terça-feira, outubro 07, 2014

Os negócios

Era uma certa Lisboa, bem retratada nos sarcásticos livros do Vilhena, cuja divulgação as autoridades dificultavam. Sempre existiu, mas teve algum fulgor pelos anos 60 e início dos 70. Cavalheiros "da indústria" e "capitalistas" - o termo "empresários" era então utilizado apenas para designar os profissionais dos espetáculos, como Vasco Morgado, José Miguel ou Ricardo Covões - aportavam, à hora de almoço, por alguns restaurantes que, horas mais tarde, se transmutavam.
 
Lembro-me de três: o "Lorde", o "Comodoro" e o "Belcanto". Este último, foi o único que resistiu, agora num registo completamente diferente.
 
Ao almoço, eram os negócios, a conversa política. Aproximando-se a hora de jantar, começavam a pousar por ali algumas "pequenas", o ambiente aligeirava e o "negócio" era outro. Os cavalheiros, por vezes, eram os mesmos. 
 
Passei há pouco pelo que resta do "Lorde". Quem recordará da sua glória perdida?

Quentes e boas!

Já aí andam, pelas ruas de Lisboa, quentes e boas! Assinalam o Outono, prenunciam o Inverno e fazem-nos ter vontade de uma ginginha (com elas, claro!) ou de um eduardino (não sabe o que é? Vá à rua das Portas de Santo Antão, 7, em Lisboa).

Diplomacia económica

No dia 23 de outubro, vou participar nas V Jornadas Empresariais, organizadas no Porto pela Fundação AEP e pela Fundação de Serralves.
 
Integrarei, com o administrador da AICEP, Dr. Vital Morgado, o painel dedicado à "Organização do Comércio Externo", no qual abordarei a questão da Diplomacia económica.

segunda-feira, outubro 06, 2014

Os dois Brasis

Os "dois Brasis" vão estar, uma vez mais, frente a frente. Dilma Roussef e Aécio Neves defrontar-se-ão na segunda volta das eleições brasileiras, no dia 26 de outubro.

O "fenómeno" Marina Silva esvaiu-se com a rapidez com que tinha emergido. Constatou-se que havia sido fruto de uma reação emocional, logo seguido pela evidência da fragilidade política da candidata, que igualmente não dispunha de uma máquina política à altura.

Vão ser três semanas muito intensas. De um lado, estará o "establishment" de um PT fortemente ancorado nas camadas mais pobres, em alguma intelectualidade urbana e em certos setores que lucraram com estes quase 12 anos de "petismo", que se vai tentar agarrar ao poder a todo o custo. Do outro, estará um candidato que quererá federar o descontentamento anti-PT, que foi visível nas grandes manifestações populares de há já alguns meses, mas que acarreta consigo o estigma de poder ser visto como o representante do "Brasil rico". Daí que não se saiba se Aécio Neves será a melhor "imagem" para representar o "Brasil das ruas".

Como se dividirão os cerca de 20% de votos em Marina Silva? Menos importante do que a indicação de voto que a candidata eventualmente vier a fazer, vai ser olhar para a eficácia da estratégia de "sedução" desse eleitorado, que cada um dos agora "finalistas" vier a colocar no terreno. Dilma vai tentar, com a preciosa ajuda de Lula, "passar por cima" de Marina Silva e descobrir um discurso para o heterogéneo eleitorado que a apoiou na primeira volta, acenando com o fantasma das privatizações (a "privataria tucana", na linguagem PT) e o possível ataque às políticas sociais que uma vitória conservadora poderia acarretar. Aécio, com toda a certeza, vai jogar no "todos contra o PT", colando Dilma aos escândalos de corrupção e denunciando o peso do "Estado PT" e os riscos de uma desregulação económica, tentando sublinhar as carências nas principais políticas públicas - saúde, infraestruturas, ensino, etc. No fundo, vamos assistir a uma espécie de novo duelo virtual entre Lula e Fernando Henrique Cardoso, por interpostas pessoas.

