), tal como fez Jorge Sampaio e muito boa gente, sabendo bem que não ia ganhar (teve 16,5%), mas para afirmar a minha distância face ao pré-bloco central que avançara com Eanes (em quem vim a votar, com toda a naturalidade, em 1980, menos por ser então a seu favor e, muito mais, por contra Soares Carneiro e a AD que eu detestava).

Em autárquicas, lembro-me de que cheguei a votar APU, porque, tendo vivido em Santo António dos Cavaleiros, agradou-me a gestão municipal de Severiano Falcão, em Loures.

Nas eleições legislativas e autárquicas seguintes, creio que sem exceção até hoje, depois dos “gestos” no MES em 75/76, sempre que votei, votei no PS, ou no seu bizarro e falhado heterónimo FRS. Mas, algumas vezes, nem sei bem porquê, abstive-me.

Em presidenciais, votei sucessivamente em Salgado Zenha (na segunda volta, em Mário Soares), em Mário Soares, duas vezes em Jorge Sampaio, de novo em Soares (estando Manuel Alegre na contenda), depois em Alegre e, finalmente, em Sampaio da Nóvoa.

Constato que nunca votei à direita, mas costumo dizer que, em presidenciais, poderia tê-lo feito se o candidato fosse Francisco Pinto Balsemão (e desde que não me agradasse o nome da esquerda) e não excluo poder vir a votar na reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa, se o seu comportamento e equidistância se mantiverem de um modo que continue a apreciar.

Esta minha “transparência” (que percebo não ser muito comum) serve de prólogo a uma banalidade: no domingo, vou votar PS. Vou votar, essencialmente, em António Costa, porque é alguém que demonstra ser, a grande distância, a pessoa mais bem preparada para dirigir o país.

Teve a arte de escolher Mário Centeno, soube fazer uma opção inteligente pelo respeito pelos compromissos internacionais do país, ganhou respeitabilidade na Europa e (contra a minha opinião, mas quem estava errado era eu) fez uma aliança parlamentar com a “esquerda da esquerda”, sabendo repor justiça e humanidade nas políticas públicas, depois de uns anos para esquecer.

O PS de António Costa (e sublinho ser “este” PS, e não, necessariamente, um outro qualquer) é, na minha perpetiva, o partido mais equilibrado do nosso espetro político, combinando um forte sentido social com uma visão moderna da sociedade. Tem defeitos? Imensos! Mas acho que tem muito menos do que os outros.

Por isso, embora pessoalmente não o subscrevendo, gostava que alguns amigos mais relutantes seguissem o lema de Alexandre O’Neill: “Ele não merece, mas eu voto PS”.

sexta-feira, outubro 04, 2019

Freitas do Amaral - a solidão política

Diogo Freitas do Amaral foi sempre muito enfático ao refutar a ideia de que o seu percurso político tivesse sido marcado por qualquer incoerência ou ziguezaguear ideológico. Na sua perspetiva, a realidade envolvente é que foi mudando, tendo ele permanecido rigorosamente no mesmo lugar, o que acabou por alterar, aos olhos exteriores, a sua posição relativa face a alguns dos principais atores políticos. Não é claro que as coisas tivessem sido exatamente assim, mas há alguma verdade nisso.

É que há algo que parece evidente: no plano estrito das ideias, há que convir que a evolução de Freitas de Amaral se fez sempre num quadro de razoabilidade e moderação, que eram a sua indiscutível imagem de marca. Mas, obviamente, creio que ele próprio sempre entendeu que ser visto num dia ao lado de Durão Barroso e no outro de José Sócrates não deixava de ser impressivo, e chocante, para o observador externo. E essa era talvez a razão porque sempre sentia necessidade de se justificar.

A presidência

Tenho para mim que Freitas do Amaral sempre considerou que o seu imenso capital de experiência política era mal aproveitado pelo país. Tendo chegado à soleira de Belém em 1986, para depois ser tratado de forma vil por uma família partidária próxima por quem dera a cara, Freitas terá considerado que a hipótese de um “remake” com sucesso não estava afastada por completo.

Posso estar errado, mas acho que Mário Soares foi sempre o grande “culpado” pelo alimentar desse sonho. Como nas grandes batalhas militares em que os generais opostos acabam por gerar a estranha afetividade dos contrários, Soares e Freitas conseguiram ultrapassar a ferocidade, até verbal, da contenda de 1986, vindo a estabelecer entre si uma espécie de “entente”, mais do que cordial, que, na minha perspetiva, tinha a fidelidade comum à ideia da bondade do projeto europeu como o cimento de união.

O sonho da Presidência da República, a meu ver, esteve presente em Freitas do Amaral até à sua entrada, como independente, como ministro dos Negócios Estrangeiros de José Sócrates. O seu regresso às Necessidades, onde estivera quase duas décadas antes, criava-lhe um estatuto que ele entendia poder ser um degrau potencial para proporcionar a hipótese do acesso a Belém. Freitas terá medido mal duas coisas: a desafetação que o setor conservador do país tinha criado em torno do seu nome, visto como alguém que se “mudara” para o campo contrário, e o escasso apelo que uma sua candidatura poderia suscitar à esquerda, que nem o apoio de Soares e Sócrates era capaz de ultrapassar.

O partido

Difícil e dolorosa foi a relação de Freitas do Amaral com o partido que criou em 1974. O CDS havia sido um ato de coragem cívica, ao permitir um espaço institucional de acolhimento de quantos se não reviam no tropismo socializante da Revolução. Do mesmo modo, havia sido corajosa, e coerente, a decisão de fazer o partido quebrar o unanimismo na aprovação da Constituição, em 1976. O CDS e Freitas do Amaral pagaram, com essa atitude, um preço pesado, em termos de estatuto no campo democrático.

Limitado, desde o início, pela lógica de proselitismo eleitoral no campo da direita (recordo que a semântica política era outra, à época), Freitas cedo percebeu que a capacidade de afirmação política do seu partido, em termos de governação, obrigava a delicados jogos de aliança. Se não tinha votos, o CDS tinha pessoas, era esse o seu património e era por aí que poderia consagrar-se. E Freitas fê-lo, exemplarmente, num acordo com Sá Carneiro.

A morte de Sá Carneiro e de Amaro da Costa, alter ego de Freitas, viria a decapitar um certo projeto da direita portuguesa, que a frustrada candidatura presidencial de Soares Carneiro potenciaria. Freitas afastar-se-ia mais tarde do CDS e o partido, nas suas diversas encarnações, passou a exorcizá-lo, através do endeusamento de Amaro da Costa, cuja memória passou a ser arremessada, com regularidade, contra a imagem de Freitas. A retirada do retrato do fundador do partido das paredes da sede, um ato de falsificação da História cometido no consulado de Paulo Portas, representa talvez o ponto mais baixo dessa “vendetta”, cuja ingratidão muito terá ferido Freitas do Amaral.

O Estado

Freitas nasce para o Estado com o 25 de Abril, ao ser convidado, sob o sobrolho cerrado de alguns, a integrar o Conselho de Estado. O seu estatuto académico, a imagem madura “avant la lettre” e uma certa “gravitas” concederam ao trintão Diogo Freitas do Amaral um estatuto que acabou por induzi-lo a criar um partido conservador democrático, explorando a necessidade que os militares sentiam de, feita a Revolução, construir o Estado, em moldes equilibrados que permitissem a aceitabilidade externa do regime.

O CDS de Freitas de Amaral não conseguiu, contudo, integrar qualquer dos governos provisórios, ao contrário do PPD (hoje PSD) e do PCP, bem como do partido heterónimo deste, o MDP-CDE. Só a vitória da direita, na viragem da década, levará Freitas e o CDS ao governo.

