Ontem, num jantar de amigos de início de férias, surgiu na conversa o tema das idas ao cinema, na juventude de alguns de nós, nas salas de espetáculo de província. Falou-se de Vila Real, de Viana, de Coimbra e até de Portimão.
Para admiração da gente presente que era de Lisboa, onde os filmes se demoram por alguns dias nas salas, explicou-se que, nessas terras pequenas, eles só passavam uma única noite (havia umas matinées nos domingos, com coisas muito leves para crianças), em sessões que, em regra, ocorriam duas vezes por semana. Por esse tempo, com o pouco que então havia para fazer por aquelas localidades, e com os bilhetes, na categorias mais simples, a preços relativamente baixos, era quase de regra ir-se ao cinema nessas noites.
Contudo, havia um problema: a idade. Alguns filmes eram "para adultos", o que implicava ter mais de 17 anos. À porta, o cavalheiro que "cortava" os bilhetes, se desconfiava da nossa idade, pedia o Bilhete de Identidade.
Lembro-me que, a certa altura, comecei a ter inveja dos mais velhos, que contavam que tinham assistido às "cenas quentes" de um drama ou de uma comédia qualquer. Com pormenores que assumiam laivos de sadismo, nos dias seguintes, nos intervalos das aulas, comentavam entre si o que tinham visto na véspera. Nós, a quem a idade tinha impedido o acesso ao filme, ali ficávamos, "ougados", com alguma raiva.
Era voz corrente que o porteiro do cinema, quando exigia a identificação de alguém, só olhava o ano de nascimento - nunca o mês e a data. Um dos meus colegas, o Teixeirinha, um tipo franzino que perdi de vista há mais de 60 anos, tinha nascido no dia 29 de dezembro de 1947. Assim, desde janeiro de 1964, o Teixeirinha passou a "ter" os requeridos 17 anos. Ora eu, por um azar histórico que devia atribuir à falta de cuidado dos meus pais, tinha nascido "apenas" em janeiro de 1948. Por um mês, eu "tinha" menos um ano do que o Teixeirinha. E isso significava um imenso atraso na construção da minha base filmográfica.
Quem é mais antigo recordar-se-á que os Bilhetes de Identidade não eram plastificados e eram preenchidos à mão, desde o nome à datas e outros pormenores. Um dia do ano de 1964, com vontade de acelerar o meu acesso às delícias da maioridade, para efeitos de écrans, tomei a íntima decisão de falsificar o último algarismo do meu ano de nascimento. Sabia que o meu pai ficaria furioso de viesse a descobrir, mas decidi arriscar. Com delicada mas não muito hábil precisão, limpei com lexívia o "8" do ano e escrevi por cima um mal amanhado "7". Como, com a pressa, não tinha deixado secar bem o resultado da operação, o algarismo do crime acabou por sair um tanto borrado.
Dias depois, imagino que com um frio imenso a percorrer-me a espinha, lá fui para a fila de entrada do Cine-Teatro Avenida, para ir ver uma fita qualquer "para maiores de 17". À entrada, estava o cavalheiro do costume. Devo ter feito uma cara séria, para dar ares de mais idoso, levando o documento de identificação bem à mão. Escolhi um momento em que a fila estava densa, tentando que ele não mo fosse pedir, mas o homem não dispensou: "Tem o seu Bilhete de Identidade?" Tenso e nervoso, estendi-lhe o papel. O cavalheiro, pai de uma colega de liceu, que ali fazia um extra para arredondar o seu ordenado de funcionário das Finanças, e que aliás conhecia o meu pai, olhou para mim, sorriu discretamente e disse apenas: "Bonito 7!" E mandou-me entrar.
No dia seguinte, lá estava eu no intervalo a disputar a um perplexo Teixeirinha os detalhes sobre o filme do dia anterior. Mas a minha ousadia ficou por ali: nunca mais arrisquei enfrentar o porteiro do cinema, em filmes para adultos. Dias depois, voltei a utilizar lexívia e repus o 8. Imagino como aquilo terá ficado... E só conto isto agora porque estou certo de que o "crime" já prescreveu!
(A imagem de exemplo é de um BI dessa altura, apanhada na net)
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