Posso estar enganado, mas julgo que se vai entrar num período nada "limpo" da vida política interna brasileira, recheado de boatos, de campanhas mediáticas, de "medos" induzidos, etc. Logo veremos.

Uma nota final: esta eleição está, afinal, muito mais "aberta" do que eu esperava.

(Uma nota portuguesa: porque será que ninguém por cá reflete na fantástica vantagem do voto eletrónico, desde há vários anos usado no Brasil, que já se provou que está blindado contra fraudes e dá resultados quase imediatos? Quem tem medo do sistema? Por que diabo ninguém fala nisto?)

domingo, outubro 05, 2014

Um leão a sério

Encontrei-o há minutos numa sala da SIC, onde ambos esperávamos para entrar "em cena" - eu ia falar da política brasileira, ele de futebol. Nunca me tinha cruzado com ele, mas aproveitei o ensejo para lhe manifestar a minha solidariedade face ao ataque soez de que, há dias, foi alvo por parte do presidente do clube de que ambos somos fiéis adeptos e do qual ele foi um jogador admirável e ao qual deu muitos anos da sua vida e entusiasmo.

Ao lado de Manuel Fernandes, o atual presidente do Sporting Clube de Portugal - qualquer que venha a ser o sucesso da sua ação - não passa por ora de um leão de peluche, sem ofensa para estes. E, ainda por cima, mal educado.

A abstenção e a "falta de confiança"

Cavaco Silva, hoje: "A insatisfação dos cidadãos e a sua falta de confiança nas instituições – sobretudo nos partidos – têm tido reflexo em sucessivos atos eleitorais, marcados por níveis preocupantes de abstenção."
 
Abstenção nas últimas eleições legislativas: 41,93%
 
Abstenção nas últimas eleições presidenciais: 53,48%
 
Se a "insatisfação" e "falta de confiança" se mede pela abstenção, será "sobretudo nos partidos"?

O Brasil não é para principiantes




A expressão em título é de António Carlos Jobim que, além de génio musical, era um sábio das coisas da vida. O Brasil é uma realidade altamente complexa, não apenas pelo intrincado do seu tecido social e político mas, essencialmente, pela sua natureza mutante, que, de um dia para o outro, constrói inesperadas vagas de realidades que põem em causa o que, ainda na véspera, era um sólido adquirido. Foi sempre assim e essa é a graça desse grande e inigualável país.

Recorde-se a sociedade brasileira nos meses que antecederam a “Copa” de futebol, a agitação simultânea nas ruas de muitas cidades de um país continente, o quase descontrolo então demonstrado pelos agentes políticos, em face de um movimento que as redes sociais pareciam ter tornado imparável. Alguns acreditavam que já nem a “Copa” poderia amainar esta tempestade, que era o claro produto de uma frustração gerada pela esperança de um salto de qualidade dos instrumentos públicos de apoio à vida coletiva que, afinal, não estava, nem está, ao voltar da esquina. Segurança, saúde, educação, transportes, justiça e outras políticas públicas, se bem que com sensíveis melhorias, medidas à luz do tempo, continuavam bem distantes do tal “primeiro mundo” pelo qual os brasileiros teimam, e bem, em medir o seu percurso histórico.

E, no entanto, ao primeiro apito do árbitro da “Copa”, a rua serenou. Nem a deceção que foi o desastre do “escrete” brasileiro pelos campos desencadeou a onda de revolta que, de acordo com certos oráculos, varreria o poder e talvez trouxesse mesmo a anarquia, à falta de uma alternativa estruturada, capaz de responder politicamente aos diversos e contraditórios tipos de “enragés”.  