Freitas do Amaral mostrou, em todas as funções políticas que desempenhou, uma forte dedicação ao serviço público, um elevado sentido de Estado e uma qualidade de intervenção que nunca ninguém disputou com seriedade, para além das naturais divergências políticas. Refiro as duas passagens pela pasta dos Negócios Estrangeiros, de que fui testemunha próxima, mas igualmente no exercício do cargo de presidente da Assembleia Geral da ONU, um lugar que, não sendo executivo, tem uma delicadeza em termos de exercício que Freitas do Amaral soube interpretar com sabedoria, inteligência e uma forte cultura que era a sua, para prestígio de Portugal - afinal, o seu grande desiderato nos lugares por que passou.

O homem

Só bastante tarde, na minha vida, vim a conhecer pessoalmente Freitas do Amaral. Foi em 1999, em Nova Iorque, onde ambos tínhamos ido em trabalho. Depois de um jantar, pelas ruas, confessei-lhe que, nas presidenciais de 1986, eu chegara a temer que, a coberto da sua candidatura presidencial, “viesse por aí o fascismo”. Freitas do Amaral riu-se e disse esperar que eu tivesse ficado, entretanto, definitivamente convencido de que ele não era “um fascista”. Não era, disse-lhe que achava que ele era uma espécie de conservador inglês, nos tempos em que a maturidade já me permitia ter isso como um elogio. Nos dias de hoje, já nem sei...

Seria de novo em Nova Iorque, para onde eu entretanto fora viver, dois anos depois, que nos reencontraríamos. Alguns amigos políticos de Diogo Freitas do Amaral estavam furiosos com ele, por ter editado uma peça de teatro que foi lida como uma “deslealdade” face à memória de Marcelo Caetano. No almoço que lhe ofereci, revelou-me alguma mágoa com essas atitudes, que via como injustas.

Cruzámo-nos depois, uma ou outra vez, em Lisboa. Depois, em Brasília, em 2005, com ele já de novo como ministro, apreciei o modo assertivo como expunha a política externa do novo governo que integrava, numa atitude que mostrava, simultaneamente, um grande à-vontade no exercício do cargo mas também uma perspetiva muito nacional da função, diria mesmo que um pouco dissonante com o modelo “formatado” de diplomacia que prevalecia numa União Europeia, onde a máquina obedecia a uma linguagem cada vez mais comum. Fiquei curioso em ver o impacto futuro do estilo, mas Freitas do Amaral acabaria por ser obrigado, por razões de saúde, a abandonar o executivo.

Faz hoje precisamente uma semana, voltámos a coincidir, na mesma sala do serviço de um hospital, onde eu estava por uma coisa simples e onde ele tentava recuperar de um último esforço para superar a nova doença que agora lhe poria um ponto final na vida. Já não falámos.

(Texto escrito a convite da SAPO no respetivo site)

A solidão política


A “Sapo” pediu-me um texto sobre Diogo Feitas do Amaral, por ocasião da sua morte. Pode lê-lo aqui.

Portugal


Há pouco mais de uma semana, num debate com Rui Ramos do Círculo Eça de Queirós, procurei sublinhar o caráter atrativo do nosso país para o investimento estrangeiro. 

Aqui está um retrato jornalístico dessa realidade, que só não vê quem não quer.

quinta-feira, outubro 03, 2019

Freitas do Amaral


Em setembro de 1999, eu saía de um hotel, em Nova Iorque, onde participava numa Assembleia Geral da ONU, para ir jantar com membros da nossa delegação. Cruzei-me com Freitas do Amaral, que ali tinha ido para um encontro de antigos presidentes da Assembleia Geral. Constatando que ele não tinha jantar programado, convidei-o a juntar-se-nos. Foi uma bela ocasião, em que aproveitei para “puxar” pelas suas recordações dos tempos do pós-25 de abril. 

A noite estava ótima, à saída desse restaurante na Madison. Viemos a conversar os dois até ao hotel e tive então a coragem de dizer a Freitas do Amaral, pessoa com quem verdadeiramente nunca tinha tido uma conversa serena a dois (mais tarde, falaríamos mais longamente, em várias outras ocasiões), que ele me tinha “pregado o maior susto político da vida”.

Eu tinha chegado a Portugal em fins de 1985, vindo da nossa embaixada em Luanda, e fiz uma imersão rápida num país político que estava num confronto crispado, nas eleições presidenciais de então. O discurso da candidatura de Freitas de Amaral, com laivos revanchistas, assustou-me bastante. Por detrás dos chapéus de palhinha e dos "loden" verde-garrafa, que marcavam a imagem dessa campanha, eu via então escondido um Portugal contra o qual, pouco mais de uma década antes, me empenhara, política e militarmente, no 25 de abril. 

Algumas das caras que rodeavam Freitas do Amaral eram para mim sinistras, representavam muito daquilo que eu detestava na direita portuguesa e, claro, não me mereciam a menor confiança democrática. (Em alguns casos, estava errado, reconheço hoje). Por semanas, criei mesmo a exagerada sensação de que uma eventual chegada de Freitas a Belém poderia significar o início de um regresso ao fascismo. Por isso, a vitória final de Mário Soares (eu que até votara em Salgado Zenha, na primeira volta), acabou por ser um dos mais felizes momentos políticos da minha vida.

Nessa noite de Nova Iorque, achei que tinha o dever de contar isto a Freitas do Amaral, que sorriu e me disse: “Espero que, com o passar dos anos, tenha percebido que eu nunca fui um fascista". Ele tinha toda a razão. Com serenidade e com a distância do tempo, reconheço em Freitas do Amaral um conservador, um pouco ao estilo britânico, mas sempre e indiscutivelmente um democrata.

Para quantos, à esquerda, nunca dele gostaram, acho importante lembrar três coisas, que às gerações mais novas podem hoje parecer despiciendas. 

A primeira é que foi preciso uma grande coragem para criar o CDS, no início da Revolução, como um partido que deu acolhimento, institucional e democrático, a quantos não se sentiam confortáveis na onda maioritária saída do 25 de abril. E que tinham toda a legitimidade para assim pensarem.

A segunda é que Freitas do Amaral, para surpresa de muitos, foi uma das vozes que, no Conselho de Estado, em 1974, se recusou a conceder poderes de exceção ao general Spínola, que lhe permitiriam encetar uma deriva autoritária contra o 25 de abril. Não foi o único, mas o simbolismo da sua voz foi muito importante.

Finalmente, nunca ninguém pôde imputar a Freitas do Amaral qualquer promoção dos movimentos anti-democráticos de direita radical, que espalharam ódio e bombas pelo país, nesses tempos revolucionários. De certas figuras incensadas do regime, algumas até de esquerda, não se pode dizer o mesmo.

Quero com tudo isto reiterar que não tenho hoje a menor dúvida de que Freitas do Amaral foi sempre um democrata - porque é o respeito institucional pela democracia, e só esse, o único critério que o define. 

Foi, além disso, uma figura intelectual e académica de destaque, que, no cumprimento das muitas funções de Estado que lhe coube exercer ao longo destas décadas, o fez sempre com empenhamento e grande sentido de serviço público para Portugal, e isso não é menos importante.

O percurso cívico de Freitas do Amaral, as suas opções pessoais em termos de afinidades políticas conjunturais, pode ser objeto de todas as críticas e quiçá de acusações de alguma incoerência, não obstante ele tê-las sempre rejeitado. 

Mas, no dia de hoje, no dia da sua morte, não tenho a menor dúvida de que, na galeria dos fundadores do regime iniciado em 1974, o seu retrato tem de figurar.

