”Quer a sua garrafa?” perguntou-me ontem o dono do restaurante, quando eu escolhia o que ia almoçar. “Tens garrafa aqui?”, inquiriu um amigo, na minha mesa.
Estávamos em Vila Real. A garrafa era de vinho. Era a metade que tinha ficado do meu almoço do dia anterior, também por ali. A pergunta do meu amigo, contudo, trazia água no bico, comportando uma ironia que se ligava a tempos noturnos antigos, que ele também partilhara, lá por Lisboa.
“Ter garrafa”, há muitos anos, era um estatuto, em alguns bares. As garrafas a que o conceito se referia eram de whisky. Os “habitués” ”tinham garrafa”, com o seu nome manuscrito no rótulo. Compravam-na ao próprio bar, a um preço bastante mais elevado do que o preço do mercado, mas, ainda assim, compensando face ao somatório de todas as doses individuais de uma garrafa.
Mas o importante, nesta história de “ter garrafa”, era o estatuto: “Ó Meireles, passa-me aí a garrafa do senhor engenheiro”, pedia o empregado das mesas ao Meireles ou a qualquer outro Meireles que estivesse por detrás do balcão. Isto era dito em voz bem alta, com o “senhor engenheiro”, cujo nome nem sequer necessitava de ser explicitado, a ser o alvo dos olhares circundantes. Por essa simples frase, ficava-se a perceber que o “senhor engenheiro” era um cliente regular da casa, porque só esses podiam “ter garrafa”. Nos “bares de piquenas”, a posse de uma garrafa dava um sainete das arábias.
No Procópio, o único bar onde “tive garrafa”, ainda no longínquo consulado do Juvenal, um dos mais históricos barmans de Lisboa e um bom amigo, a coreografia era bem mais discreta, nunca com vozes alteadas para a plateia. Verdade seja que o Procópio nunca foi um “bar de piquenas”, muito longe disso! No meu caso, era apenas uma maneira de poupar algum dinheiro, nesses tempos em que os meus trigliceridos não se ressentiam dos excessos. Mas, ao que me recordo, acabei por só ter por ali uma única garrafa, que rapidamente se foi...
Ontem, por coincidência, à saída do restaurante, calhou passar perto da casa onde viveu o “Antoninho do Talho”, um abastado industrial de Vila Real, com interesses que iam muito para além das carnes, mas que também as incluíam, bem como aos respetivos pecados. Na minha juventude, a sua imagem de “bon vivant” era prestigiada por um rumor nunca confirmado: “O Antoninho do Talho tem garrafa do Pasapoga!”, sendo este, ao tempo, o cabaret mais famoso de Madrid. É tarde para testar se isso tinha fundamento, se acaso o facto interessasse para alguma coisa, salvo para ilustrar esta historieta.