Olhe-se agora para o minuto antes da queda do avião que transportava Eduardo Campos: Dilma Rousseff tremia nas sondagens face a um Aécio Neves que prometia a grande desforra histórica de Fernando Henrique Cardoso, numa segunda volta de “todos contra o PT”. Campos vegetava pelo fundo das folhas de cálculo político. Em seguida, o avião caiu. A clara jogada oportunista que fora a inclusão Marina Silva numa “chapa” que era, por essa mesma razão, a mais incoerente das três candidaturas, transformou-se, de um dia para o outro, numa alavanca automática de promoção à antiga ministra do Ambiente de Lula, à fundamentalista “verde” que, afinal, já era capaz de pactuar com o agro-negócio. A emoção havia feito disparar a imagem de alguém que o Brasil parecia ter descoberto naquele instante, quando, afinal, a já conhecia de há muito. Entretanto, Aécio “despencou” nas pesquisas de opinião. “O avião de Campos caiu na cabeça de Aécio”, dizia-me um amigo brasileiro, com o cruel humor local.

A onda traz e o vento leva, reza uma bela história pernambucana. Pressionada com êxito pela implacável máquina do PT, gerindo com solidão as suas recorrentes contradições, Marina Silva foi-se esfumando no apoio popular. Lula, o mais genial “leitor” da realidade brasileira, surge mais abertamente a dar a esperada ajuda à festa de Dilma Rousseff. E a estrela da recandidata volta a subir, com Aécio Neves a não ter ainda exatamente a mesma sorte.

Há cinco anos, confirmando a lenda de que era capaz de “eleger um poste”, Lula conseguiu transformar uma fria tecnocrata esquerdista, que até algum PT olhava de lado, na presidente (ou “presidenta”) que muitos achavam difícil de ser “vendida” a um país que ainda estava órfão da sua afetividade. Claro que, para tal, teve a inestimável ajuda de José Serra, o suporífero candidato que a direita inábil selecionara. Roussef era uma continuidade de Lula confortável para os negócios, que, embora com algum crescente desgaste, conseguira federar o “cocktail” de forças partidárias que integram o seu mastodôntico governo e que, à época, parecia capaz de pilotar um Brasil que se agigantava no seio do G20, nesse tempo de glória dos emergentes face a um mundo em crise sem fim à vista. 

Esse mundo entretanto mudou, os emergentes perderam algum “glamour”, os capitais voltaram a favorecer sociedades mais previsíveis. O Brasil declinou na esperança e, com alguma ironia, muitos brasileiros começaram a pôr em causa precisamente quem os impulsionara pelos degraus sociais e, dessa forma, lhes induzira maiores ambições. Não tivesse o antigo presidente passado por provações de saúde, estou certo que Dilma Rousseff não teria sobrevivido a esse período e hoje seria ele a liderar, com grande distância, as sondagens. Rousseff provou ser hábil, não colocou em causa os mecanismos de repartição patrimonialista que fazem parte do ADN do sistema político brasileiro, mas definiu “red lines” em termos de corrupção que lhe deram a possibilidade de ser vista como saneadora de alguns costumes mais sórdidos. O sistema brasileiro, como atrás referi, é muito complexo e, sem algum sentido de compromisso com os seus hábitos, nenhum político tem possibilidades de sobreviver. E isto, verdadeiramente, nunca poderá ser explicado abertamente aos brasileiros, se bem que todos o pressintam. Como o caso do “mensalão” provou à evidência, só os exageros começam a ser eticamente punidos.

Domingo veremos a que distância Dilma Rousseff deixa os seus adversários, no termo do primeiro turno das eleições presidenciais. Tudo parece indicar que, a menos que um novo cataclismo atinja a política brasileira, ela conseguirá renovar o seu mandato. O mundo empresarial, a quem Aécio Neves agradaria naturalmente mais, ficará descansado com uma vitória da candidata do PT, a qual, para governar, terá de “costurar alianças” com o largo espetro dos partidos da futura “base de apoio governista”, onde todos “os interesses que interessam” ficarão sempre salvaguardados. A única questão que, ao que se sabe, atormenta o grande empresariado é a de saber se, face a uma potencial continuação do declínio do crescimento no Brasil, com impactos sociais a que seja imperativo dar resposta, um segundo governo Dilma Rousseff não poderá ser tentado a uma fuga em frente, em matéria de utilização da poderosa máquina financeira do Estado, que faça renascer o espetro maior da memória político-económica brasileira: a inflação.