“Fascismo nunca mais!”


O fascismo, que agora aí anda travestido de várias coisas, não morreu, como é óbvio, com o 25 de abril. Nos tempos seguintes à Revolução, houve momentos tensos em que, nas ruas, foi necessário fazer algumas “barricadas” políticas aos saudosistas do tempo da “outra senhora”. 

Quem me contou esta história não me soube identificar, com exatidão, um desses momentos que terá justificado que pessoas viessem para a rua manifestar a sua indignação por uma qualquer circunstância que, aparentemente, podia significar algum risco de regresso a esse vil passado.

Nessa ocasião, uma jovem anunciou em casa a sua ida a uma manifestação de protesto público. Disse à avó, uma senhora idosa, de uma geração social mais propensa a atitudes conservadoras, o que ia fazer e por que o fazia. Com alguma surpresa, constatou que a senhora partilhava em pleno da sua indignação e, mais do que isso, se dispunha mesmo a acompanhá-la à manifestação. E lá foram as duas.

Houve discursatas, como é da regra destas coisas. A jovem olhava para a avó, ficando satisfeita por vê-la pontuar com a cabeça a sua concordância com o sentido daquilo que, por ali, era defendido.

A certa altura, dos discursos passou-se às palavras de ordem. A senhora não alinhava no coro coletivo mas acabou por se destacar fortemente no seio da multidão. É que, logo que toda a gente acabava de gritar, em coro, “Fascismo nunca mais!”, a avó completava, sozinha mas em voz bem alta e audível, com um indignado “De todo!”

quarta-feira, outubro 02, 2019

Chirac e os seus pares


A morte de Jacques Chirac, e um sentimento de perda que, com ela, atravessou a França, suscita uma reflexão sobre a relação desta com os seus presidentes, desde o fim do regime parlamentar. 

Charles de Gaulle, um militar que havia sido herói político de uma guerra que a França perdeu, mas que ele teve artes de transformar em vencedora, viria mais tarde a ser o recurso de excelência de um país a que o processo descolonizador havia induzido graves tensões institucionais. O seu papel de “pai da pátria” trouxe consigo um carisma que nunca mais se repetiria.

Saído De Gaulle, a elite política e económica francesa sustentou-se nas rédeas do país por mais 12 anos, nos mandatos de Georges Pompidou e de Giscard d’Estaing. Ambos brilhantes, o primeiro um intelectual oriundo da banca, o segundo um financista de perfil orleanista, partilhavam, contudo, uma escassa ligação afetiva à França profunda. 

A esquerda conseguiu romper a hegemonia conservadora, elegendo um “vieux routier” político de perfil cínico e majestático. François Mitterrand pilotou muito bem a França no tempo complexo do fim da Guerra Fria, foi protagonista central dos novos equilíbrios europeus, adaptando-se bem a uma V República que antes tinha como inimigo jurado. Depois de De Gaulle, consagrar-se-ia como o grande presidente da França.

E surgiu Chirac. Nem muito brilhante nem muito intelectual, era imensamente francês na sua ligação ao “terroir” e aos seus agricultores. Enobreceu-se na reconciliação histórica com algum passado da França, foi a barreira da decência contra o pai Le Pen, esteve no sítio certo face aos americanos, isto é, ao seu lado depois do 11 de setembro e contra eles na agressão ao Iraque. Pelo caminho, envolveu-se em pecadilhos financeiros que parece fazerem parte do ADN político da França.

As subsequentes fragilidades dos mandatos de Nicolas Sarkozy e de François Hollande também justificam, para muitos, alguma saudade de Chirac. Sarkozy foi um “Nixon à francesa”, inteligente, mas com a ambição a gerir-lhe os princípios. Hollande foi apenas um “bom tipo”, um falhado herdeiro de Mitterrand, a que, na melhor das hipóteses, a História dará um pé-de-página piedoso.

A França parece apreciar ser representada por quem, ao mesmo tempo, goste genuína e quase chauvinisticamente dos franceses, lhes transpire orgulhosa e exageradamente as qualidades e, na medida do possível, os consiga fazer sentir menos culpados pelos seus defeitos. Chirac era exatamente isso. Não tenho a certeza de que Emmanuel Macron o seja.

terça-feira, outubro 01, 2019

Saída do cinema


Caricaturas da História


Durante a Guerra Fria, da cinematografia e da literatura de espionagem que nos chegava, o inimigo era facilmente identificável: os comunistas. Antes, os “maus da fita” tinham sido os nazis alemães, depois passaram a ser os “vermelhos”. O maniqueísmo facilita imenso a vida.

Os “bons” eram sempre os ocidentais, com os seus serviços secretos eficazes e inteligentes, leais às suas pátrias, corajosos, dispostos a sacrificarem-se pela liberdade global dos povos. Eram, em geral, ingleses e americanos, representados na pantalha por “beautiful people”. Os poucos que, do lado de cá, se colocavam ao serviço do outro lado, por fanatismo ideológico ou por fraqueza material sempre devida a falha de caráter, eram tidos como desprezíveis traidores. Apenas alguma melhor literatura foi capaz de ir um pouco mais longe numa análise mais sofisticada de motivações.

Os “maus” eram uma caricatura sempre fácil de fazer. Quase sempre feios (o que facilita o reconhecimento imediato), ou bonitos mas nesse caso gélidos, eram tributários de uma hierarquia impiedosa, peças de uma máquina sinistra, gerida apenas numa lógica de finalidades, onde “valia tudo” para atingir os seus sinistros objetivos. Quando, num rebate de consciência ou por outra razão mais comezinha, algum desses “maus” se decidia passar para o lado “bom”, nunca o qualificativo de traidor se lhe aplicava: juntar-se ao lado “certo” da História isentava-os do labéu. A ordem dos valores tinha consequências semânticas.

O fim da Guerra Fria confundiu, por algum tempo, os desenhadores da História conveniente. O que sobrara da implosão da União Soviética, da Rússia aos restos do Cáucaso e da Ásia Central, passou a ser apresentado como um completo caos, em que preponderavam déspotas sucessores do comunismo, oligarcas e o sub-mundo do crime organizado, não se percebendo bem onde cada uma dessas coisas terminava. Eram películas cinzentas, sem sol, onde um mundo de miséria e ruínas urbanas dava razão póstuma à teimosia ocidental que abalara o Kremlin e, em Berlim, derrubara um muro. 

O 11 de setembro abriu uma nova frente de diabolização: permitiu dar aberta legitimidade à islamofobia, que rapidamente passou a ser um dos fatores centrais na equação das forças do “mal”. Veio depois o Estado Islâmico, bem como as metástases terroristas, e, com a guerra na Síria, juntou-se finalmente ao grupo o Irão, hoje destacado como uma das forças essenciais do “eixo do mal” que preocupa o ocidente, leia-se Washington. Pouco já deve faltar para a China surgir como o novo “satã”.

Dei comigo a pensar isto ao fim de alguns milhares de páginas de alguns “thrillers” da moda, que por aí se vendem como manteiga e que eu tenho consumido como diversão, nestes tempos em que só quero “sopas e descanso”. E também concluí, com facilidade, que há uma entidade que, com escassos “mas”, sempre com muita dose de admiração, surge nesses confrontos, nuns casos abertamente incensada como a fonte do “bem” estratégico, noutros realisticamente assumida como útil subcontratante para algum “dirty work” que o mundo ocidental (leia-se, de novo, Washington) decide não ser ele próprio a executar. Essa entidade, que os cuidados primários de credibilidade política aconselham sempre a que se trate com pinças, é Israel.

Esta é uma análise simples, reconheço até que simplista.

segunda-feira, setembro 30, 2019

Do meu inglês a Forsyth


Recordo-me de que, em casa dos meus pais, lá por Vila Real, os escassos livros numa língua estrangeira (e não eram, de facto, muitos) que andavam pelas estantes estavam escritos em francês. O meu pai era um francófilo assumido, dava “explicações” (gratuitas, por gosto pessoal), aos estudantes da família e filhos de amigos.

O modelo de ensino em Portugal consagrava uma subalternidade da língua inglesa, e a sociedade portuguesa viveu isso de forma muito clara até à viragem dos anos 60 para 70. Só o posterior impacto da economia nas relações de poder entre os Estados ocidentais iria acabar por colocar o inglês (em grande parte, devido aos americanos) no posto de comando (até ver, definitivo) das línguas à escala global. E Portugal não fugiu a esse tropismo.

O inglês, só ensinado a todos entre os 13 e os 15 anos, eram duas aulas por semana que, pelo menos, num desses anos, tiveram a graça de serem dadas por uma professora jovem e gira, que era um estímulo, embora não necessariamente didático, das hostes adolescentes. Por essa pouca aprendizagem, à saída do liceu, eu tinha um inglês muito hesitante, “de aeroporto”, de léxico reduzido, que dava para ler a “Time” ou a “Newsweek” e para dizer o essencial nas viagens que cada vez mais procurava fazer. Mas ficava muito aquém do domínio que tinha do francês, que eu “tinha a mania” (expressão do meu pai) que falava bem melhor. E falava.

Mas, no íntimo, por esses tempos, ia criando a crescente consciência de que precisava de melhorar a minha aprendizagem da língua. No inverno de 1972, numa semana de férias que passei em Nova Iorque, deu-me para ir a um teatro “off Broadway”, assistir a uma peça conhecida de Tennessee Williams. Saí da sessão furioso comigo mesmo: não tinha percebido quase nada dos diálogos em palco. Regressei a Portugal determinado a corrigir isso. Mas como estava então com o curso universitário suspenso, empregado num banco, nem de longe me podendo permitir sonhar em fazer um dispendioso curso de “imersão total” em Inglaterra, onde aliás nunca tinha ido, tinha de ser modesto nas ambições que acalentava.

Contudo, a verdade é que o meu “curto” inglês acabaria, afinal, por ser suficiente para “passar” na prova de línguas de acesso ao MNE. Não muito tempo após a minha entrada para as Necessidades, fui, em 1976, um dos primeiros funcionários a solicitar uma pequena ajuda financeira, prevista no estatuto mas que nunca tinha sido utilizada, para custear aulas externas de língua inglesa. Tenho na memória ter assistido a aulas em grupo num primeiro andar do Centro Cultural Americano, na avenida Duque de Loulé, em horário pós-laboral.

Um dia, à conversa, comentei com um amigo que continuava a ter bastante dificuldade em ler obras de ficção escritas em língua inglesa. Lia, sem quaisquer problemas, história, biografias, “current issues”, mas, sempre que pegava num romance, perdia-me cedo e acabava por desistir.

Esse meu querido amigo, António Pinto Rodrigues, que já se foi há muito (e com quem escrevi e editei, em 1975, o livro “O Caso República”), deu-me então um conselho valiosíssimo: “Começa a ler um livro que, à partida, tenhas a certeza de que te vai interessar. Passa à frente as palavras que não te disserem nada, não pares, não uses nunca dicionários nem tomes notas de palavras, mantém firmemente concentrado no mesmo ritmo de leitura. Verás que, ao final de umas horas, o livro captou-te e te habituas, em definitivo”.

O António era casado com uma americana meia-brasileira, a Dee, e imagino que isso tenha ajudado ao inglês dele. A mim, foi esse seu conselho que me abriu, em definitivo, o caminho de acesso para alguma ficção anglo-saxónica. Valha a verdade que, noutras obras de criação literária de língua inglesa, mais complexas e elaboradas, continuo a recorrer a traduções em português.

Mas a que propósito vem isto, perguntará o leitor? É muito simples: o meu amigo António deu-me nessa altura, como exemplo de coisas a ler, com garantia de interesse assegurado, os “thrillers” de Frederick Forsyth, que estavam a ter imenso sucesso, onde a espionagem se misturava com a aventura política. Aceitei a sugestão e, de facto, fiquei logo “apaixonado” pelo estilo. A partir daí, li creio que quase tudo o que ele publicou, em termos de obras de ficção. Ontem, no quarto do hospital, que acaba por ser uma bela sala de leitura, terminei, em escassas horas, o que julgo ser o seu último romance: “The Fox”.

E?

E não gostei! A fórmula está visivelmente cansada, no género há hoje quem escreva bem melhor, o recurso a referências especializadas, utilizado para dar mais plausibilidade às histórias, funciona já como um truque pouco convincente, tudo isto dentro de um texto recheado de inferências pouco credíveis, de “jogos de sombras” muito batidos.

Forsyth foi-me muito útil há meio século - e estou-lhe eternamente grato por isso. Com o tempo, contudo, foi-me desiludindo - ou talvez tenha sido eu quem se tornou mais exigente. Seja por que razão for, este foi, seguramente, o derradeiro romance de Forsyth que li.

domingo, setembro 29, 2019

Esquerda - direita


- Há que reconhecer que foram anos muito difíceis para a direita. Foi sujeita a um grande desgaste, manteve-se sempre com grande dificuldade. Chegou a ser doloroso.

- Tudo bem, mas olha que, com esse panorama na direita, há que “tirar o chapéu” à esquerda. Aguentou forte e feio e, no fundo, toda a estabilidade, nos últimos anos, a ela se ficou a dever. Agora, de certa maneira, a esquerda começa a pagar por isso. É nela que todas as tensões se refletem.

- Teremos de ver como é que a direita se vai comportar. Reconstituída, pode ser que venha a ter um novo futuro. 

- Eu por mim, confesso, agora, quero é esquecer a direita, que ela me não cause preocupações, já me deu cabo do juízo por muitos anos. No imediato, a minha preocupação é a esquerda. Não quero ver nela surgir uma crise grave, porque é com ela essencialmente que conto, nos tempos mais próximos, para isto andar para a frente.

Esta conversa, com um amigo, depois da operação a que a minha perna direita foi há dias sujeita, no joelho, nunca aconteceu, claro.

sábado, setembro 28, 2019

Canadianas


Alguém me sabe explicar por que razão estes elegantes auxiliares de marcha, de que me não vou livrar tão cedo, se chamam “canadianas”?

sexta-feira, setembro 27, 2019

Diana e os presidentes


Dificilmente se encontrará uma relação política mais conflitual na democracia francesa do que aquela que dividiu Jacques Chirac, que agora morreu, e Giscard d’Estaing. Dois estilos, duas lideranças, dois destinos, dentro da direita e da História francesas. Curiosamente, “une-os” a princesa Diana.

Giscard escreveu um livro de ficção,”La Princesse et le Président”, onde efabula sobre uma relação amorosa que poderia ter existido entre Diana de Gales e um presidente francês, figura em que o retrato do próprio Giscard assenta como uma luva. A imprensa britânica reagiu, entre o furioso e o desdenhoso, ao que entendeu ser uma tentativa de Giscard de sugerir a sua inclusão na lista de amores da princesa. Giscard, mas só depois de muito instado, fez saber tratar-se de uma mera ficção, algo cuja verosimilhança só deveria ser medida à luz das circunstâncias proporcionadas pelos encontros oficiais das duas figuras. A propósito de este livro de Giscard, Chirac fazia, ao que se sabe, comentários hilariantes, depreciativos do seu rival político.