* Texto que, a amável convite de David Dinis, publiquei há dias no "Observador"
 

Viva a República!


sábado, outubro 04, 2014

Alternativas

Foi um debate muito interessante aquele em que, na tarde de hoje, se processou no âmbito do Congresso Democrático das Alternativas". O tema do painel em que fui convidado a participar era "A Dívida, a União europeia e a soberania".

Com grande liberdade e abertura, discutimos a situação portuguesa, o que fazer quanto à dívida e ao Tratado orçamental e, em termos gerais, as bases para uma futura governação pelo lado esquerdo da estrada.

Num painel "avançado" (João Ferreira do Amaral, Octávio Teixeira e Marisa Matias, para além do próprio moderador, José Castro Caldas), fiz, como era natural, figura de "recuado" (sem o significado da palavra dado pelas FP25, claro!). Não penso da irreconvertibilidade da UE o que alguns dos meus parceiros pensam, recuso o cenário de abandono voluntário do euro que eles aceitam como solução e tenho sobre a renegociação da dívida uma posição um pouco mais prudente que a deles. Sublinho, talvez em demasia face a esses colegas de painel e de muitas das pessoas presentes, a necessidade de se seguir uma linha "possibilista", de exploração de todas as ambiguidades e oportunidades que uma leitura "hábil" (Octávio Teixeira chamou-lhe "inteligente", não acreditando nela) dos tratados, sem cair em soluções que possam ter um impacto negativo na captação do investimento produtivo estrangeiro, única - repito, única - fonte de recursos que podem vir a impulsionar o nosso crescimento, sem o qual nenhum futuro de estabilidade e bem-estar é plausível. De acordo estivemos em que nenhuma plataforma política futura poderá tornar tabu todas estas questões, que devem ser explicitadas à opinião pública sem medos nem chantagens catastrofistas, com argumentário de apoio sólido. E não emotivo, acrescentaria eu.

Entre muitas outras coisas que disse sobre a União Europeia, fui de opinião de que o Parlamento europeu pode, nesta fase, ter um papel importante como espaço de visibilidade para propostas em matéria de opções económico-financeiras europeias que, até ver, não encontram um terreno favorável de afirmação a nível do Conselho de ministros, provavelmente com tradução mais ou menos similar nos equilíbrios internos da nova Comissão Juncker, embora este terreno também não deva ser desprezado, pelo menos num teste aos compromissos do seu presidente.

Gostei muito deste debate. Encontrei por lá velhos e novos amigos, gente que tem em comum uma recusa da resignação e uma vontade de remar contra a maré, mesmo a da moderação - de expetativas e de atitudes - como aquela que eu por ali pareci representar.

Consultar aqui a minha intervenção inicial.

sexta-feira, outubro 03, 2014

Liberdade

No CCB, a Fundação Francisco Manuel dos Santos leva a cabo, hoje e amanhã, a terceira edição das suas conferências "Presente no Futuro", este ano dedicada ao tema "À procura da liberdade".

Há pouco, na TVI, a propósito do evento, uma voz em "off" afirmava durante o telejornal da noite: "Pior que o nível de impostos está a rigidez do mercado de trabalho e o peso do Estado na Economia. São estas as variáveis que hoje representam os maiores bloqueios à liberdade económica em Portugal". Em fundo, via-se um gráfico e a fonte que terá inspirado esta proclamação: Heritage Foundation.

A nossa liberdade está também na possibilidade do público incauto não ser "agredido", porque de uma agressão se trata, com uma proclamação deste género, em tom doutoral e como se de uma verdade inegável se tratasse.

A nossa liberdade passa também pela exigência do contraditório face à imposição deste "pensamento único". Há dois dias, na RTP, assisti, atónito, a um programa sobre economia com Camilo Lourenço, João César das Neves e uma terceira personagem, cujo nome não recordo. Cada um mais liberal do que o outro, os três interlocutores, sem um mínimo de respeito pelas opiniões contrárias às suas, passaram para o espetador conceitos e ideias mais do que discutíveis, em tom de teses definitivas. Isto numa televisão do Estado, paga com dinheiros de todos nós.