Mas o que é que Jacques Chirac tem (também) a ver com Diana? A tragédia desta última. Na noite em que a princesa morreu, em Paris, no acidente no túnel de Alma, em 31 de agosto de 1997, a primeira preocupação das autoridades policiais francesas foi avisar o Presidente da República. Tudo foi tentado, a começar pelo palácio do Eliseu. Mas Chirac estava, como dizem os franceses, “aux abonnés absents”. Nem os próprios agentes dos serviços secretos que o protegiam, 24 sobre 24 horas, sabiam onde ele se encontrava. O presidente tinha-se permitido uma “escapada”, num dos seus tradicionais “affaires” românticos, que a sua mulher Bernardette aturava desde sempre, não contando, naturalmente, que essa ia ser precisamente a noite em que uma princesa britânica iria morrer à saída de um túnel rodoviário sob o Sena, em que deveria ter sido ele mesmo a informar as chefias britânicas. Só muitas horas mais tarde, foi possível encontrá-lo. Pode assim dizer-se que histórica rapidez de Chirac nos seus encontros sexuais - “cinq minutes, douche comprise” - não se tinha confirmado nessa noite.

Trotsky, Chencho e a madre superiora


Faz agora 50 anos, tal como acontece no dia de hoje, eu estava estendido na cama de um hospital, recém-operado a um joelho (o mesmo!). Então foi no Porto, agora é em Lisboa.

Um aquecimento mal feito, a anteceder um treino de atletismo, no estádio universitário, acabou com a (nem por isso muito promissora) carreira de um esforçado corredor de velocidade do CDUP.

Essa simples intervenção (então) ao menisco, à antiga, não terá corrido bem, como, semanas depois, já em Lisboa, o médico do Sporting, Aníbal Costa, veio a constatar, entregando-me então nas mãos geniais de Graça Gordo, o sargento massagista que acompanhava o mítico Manuel Marques, no clube e na seleção nacional. Que fez por mim tudo o que era então possível. A complexidade das operações ao meu joelho aumentou entretanto bastante, como que correspondendo à passagem do tempo...

Mas voltemos ao hospital no Porto, à casa de saúde da Carcereira, nesse ano de 1969. Por ali estive uns oito dias, porque essa era a regra, mesmo para uma simples rotura de menisco. 

Num desses dias, vi entrarem-me pelo quarto dentro duas freiras. Pensei que se tratasse da assistência religiosa do hospital. Não era. Uma das senhoras explicou-me que era a madre superiora do Lar de Santa Teresa, onde então estava hospedada a minha namorada (hoje minha mulher), que estudava no Porto. Fiquei imensamente grato. A visita das freiras era um gesto de uma enorme simpatia.

A nossa conversa, se bem que agradável, não foi muito longa. Fui dando conta que a madre superiora olhava, com alguma curiosidade, para os dois ou três livros (agora tenho também três livros comigo...) que eu tinha levado para ler durante o internamento. Um deles, o que estava mais à vista sobre a mesa de cabeceira, era a biografia de Léon Trotsky, na versão francesa “Ma Vie”, numa edição de bolso (um bolso “largo”, porque era um calhamaço), da “Poche” (por onde andará?)

Ao despedir-se, aproximando-se da cama, notei que ela fixou muito o livro. Não excluindo poder ter sido apenas uma perceção minha, fiquei a achar, para sempre, que ela mudou para uma cara bastante mais “fechada” do que a que antes me dedicara. Com que impressão terá ficado a madre superiora do namorado da sua hóspede, a ler o teórico da “revolução permanente”?

Não espero vir agora a receber, aqui pelo hospital, a visita de nenhuma freira. Se acaso isso viesse a acontecer, a única biografia que ela iria encontrar à minha cabeceira era a de Chencho Arias, um amigo diplomata espanhol de quem, há dias, em Badajoz, comprei o divertido “Yo siempre creí que los diplomáticos eran unos mamones”. Que diabo pensaria ela de mim ao ver tal título?

quinta-feira, setembro 26, 2019

Kildare


Quando a nossa televisão era uma criança, a série “Doutor Kildare” fazia-nos sonhar com hospitais similares àqueles que a América tinha, num tempo em que, por cá, quase tudo, nesse domínio, era uma apagada e vil tristeza. 

As séries “hospitalares” era muito raras, pudicas nas imagens, sem sangue à vista e nelas as relações humanas tinham então imagens com a delicadeza da que aqui mostro, que hoje, pela certa, dava origem a um processo por assédio.

Como diz, a cada passo, um amigo meu: “Isto já não é o que era!”

quarta-feira, setembro 25, 2019

Hoje estou no cinema


Hoje estou no cinema


Hoje estou no cinema


Hoje estou no cinema


Hoje estou no cinema


Hoje vou ao cinema


A fugir à polícia


Este não é um texto fácil de escrever. É que, ao fazê-lo, mesmo para descrever uma simples realidade, sou já obrigado a encontrar artes para conseguir fugir ao “policiamento” semântico.

Um dia, em Luanda, fui com um amigo negro (devia ter escrito “afrodescendente”?) , hoje figura de destaque na vida política local, a um cocktail num hotel. A certa altura, quis chamar a sua atenção para alguém que estava do outro lado da sala, que eu tinha ideia de já ter conhecido antes. Expliquei que era "aquele tipo baixo, de casaco escuro, encostado à janela". Havia duas pessoas nessas condições, pelo que foi necessário dar um outro pormenor: "É o que está a fumar". Foi então que o meu amigo reagiu: "O preto? Já podias ter dito que era o preto...". Assim era, mas eu estava a hesitar dizer-lhe isso a ele, também preto, ou negro. E não disse.

Mais recentemente, na minha terra, em Vila Real, cruzei-me na rua com um amigo do tempo de liceu. Vinha acompanhado de um homem negro, que eu não conhecia e que ele me apresentou. Na conversa que entabulámos, falou-se da criminalidade na cidade. Referi que não sentia a menor insegurança nas ruas, mesmo à noite. A pessoa que tinha acabado de me ser apresentada corroborou, em absoluto, a minha perceção. Virando-se para ele, o meu amigo retorquiu, risonho: “Ora, ora! A ti, com essa cor, à noite, ninguém te ataca, porque ninguém te vê!”. Rimos os três, sem constrangimento. Mas, por um segundo, perpassou-me um leve incómodo, por ser a cor daquele homem que estava na génese da piada. Devíamos tê-la evitado?

Vieram-me à memória estes episódios, ao ver a polémica, de natureza similar, que agora envolve o primeiro-ministro do Canadá, por terem sido divulgadas fotografias de uma festa carnavalesca de estudantes em que ele, há 18 anos, estava vestido de Aladino e tinha escurecido a pele para construir a personagem. Caíram o Carmo e as cataratas do Niagara, assistindo-se a Trudeau a pedir desculpas públicas por esse “pecaminoso” passado. E, pior ainda, viu-se o seu opositor político a exigir a sua cabeça, porque uma pessoa “assim” mostrava não ter qualidades para dirigir aquele país.

Reconheço que são hoje inaceitáveis práticas e atitudes discriminatórias que, no passado, eram toleradas e não objeto de censura ou rejeição. O mundo evoluiu e ainda bem. Mas se nessa evolução não for possível preservar um margem sensata de adaptação temporal, feita de compreensão, tolerância e bom senso, o novo mundo acabará por ser perigosamente “orwelliano”.

terça-feira, setembro 24, 2019

“Order!”


Aos leitores deste espaço a quem tal possa interessar e que tenham possibilidade de o fazer, recomendo vivamente a leitura da decisão da Justiça britânica, relativa à suspensão do Parlamento.

Escrito numa linguagem que combina o rigor jurídico com o estilo político, este interessante documento de 24 páginas ensina-nos mais sobre a filosofia do sistema britânico do que muita bibliografia que possamos consultar.

Por mim, não dei por mal empregue o tempo que dediquei a esta leitura.

Pode ser lida aqui.

segunda-feira, setembro 23, 2019

Vandalismo legal


Aparentemente, a Comissão Nacional de Eleições considera não haver qualquer ilegalidade na execução da pintura que militantes do Bloco de Esquerda efetuaram na parede do Instituto Superior Técnico, como a imagem documenta. 

Deve tratar-se de uma lei antiga, remanescente dos tempos da Revolução, que ninguém ousa propor que seja revogada, para não ser acusado de reacionário.

Na democracia madura em que vivemos, é perfeitamente incongruente que uma propriedade, pública ou privada, possa ser sujeita a este tipo de práticas, feitas sem autorização dos proprietários, que podiam ser simpáticas e até politicamente admissíveis em 1974/76, mas que já não se justificam nos dias de hoje. 

E se a todos os partidos desse na real gana desatar a colocar pinturas em todas as paredes e prédios “apetecíveis” deste país? Pelos vistos, até seria legal! Imagina-se o espetáculo...

Neste caso, será o orçamento do IST, pago por todos os contribuintes, a ter de arcar com os custos da restauração da parede.

Num sistema político moderno, a propaganda eleitoral tem lugares próprios, com tempo de exposição limitado, distribuídos por forma a não agredir a paisagem urbana, evitando tornar-se numa constante poluição visual. 

Por exemplo, o que, desde há vários meses, se passa em locais de Lisboa como o Marquês ou a praça de Espanha, é uma vergonha para a cidade e para a imagem do país.

Salvo em ditaduras e regimes autoritários, bem como em algumas democracias subdesenvolvidas, não conheço país onde este exagero de agressão propagandística, por parte das máquinas e agentes políticos, seja tão ostensivo como em Portugal. 

Sei que falar nisto não dá votos a ninguém, mas seria um ato de grande responsabilidade cívica ver alguém propor a revisão da legislação que, pelos vistos, ainda permite este tipo de coisas.

Repito: o ato levado a cabo pelo Bloco de Esquerda pode ter sido legal. Porém, um partido como o Bloco de Esquerda, que afirma pretensões de acesso ao poder, deveria, como prova de maturidade, abster-se de levar à prática ações desta natureza. Só lhe ficaria bem e daria razões aos portugueses, cujos votos pretende conquistar, de que são um partido responsável. Assim, continuam a dar a ideia de serem apenas os netos dos “pinta-paredes”...

“Sank roo doe noo”


Os muitos dias em que andei à boleia pela Europa, na viragem dos anos 60 para 70, trouxeram-me experiências curiosas. Uma leitora qualificava-as ontem, num comentário, como “aventuras”. Não estou de acordo: foram sempre viagens serenas, com episódios interessantes e às vezes pitorescos, mas nunca configuraram o menor registo aventureiro. Não faz o meu género...

Um desses episódios passou-se três dias depois da refeição “memorável” em Bouillon, que ontem contei. Eu partia do Luxemburgo para Paris, onde tencionava ficar uns dias mais, antes do retorno a Portugal, nesse ano de 1971. Na localidade industrial de Longwy, à saída do Luxemburgo, um “carocha” com matrícula alemã parou para me dar boleia. Eram dois militares americanos, que estavam numa base na Alemanha, que iam passar um fim de semana à capital francesa. A boleia era assim direta para Paris. A mim dava-me um jeitaço! Como eles não falavam uma palavra de francês, ficaram igualmente encantados em que eu os ajudasse a chegar ao seu destino.

A mais proeminente referência parisienses que traziam, para além do hotel, dos "trottoirs" da rue Saint-Denis e de alguns locais congéneres de Montmartre, onde iriam “concentrar” os seus escassos dias, era o "Harry's Bar".

Para quem não saiba, o “Harry’s Bar” parisiense (o nome é vulgar pelo mundo, mas os mais clássicos, embora de natureza algo diferente, estão em Veneza, Roma e Florença, e merecem uma visita, em especial o primeiro), foi, por décadas (não sei se ainda será), um lugar de culto, uma barra alcoólica quase obrigatória para expatriados do outro lado do Atlântico, por onde passaram “batalhões” de militares americanos. Foi no “Harry’s Bar” que muito parou Ernest Hemingway, o qual, ali bem próximo, a “walking distance”, fez história, aquando da libertação de Paris, ao ter tomado a decisão de “libertar” das “garras nazis” esse ponto “estratégico” que era o bar do Hotel Ritz, que ainda hoje conserva o seu nome.

Por muito tempo, o então New York Herald Tribune (depois, International Herald Tribune, hoje, International New York Times), que foi criado como um jornal para os americanos na Europa, incluía, na sua última página, publicidade ao Harry's Bar, onde o respectivo endereço - 5, rue Daunou - era apresentado em transcrição fonética, por forma a permitir ao consumidor yankee dizê-lo com facilidade ao taxistas parisienses: "Just tell the taxi driver: sank roo doe noo"...

Voltemos à boleia que os militares americanos nesse dia me davam. À época, o meu conhecimento de Paris, em especial fora do centro, era bastante limitado. Lembro-me que, por quase uma hora, os fiz perder por bairros periféricos, com os militares a começarem a perder a paciência e comigo a usar o meu francês, com transeuntes que cruzávamos, para tentar chegar à Opera, de onde eu sabia o caminho para o bar.

Finalmente, chegámos! Fiquei-me pelo gin tónico que me ofereceram, porque tinha de ir à procura de alojamento e, decididamente, os nossos planos para os dias seguintes não coincidiam. Vi-os iniciar o fim-de-semana com um Bourbon duplo e logo imaginei o que aí viria. Escapuli-me quando pude, não sem que antes lhes tivesse deixado imensas notas desenhadas no "Paris à vol d'oiseau", um mapa da cidade então muito em voga. Pode-se imaginar que o Louvre e outros polos culturais parisienses não faziam parte dessas notas orientadoras...

domingo, setembro 22, 2019

De Bouillon a Berasategui


Ao ouvir, há dias, na RTP, a jornalista Cândida Pinto perguntar aos líderes políticos qual era a sua refeição memorável de vida, dei comigo a responder intimamente à questão. E com grande facilidade.

Era o fim do verão de 1971. Eu andava, há mais de três semanas, numa das minhas viagens à boleia, pela Europa. Depois de ter ido até aos países nórdicos, regressava já ao sul. 

Nesse dia, tinha saído de Roterdão, na Holanda, e pretendia chegar ao Luxemburgo. Às vezes, naquela vida à boleia (o Interail ainda não tinha sido inventado, esclareço), as coisas não corriam de feição. Tinha já passado Lovaina e Namur, na Bélgica, mas o Luxemburgo ainda ficava longe e uma chuva miudinha, puxada a vento, tornava esse final de tarde desagradável, para quem tinha de ficar bastante tempo nos cruzamentos, de dedo estendido e uma placa de papel com o nome do destino pretendido. Surgiam boleias para pequenos troços mas, a certo ponto, percebi que já não iria conseguir chegar ao Luxemburgo nesse dia. Onde dormir, então? Já encarava a hipótese de uma qualquer pensão de estrada.