Há ainda um longo caminho a percorrer na preservação das nossas liberdades, como os exemplos acima bem o provam. 

quinta-feira, outubro 02, 2014

Uma síntese

Um dia poderemos falar do "revisionismo" que por aí anda sobre a ditadura a que o 25 de abril pôs termo. E dos nomes de uma geração de historiadores que, com jeito e subliminar técnica, pacientemente se dedicam a dulcificar ou relativizar o caráter sinistro do Estado Novo.
 
A técnica é simples: reconhecem-se alguns factos impossíveis de negar sobre o Estado Novo (às vezes com algumas adaptações semânticas, para não contribuir para a "narrativa" oposicionista tradicional) e, depois, relativiza-se essa realidade com imediata referência aos acontecimentos do período da I República. Este período é também quase sempre usado para absolver o autoritarismo dos últimos anos da monarquia, por cuja turbulência, aliás, os republicanos são tidos como os principais responsáveis. Porém, este percurso justificativo não leva a sua lógica até ao fim, isto é, não explica, por exemplo, que a agitação monárquica foi responsável por muita da instabilidade dos primeiros anos da nova República e que o golpismo premonitório do 28 de maio de 1926 muito contribuiu para a sua desestruturação e declínio. Outra "técnica" complementar é usar pontuais abusos ocorridos no período revolucionário de 1974/75 (prisões, sevícias, etc.) como exemplos de que, afinal, as coisas não haviam sido assim tão diferentes na época imediatamente anterior.   
 
Às vezes, quem muito escreve sobre estes assuntos é obrigado a sínteses. Foi o que aconteceu hoje a um prolífico historiador moderno, talvez o mais proeminente exemplo da historiografia conservadora, Rui Ramos. Talvez ele não aprecie que esta sua frase seja retirada do contexto, mas eu acho-a tão exemplar que não resisto a citá-la: "O Estado Novo foi uma ditadura, sujeitou a imprensa à censura, falsificou eleições, e prendeu, torturou e matou oposicionistas". Ele não escreveu apenas isto, mas é só isto que dele me apetece citar. E elogiar. 

Alternativas

 
Na tarde do próximo sábado, dia 4 de outubro, participarei numa mesa redonda no âmbito do "Congresso Democrático das Alternativas", a ter lugar no liceu Camões, em Lisboa.
 
O tema será "A dívida, a União europeia e a soberania". No debate, moderado por José Castro Caldas, participarão ainda João Ferreira do Amaral, José Gomes Canotilho, Marisa Matias e Octávio Teixeira.

Às vezes por uma rosa

 
Ontem à tarde. Era um café de bairro, muito pequeno, com duas mesas apenas, daqueles que servem refeições rápidas. Eu era o único cliente, para uma bica. Dentro do balcão, dois homens, claramente sócios. Discutiam como se eu não estivesse por ali. A relação entre os dois tinha algo de estranho, como se houvesse uma afetividade já ferida pelo desgaste de uma difícil vida em comum, que visivelmente não se resumia àquele confinado espaço. Um deles, um pouco mais velho, queixava-se de que o outro não colaborava como devia, que algo que lhe competiria fazer nunca aparecia feito. O outro, barba de três dias, esquálido, de olhar vidrado, mostrava um estado de tensão cada vez menos contida. "Já ouvi. Acabou! Não digas mais nada!". O primeiro insistia, mais sereno na aparência, o que sugeria uma espécie de assumida autoridade. "Já te disse que isto assim não pode continuar". A minha bica, praticamente sem que qualquer deles me olhasse, lá surgiu. "Vais-te arrepender, se não te calares", disse o admoestado, num crescendo de raiva. Estranhamente para os costumes, as suas vozes não subiam muito. Pelo contrário, soavam a remoques que a sua proximidade física, atrás do balcão, transformava numa coreografia teatral bizarra. "Eu digo o que quiser! Tenho razão!", insistia o primeiro, em jeito de persistir em esgravatar no mal-estar. Foi então que, comigo sempre "ausente", vi a faca surgir na mão do outro. Separava-os nem um metro. Com a voz a tremer, apontando-a junto à cintura, saiu-lhe: "Já faltou mais para te espetar isto nas tripas!" Um sorriso amarelo surgiu na face do primeiro, que, no entanto, ousou ainda a provocação: "Não tens coragem!". Vi então uma chispa no olhar do da faca e não me contive: "Meus senhores! Calma!". A faca foi pousada sobre o balcão. Tive a sensação de que o mais novo, que me servira a bica, só então olhou para mim, de forma fixa, bem no fundo dos olhos. "Quer pagar o café?". Paguei e saí. 