No guia de “pousadas de juventude” que trazia comigo, alojamentos que eu procurava e quase sempre consegui utilizar, descobri que, numa localidade um pouco fora do meu percurso, chamada Bouillon, local de que eu nunca ouvira falar*, havia um desses albergues. Já ao cair da noite, consegui, finalmente, uma última boleia que me deixou à porta da pousada, que sempre recordo que tinha uma vista deslumbrante, como se vê na imagem (que agora arranjei na net).

Entrei e ninguém estava no balcão da receção. Pousei a mochila, andei pela casa, seguindo vozes que ouvia ao longe e fui parar a uma espécie de refeitório. Num instante, vi os olhos de cerca de duas dezenas de pessoas que por ali estavam a jantar concentrarem-se em mim. De entre eles, ergueu-se um homem mais velho, que logo percebi ser o gestor da pousada. Olhou o meu ar, imagino que um pouco esbodegado pela atribulada jornada, e, com um sorriso simpático e acolhedor, disse-me: “Sente-se já! Venha jantar connosco. Acho que deve estar com fome. Tratamos da sua inscrição depois”. 

Tenho de confessar que o frango corado, com batatas e arroz, que comi nesse jantar em Bouillon, e que há quase meio século trago no meu arquivo gustativo de prazeres, compara muito bem com o almoço que, na passada sexta-feira, sob a batuta do chefe Martín Berasategui, também com uma bela vista, apreciei no “estrelado” Fifty Seconds, no topo da torre Vasco da Gama. A cada momento, o seu prazer.

(*Em tempo: o meu amigo Carlos Leite lembra-me que Bouillon era a terra de Godofredo do Bolhão, figura que a História nos ensinou. Eu sabia lá!)

sábado, setembro 21, 2019

Um debate


Ao final da tarde de ontem, participei, num “mano-a-mano”, com o historiador Rui Ramos, num debate sobre a situação política, nestas vésperas de eleições legislativas. 

Sem supresas, o encontro, organizado para os sócios e convidados do “Círculo Eça de Queirós”, sob a moderação da jornalista Maria Elisa Domingues, foi animado, quase sempre contrastante, e, claro, disputado com a elegância expectável. 

Sendo naturalmente suspeito para fazer uma leitura da conversa, que se prolongou por quase duas horas, intervalada com um jantar, arrisco poder dizer, em síntese muito genérica, que procurei opor, a uma leitura algo negativa de Rui Ramos sobre a dinâmica da sociedade política portuguesa contemporânea, que ele entende ter caído numa estagnação de projeto muito agravada pela governação da Geringonça, uma visão bastante mais “rósea” (em todos os sentidos...) e otimista do futuro, sem esconder algumas perplexidades que também partilho. Quem lê Rui Ramos no “Observador” sabe o que ele pensa, quem me lê por aqui também, pelo que me abstenho de ir mais longe.

A certo ponto, fui perguntado sobre se não temia uma maioria absoluta do PS (coisa que, aliás, não acredito que possa vir a acontecer). Confesso que não tenho “strong feelings” sobre o assunto - compreendo os argumentos de quem a defende como desejável, como igualmente respeito os de quantos temem esse modelo de governação. Porém, tenho a impressão de que muitos dos que hoje reagem contra essa hipótese o fazem por razões precisamente opostas às minhas: ainda me não passou o “trauma” das maiorias absolutas de Cavaco e da coligação troika/PSD/CDS.

(Explicação da fotografia: numa das portas do Círculo Eça de Queiroz figura, repetidamente, o nº 202, que recorda o “202, avenue des Champs Elysées”, suposta residência em Paris de “Jacinto”, figura central de “A Cidade e as Serras”, romance póstumo de Eça de Queiroz).

Feitos ao bife!

Alguns amigos estranharam a minha acrisolada defesa do bife, depois da investida da Universidade de Coimbra contra a carne de vaca (anoto que, em rigor, ficou de fora a carne de boi e de vitela).

Ora a minha indignação tem uma história. É que o bife está indissoluvelmente ligado à memória diplomática portuguesa, como bem o demonstra este texto de Eça de Queirós em “Uma Campanha Alegre”:

Os diplomatas portugueses passam por agradar no estrangeiro pela sua palidez! Mas não se sabe que a sua palidez vem, não da beleza da raça peninsular, mas da fraqueza de legação mal alimentada. Onde um embaixador português mais se demora, não é diante das instituições estrangeiras com respeito, é diante das lojas de mercearia com inveja! E se eles não podem alcançar bons tratados para o País – é porque andam ocupados em arranjar mais rosbife para o estômago. Se não fossem os jantares da corte e as ceias dos bailes, a posição do diplomata português era insustentável. E ainda veremos os jornais estrangeiros, noticiarem: “Ontem, na Rua de… caiu inanimado de fome um indivíduo bem trajado. Conduzido para uma botica próxima o infeliz revelou toda a verdade – era o embaixador português. Deram-lhe logo bifes. O desgraçado sorria, com as lágrimas nos olhos.”

Que o país atenda a esta desgraçada situação! Que tenha um movimento generoso e franco! Dê aos seus embaixadores menos títulos e mais bifes! Embora lhes diminua as atribuições, aumente-lhes ao menos a hortaliça. Eles pedem ao seus país uma coisa bem simples: não é um palácio para viver, nem um landau para passear, nem fardas, nem comendas! É carne! Que o País no número do pessoal diplomático – diminua os adidos e aumente os bois.”

sexta-feira, setembro 20, 2019

Diplomacia e bom senso


Deixando os créditos da mais velha profissão do mundo para outras artes, pode dizer-se que a vetusta gestão dos “rituais de entendimento” coletivo à escala internacional que é a diplomacia, como lhe chamou Paulouro das Neves, se tem constituído, ao longo dos séculos, como um eficaz instrumento na prevenção e resolução de conflitos, sendo que, quando em absoluto os não consegue evitar, é da sua natureza e missão procurar manter abertos, por cima de todas as dificuldades, os canais de contacto e diálogo.

A evolução da prática diplomática, como se tornou flagrante nas últimas décadas, acabou por simplificar muita da “coreografia” que, historicamente, envolvia a ação dos seus profissionais. Contudo, algum da “liturgia” da profissão é ainda preservada, porque isso constitui um relativo suporte para o mútuo respeito por procedimentos que, no fundo, padronizam e regulam o exercício de uma mesma atividade por cidadãos oriundos de culturas muito diversas. Pela introdução de fórmulas comportamentais e de tratamento muito próprias, foi possível estruturar, e ver basicamente praticada, uma “linguagem” que muito facilita a interlocução. Algumas regras de bom senso e, vá lá, de educação, são, no fundo, esse terreno comum que as escolas diplomáticas procuram ensinar.

Um político não é um diplomata, mas muita da diplomacia dos nossos dias é executada por políticos, que se envolvem diretamente nos processos negociais, curto-circuitando, muitas vezes com grande vantagem, as estruturas de mediação diplomática. Essa cada vez maior tendência para a interlocução internacional por parte dos atores políticos coloca, porém, na sua mão parte da responsabilidade da preservação dos relacionamento entre os Estados. Há que ter a noção de que estes vão sobreviver para além de quem ocasionalmente os representa, pelo que essas pessoas devem ter consciência de que não podem, na sua ação conjuntural, titular atos ou atitudes que possam condicionar negativamente, de forma duradoura, o caminho futuro que caberá aos seus sucessores percorrer.

Quero com isto dizer que me parece de alguma gravidade o que começa a ser visível, um pouco por todo o mundo, ao assistir-se a uma inédita escalada de comentários depreciativos, ou mesmo insultos, entre titulares de órgãos de soberania de diferentes Estados, adotando uma inédita linguagem que pode fechar “portas” para diálogos futuros e, muito em especial, reduzindo a sua própria margem de recuo, para compromissos que a vida pode tornar necessários. 

Tudo aponta para que é a circunstância de os políticos gerirem cada vez mais a sua agenda com o olhar voltado para o efeito mediático das suas declarações que está a levar as coisas por este caminho. A comunidade internacional pode, por esta forma, estar a encaminhar-se para um tempo em que a diplomacia tradicional acabará por ter de fazer “damage controle” da inépcia de quem, afinal, tem a legitimidade política para a orientar. Há que convir que é uma imensa ironia.

A oração final



O (meu) Sporting perdeu ontem com o PSV Eindhoven. 

O nome do clube holandês trouxe-me à memória uma historieta com mais de três décadas.

O Benfica disputava a final da antiga Taça dos Campeões Europeus, em Estugarda, na Alemanha, contra esse mesmo PSV Eindhoven. 

De Lisboa, tinham partido, nesse dia de 1988, vários aviões. Eu ia num deles, com amigos, entre os quais se contavam alguns sportinguistas (como eu), que iam, abertamente, apoiar o Benfica nessa final (é verdade!). Alguns até com cachecol verde. Era um grupo divertidíssimo!

Lembro-me de que Miguel Esteves Cardoso, que tinha ido num outro avião, escreveu então, creio que para “O Independente”, uma crónica saborosa sobre aquela sua inédita experiência futebolística.

A partida foi difícil, com as chuteiras dos jogadores do Benfica a descalçarem-se, por inexplicadas razões. Ao meu lado, o grande Germano, velha glória da Tapadinha e da Luz, sofria a bom sofrer, visivelmente nervoso mas sempre silencioso.

Ao final do tempo regulamentar, o resultado era um nulo. Foi-se para prolongamento e tudo se manteve igual. Restavam os penáltis. E é aí que a cena se passa.

José Vera Jardim, um sportinguista dos sete costados, voltou-se para outro grande "leão", o padre Vitor Melícias, e apelou:

- Ó padre Melícias! Contamos com umas oraçõezinhas suas, agora para os penáltis!

Vitor Melícias, que já no avião nos tinha brindado, de microfone na mão, com anedotas que abalaram o voo de riso, quebrou a nervoseira geral que se vivia naquela bancada, num momento que estava a ser algo tenso, com uma pronta resposta, no tom de voz tão típico que é o seu:

- Orações?! Essa agora! Eu já aguentei isto a "pai-nossos" e "avé-marias" até ao final do prolongamento. Agora, para os penáltis, só o cardeal patriarca!

O cardeal não estava lá, Veloso falhou o penálti decisivo e o Benfica perdeu. Tal como o (meu) Sporting, ontem.

quinta-feira, setembro 19, 2019

Europa


Ao final da tarde de hoje, tive grande gosto em fazer uma palestra sobre os grandes desafios europeus aos alunos do mestrado em Economia Internacional e Estudos Europeus e do mestrado em Desenvolvimento e Cooperação Internacional, do Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), na presença de docentes e outros convidados da faculdade.

Estrelato


Ontem, dormi num hotel de “quatro estrelas”, que se paga como tal, mas que, na realidade, não passa de um bastante razoável “três estrelas”. (Há meses, já estive também num falso “cinco estrelas”. Quem permite estas coisas, ao não avaliá-las continua e devidamente, contribui para enganar os utentes).

À chegada ao hotel, olhei para a placa exibida, com a classificação média dada pelos clientes do sistema de reservas Booking, e notei que tinham 8,8, um “score” relativamente fraco (na minha opinião, que sei discutível, de “frequent sleeper”). A empregada da receção, a quem perguntei a razão daquela “nota”, respondeu-me que eram poucos os clientes com reservas individuais (“trabalhamos mais com companhias aéreas”) e que, por isso, essa classificação era dada pelos escassos utentes que se davam a esse cuidado. É claro que isso não explicava minimamente por que a nota era tão baixa. Depois, contudo, à passagem do tempo, fui percebendo.

Eu, que faço parte dos que “pontuam” com regularidade, lamento ter de contribuir para baixar ainda mais aquela média do hotel onde dormi. É que um lugar onde sou tratado (à laia da saloíce de alguns serviços) por “senhor Francisco” e por “você”, perde-me eternamente como cliente e ganha-me como detrator.

Dubai 2020


Imagem da reunião, ontem, do Conselho Consultivo da participação portuguesa na Expo Dubai 2020.

Na sopa

O jantar começou tarde, com muito boa disposição, como é típico dos ambientes africanos. Era uma mesa muito longa, bastante larga, que apenas permitia conversa com os parceiros do lado. À minha esquerda, estava uma senhora bem servida de carnes, uma figura política local. À direita, tinha um franzino alto funcionário, encarregado das questões da dívida pública desse país.

A conversa iniciou-se com este último, que elegi como alvo de curiosidade protocolar sobre a situação económica. Fi-lo, confesso, mais por não ter outro tema de conversa do que por interesse particular sobre os equilíbrios macro-económicos dessa antiga colónia de um poder europeu, situada na África central. Deixei-o explanar as dificuldades, disse duas ou três platitudes e, numa pausa, voltei-me para a volumosa vizinha da esquerda, com quem encetei uma breve troca de impressões.

Na sala, entretanto, as conversas ressoavam altas e bem animadas. Era uma visita oficial portuguesa e o chefe da nossa delegação, frequentemente macambúzio, estava nessa noite de boa onda. A certa altura, senti um toque no meu braço direito e voltei-me, de novo, para o meu vizinho. O seu fácies pareceu-me estranho, estava agora silencioso e, em segundos, vi a sua cabeça, sempre voltada para mim, descair e entrar, com lenta suavidade ... na sopa! Continuava a olhar-me, de lado, com ar vidrado e parte da cara submersa no "consommé". Não consegui ver se estava pálido, por óbvias razões...

Por um segundo, fiquei sem saber o que fazer. Desmaiado estava, pela certa. Mas teria o homem morrido? Atrapalhado, dei um toque na vizinha da esquerda, na esperança que tivesse uma solução de emergência, mas ela estava numa conversa galhofeira com um qualquer membro da nossa delegação e não se voltou. Fiz gestos de chamada para as pessoas em frente de mim, mas os espíritos continuavam altos e ninguém me ligou nada. Optei por me levantar, o que levou algumas pessoas a olhar-me e, rapidamente, a notar o estado esvaído do meu antigo interlocutor.

Foi então que uma rápida operação logística se desencadeou. Como se estivessem já preparados e sem denotar surpresa, apareceram do fundo da sala dois latagões, que retiraram o corpo do homem. De seguida, criados recolheram com rapidez o prato de sopa e limparam a área. Tudo foi feito com tal despacho que até parecia rotina. Um minuto depois, num gesto de inusitada normalidade, sentou-se ao meu lado uma outra figura local, sorridente, que logo pretendeu retomar conversa social, como se nada se tivesse passado, quase ignorando a minha preocupação com o estado de saúde do meu ex-vizinho. O resto da mesa, salvo, por instantes, alguns membros da delegação portuguesa que estavam mais próximos, continuou na anterior cavaqueira, "business as usual". 

O homem tinha tido um ataque epilético, vim depois a saber. Já era costume, tinha acontecido várias vezes, em ocasiões diversas, ninguém estranhou nada. Só eu é que, nessa noite, perdi por completo o apetite...

Saúde!

Nos tempos que correm, sinto saudades do tempo em que Portugal tinha uma Ministra da Saúde!