Lembrei-me então de Manuel Alegre:

Aqui viviam morriam. Tinham suas mulheres
suas tabernas seus adros
seus ódios e seus amores.
Aqui às vezes matavam.
Por uma vaca. Uma galinha. Água. Desespero.
Por uma coisa de nada:
às vezes por uma vaca
às vezes por uma rosa.

Naquele caso, seria mais pela rosa do que pelas mulheres.

Este país anda muito nervoso. 

quarta-feira, outubro 01, 2014

Eduardo Ferro Rodrigues

Uma amizade de quatro décadas é um "disclaimer" que não escondo, mas a presença de Eduardo Ferro Rodrigues à frente do grupo parlamentar socialista é, para mim, a primeira boa notícia da nova gestão de António Costa.
 
Ferro Rodrigues é um dos mais sérios políticos portugueses, um homem de princípios como conheço poucos, uma figura que honra a nossa democracia. Em todos os lugares que ocupou deixou uma rara marca de rigor, de competência e de dedicação à causa pública.

"The last king of Portugal"

Posso estar enganado, mas não me parece que Paula Rego, com a sua nova exposição "The last king of Portugal", vá grangear novos fãs em certos amigos meus...

A consideração


As más relações entre aquele embaixador e o ministro dos Negócios Estrangeiros eram conhecidas. Um conflito entre os dois desencadeara uma "guerra" surda que se mantinha já há alguns meses, com alguma repercussão pública. O ministro suportava o diplomata porque, por um conjunto variado de razões, era-lhe conjunturalmente impossível "ver-se livre" dele. Mas, sempre que podia, não deixava de atuar de modo a tornar difícil a vida do embaixador. E este, quase sempre, respondia da mesma moeda e, nas suas respostas, roçava frequentemente a insolência. O ministério, deliciado, esperava para ver quem seria o primeiro a "quebrar".
 
Um dia, o embaixador decidiu protestar por escrito, a propósito de uma qualquer decisão de Lisboa que entendeu errada. Como era seu hábito nesse tempo de confrontação com o ministro, usou um tom agreste na comunicação. A atitude terá desagradado ao chefe da diplomacia, que decidiu responder-lhe de uma forma ríspida, dizendo-lhe que não admitia comunicações formuladas naquele tom. Usou, para tal, um modelo de comunicação muito raro nas tradições da "casa", isto é, assinando ele próprio o "telegrama" ao embaixador, subscrevendo-o como "Ministro". Em regra, todas as comunicações enviadas de Lisboa para os postos aparecem assinadas por "Nestrangeiros", uma designação coletiva que representa o MNE. Dessa vez, o ministro optara pela fórmula de exceção, seguramente para marcar bem a pessoalização do "ralhete", que logo circulou pelos claustros.
 
O embaixador "dormiu sobre o telegrama", como se diz na linguagem tradicional do MNE. Só no dia seguinte respondeu, enviando um curto telegrama em que fazia uma indireta alusão ao facto de ter sido o próprio ministro a subscrever o texto: "Telegrama de V. Exa. nº "tal" foi lido por mim com a atenção que a sua origem justificava e com a consideração que o seu conteúdo merecia".
 
Conhecidas as relações entre os dois subscritores, ficava claro o que a "consideração" expressa pelo embaixador significava. Porém, no plano estritamente formal, o texto estava "blindado", isto é, dele não se poderia, necessariamente, inferir qualquer propósito menos respeitoso. De qualquer forma, vários diplomatas mais antigos, conhecedores do rigor dos humores do ministro, ficaram à espera de ver surgir, como reação, o conhecido texto que indicia a retirada do embaixador do local de trabalho: "É Vexa chamado em serviço, sem regresso ao posto".

Porém, nada aconteceu. O embaixador continuou em funções. O ministro não terá tido a coragem ou, o que é mais provável, continuava a não ter a possibilidade de se "ver livre" dele. Tempos depois, viria a acontecer precisamente o contrário: o ministro viria a abandonar o lugar, sem honra nem glória. E foi o embaixador quem se "viu livre" do ministro. É a vida!

terça-feira, setembro 30, 2014

Salário mínimo

A Comissão Europeia está desagradada com o novo salário mínimo em Portugal. Acha demais!
 
Talvez alguém devesse inquirir qual é o salário mínimo pago pela Comissão aos seus funcionários. E, de caminho, qual é o salário mais elevado que paga, esclarecendo os benefícios complementares de que usufruem os funcionários das instituições europeias.
 
Não se trata de suscitar nenhuma "inveja" particular sobre os rendimentos de quem, honradamente, cumpre as suas funções nas instituições de Bruxelas. Trata-se apenas de realçar esta espantosa insensibilidade de instituições cujo pessoal não é atingido pelo desemprego, pela pobreza, pelos cortes nos apoios de saúde e educação e que - vale a pena sublinhar - também são pagas pelo nosso orçamento nacional.

Alpoim Calvão

Morreu Alpoim Calvão. No dia 25 de abril de 1974, foi a sua estranha e nunca bem explicada deslocação matinal às instalações da Direção Geral de Segurança (ex-PIDE), na rua António Maria Cardoso, que deu alento aos respetivos agentes, os levou a optar pela resistência e permitiu que tivessem tempo para destruir importante documentação. Mais tarde, Calvão viria a ser um dos mais decisivos operacionais do MDLP, o movimento com que Spínola pretendeu reverter o curso do processo político e que ficou ligado a vários atentados, alguns mortais, no norte do país. O momento da desaparição de Alpoim Calvão não pode branquear este seu passado.

Alpoim Calvão havia sido, ao tempo da guerra colonial, um militar valoroso, titular da mais alta condecoração portuguesa, a Torre e Espada, sendo, até hoje, o mais condecorado militar da Armada portuguesa. A sua coragem era lendária e, em alguns meios, era conhecido como o "007 português". Em 1970, comandou a chamada "Operação Mar Verde", um golpe de mão ordenado por Spínola, dentro da República da Guiné, que tinha como objetivo central prender Amílcar Cabral. A ação provocou morte e destruição em Conacri, não cumpriu o objetivo essencial* e transformou-se num imenso embaraço para as autoridades portuguesas.

Soube agora que Alpoim Calvão escreveu três livros. O único que li, "De Conacry ao MDLP", é um relato essencial, pelo que diz e pelo que deixa implícito, para se entender melhor o ambiente do desastre colonial e uma certa perspetiva do período revolucionário.

* Em tempo: relevo um erro. Com efeito, o objetivo de libertar prisioneiros portugueses que estavam nas mãos do PAIGC foi plenamente atingido na operação.

Brasil

Qual dos candidatos às eleições presidenciais brasileiras poderá, à partida, ser mais favorável aos interesses que a Portugal compete defender nas suas relações com aquele país? A recondução de Dilma Roussef será preferível à hipótese de eleição de Marina Silva ou à escolha, agora cada vez mais improvável, de Aécio Neves? Este exercício é apenas teórico, porquanto o bom senso recomenda que não nos imiscuamos numa compita que, sendo profundamente democrática, terá como resultante final a vontade  de um país que, em qualquer circunstância, permanecerá no quadro da nossa atenção próxima.
 
Mas nem sempre foi assim. Durante muitos anos, a vida política interna brasileira, podendo ocupar o interesse de alguns, estava longe de constituir, entre nós, um motivo para a mobilização de opiniões. A razão por que isso mudou é interessante de ser observada.
 
Data de há cerca de duas décadas o início de um novo ciclo de intensificação das relações entre Portugal e o Brasil. No plano económico, radica na presença de capitais portugueses no processo brasileiro de privatizações. A partir daí, verifica-se também uma crescente retoma dos fluxos comerciais bilaterais. No mesmo sentido, uma "moda" brasileira instalou-se, por algum tempo, nos hábitos turísticos portugueses.
 
Depois, foram as pessoas. Portugal encheu-se de um Brasil indiferenciado, em busca de trabalho, que nos trouxe um país que as imagens das novelas nos tinha levado a pensar que conhecíamos. Uma efémera afloração de riqueza encheu entretanto de portugueses o Nordeste brasileiro, com outros a acreditarem que pelo Brasil podiam encontrar o "ouro" nos negócios fáceis. Nessas aventuras de um lado e de outro, houve coisas que correram bem, outras nem por isso. Passámos a entender melhor as nossas qualidades e os nossos defeitos mútuos. Caímos "na real", como se diz no Brasil.
 
Na política, muito dependeu sempre do modo como os dirigentes de ambos os lados se articularam. Historicamente, havia sido nos conservadores brasileiros que Portugal podia contar com os seus maiores amigos. Mas iria ser Lula da Silva, homem oriundo de outro setor, a revelar-se o nosso mais sólido apoio e a concretizar gestos de grande afetividade por nós. Daí decorreu, por exemplo, um impulso importante para o interesse empresarial brasileiro por Portugal ou um estímulo à ação da TAP, que hoje nos enche o país de turistas a falar a língua do gerúndio.
 
Mas, não nos iludamos, há muitos problemas que subsistem. Com África de permeio e a Europa em fundo, demos já passos interessantes para um melhor trabalho em conjunto, nomeadamente em torno da língua que nos junta. Mas a CPLP titubeia pela dificuldade de acomodar o gigantismo brasileiro numa estrutura luso-centrada.

Por tudo isso, não nos é indiferente quem venha a titular a voz do Brasil nos próximos tempos. Temos um candidato? Claro que sim. O nosso candidato é aquele que confira mais estabilidade, que lhe induza maior crescimento e bem-estar e que seja capaz de garantir um reforço do estatuto internacional do país. Esse é o candidato que nos interessa. Deixamos que sejam os brasileiros a escolhê-lo.

(Artigo que hoje publico no "Diário Económico")

segunda-feira, setembro 29, 2014

O Butão

Na passada sexta-feira, num colóquio em que participei, alguém referiu, a título caricatural de exemplo, as "nossas relações com o Butão".

Pude então esclarecer, também por curiosidade, que o reino do Butão continua a ser - se não estou errado - o único país membro das Nações Unidas com o qual Portugal não mantém relações diplomáticas, com a possibilidade de aí acreditar um embaixador sediado noutra capital. Porquê? Porque o Butão tem uma política muito restritiva nesse domínio, como eu próprio tive ocasião de constatar quando, sobre o assunto, desenvolvi diligências ao tempo em que trabalhava junto da ONU. Talvez os leitores deste blogue que exerceram e exercem funções como embaixadores em Nova Deli (que seria a embaixada acreditada no Butão) possam deixar, nos comentários, uma melhor explicação sobre estas reticências butanesas.

Mas a que propósito vem hoje isto? Muito simplesmente pelo facto de ontem este blogue ter tido, pela primeira vez na sua modesta história, um visitante do Butão (ver à direita, no "Flagcounter"). Seria um acaso informático ou terá sido a minha amiga Cláudia Estrela, uma arquiteta brasileira que visita às vezes o Butão, que deu um ar da sua graça? De qualquer forma, bem vindo, leitor/a do Butão!

Olhar os dias em quinze notas

1. As palavras têm um peso, mas as mesmas palavras não querem dizer exatamente o mesmo. Biden defendeu hoje a independência da Ucrânia. Puti...