quarta-feira, março 05, 2025

11 de Março - 50 anos depois

 


... não morre solteira!

Importa que o PS deixe claro que, mal tome posse a nova Assembleia da República, depois das eleições, e qualquer que seja o desfecho destas, apresentará um requerimento para a constituição de uma comissão parlamentar de inquérito, nos mesmos termos da que já tinha anunciado.

Trump


Sinto-me um pouco masoquista, mas aqui estou eu a ver e ouvir o discurso de Trump no Congresso americano. São quatro da manhã, mas não podia perder este espetáculo de egocentrismo e megalomania. Ao ouvir este discurso alucinado, sou levado a concluir que não é (só) Trump quem está doido, são os americanos que o escolheram que o estão.

terça-feira, março 04, 2025

Jean-Louis Debré


Jean-Louis Debré, que hoje morreu, foi uma figura atípica da vida política francesa. Conhecido "franc-parleur", mantinha Nicolas Sarkozy e Edouard Balladur como seus "inimigos íntimos" - e não o escondia. Ao contrário, Jacques Chirac foi um dos seus grandes amigos, uma figura a quem se manteve fiel ao longo da vida. 

Era filho de Michel Debré, uma das maiores figuras da V República. Escreveu ficção, comentou em programas de rádio e tinha sempre um "bon mot" à mão. Tem livros de memórias bastante interessantes.

Debré teve uma carreira pública relevante, como deputado, ministro do Interior, presidente da Assembleia Nacional, figura proeminente do partido gaullista e presidente do Conselho Constitucional. 

Foi nesta última qualidade que o conheci, num almoço que ofereceu ao professor Rui Moura Ramos, então presidente do nosso Tribunal Constitucional - instituição que, contudo, tem um perfil funcional diferente do Conselho Constitucional francês. 

Esse almoço foi divertidíssimo. Debré faz comentários irónicos sobre Sarkozy, contou episódios da difícil convivência entre Jacques Chirac e Giscard d'Estaing e outras histórias do quotidiano político francês. A certa altura, disse-nos: "Como toda a gente sabe que não gosto de Sarkozy, a começar por ele, seria uma hipocrisia, mesmo com a função institucional que tenho, não apenas pôr-me a dizer bem dele mas mesmo não dizer o mal que dele penso". E foi por ali adiante...

À esquerda, havia muita gente que apreciava a sua heterodoxia e, em especial, o modo elegante como respeitara os direitos da oposição, aquando da sua presidência do parlamento. Ele próprio não escondia que lhe tinha "acontecido" votar à esquerda. Era um grande figura de uma certa direita gaullista que está a acabar em França.

À saída do almoço, o seu telemóvel tocou e o som que dele saiu foi uma versão da "A Internacional". Perante a surpresa de todos, Debré explicou: decidira colocar no telefone, em relação a algumas pessoas, músicas que as identificassem. Assim, com "A Internacional", ele sabia que quem o chamava era alguém de esquerda. Revelou então que tinha a "Le Chant des Partisans" para os amigos gaullistas, creio que "A Marselhesa" para os contactos de direita e outras músicas, com menos conotações políticas, para os contactos de familiares.

Homens assim fazem falta na política. Talvez por isso o seu último livro, um verdadeiro inventário de belas blagues, não sendo uma obra-prima, revela bastante do que ele era: "Quand les politiques nous faisaient rire".

UK


Na imprensa conservadora britânica.

segunda-feira, março 03, 2025

O G20 depois de Trump


Ver aqui.

A nossa língua dos outros

É excelente que um filme em língua portuguesa vença um Óscar. O português é também a nossa língua dos outros.

"Trump e a força dos fracos"


Ver Keir Starmer e Emmanuel Macron a assumir um assinalável protagonismo, na atual crise de segurança ocidental, quando os sabemos a ambos extremamente debilitados nos respetivos cenários internos, mostra que a vida política é uma caixa de surpresas.

E deixa demonstrado que as fronteiras de uma rutura tão importante como foi o Brexit são subitamente diluídas quando "valores mais altos se alevantam", fazendo vir a jogo, mão-na-mão, os dois poderes nucleares europeus que um dia a América ajudou a cooptar para o Conselho de Segurança da ONU.

Quando muitos acusam, com óbvia razão, Donald Trump de abandonar o terreno multilateral e optar por um diálogo entre poderes, é uma ironia constatar que a Europa, nesta crise, se comportou exatamente da mesma forma: Macron impôs o Eliseu a Bruxelas e foi a Washington com ares de chefe de turma. A Europa dos 27 podia esperar ou, como diria De Gaulle, "l'intendence suit".

Aliás, na sua tumba em Colombey-les-Deux-Églises, Charles de Gaulle deve sentir-se vingado, ele que sempre achou que a excessiva dependência dos Estados Unidos reduziria a Europa a um poder vassalo de Washington.

Já agora, convém lembrar que o gaullismo, na ordem internacional, não era só isso, era também a sabedoria de um atempado sentido de relacionamento crítico com Moscovo.

Um sentimento que a Europa e a América do pós-Guerra Fria que nela se apoiou não souberam ou não conseguiram construir, assim contribuindo para o encasulamento autoritário e para o tropismo expansionista em que decantou o ressentimento russo.

Aqui chegados, e tendo a débito a patética cena na Sala Oval, que fazer, como diria o clássico? 

Em poucas semanas, a NATO ficou entre parêntesis. Era um guarda-chuva de segurança que se baseava na previsibilidade da reação americana à ameaça das fronteiras dos aliados que sob ele se acolhiam. Todo o afã demonstrado pela Finlândia e pela Suécia para aderirem tinha como objetivo poderem partilhar essa apólice de seguro.

Com a chegada de Trump, o automatismo da atitude dos EUA desapareceu. Macron teve razão antes do tempo, quando um dia disse que a organização estava em "morte cerebral". Está, pelo menos, em "coma induzido". Por esse lado, e até ver, sabemos com o que (não) podemos contar.

A Europa - e por Europa, cada vez mais, deve entender-se a União e a NATO europeias, salvo escassíssimos reticentes como Orbán - sente-se por sua conta e risco. E está a fazer rapidamente as contas aos riscos que aí vêm.

Já se percebeu que uma Euro-NATO seria uma construção a prazo e que, na tarefa imediata a que se propôs - defender esta Ucrânia -, só poderia confrontar a Rússia tendo Washington ao seu lado. E foi-lhe dito por Trump que não terá.

A fuga em frente europeia consiste em apoiar Zelensky, a todo o custo - "até ao fim", havendo leituras cínicas da expressão. E aqui pode entrar numa inevitável contradição com Trump, que já se cansou do presidente ucraniano - como um dia um seu antecessor de cansou de Yanukóvytch.

Do que nas últimas horas chega de Washington, relativamente à liderança ucraniana, fica a ideia de que não veria com maus olhos a substituição de Zelensky. Experiência não falta aos americanos para este tipo de operações e Maiden lá está para o que der e vier.

O que se passou entre Trump e Zelensky, à vista de todos nós, não facilitou a vida à Europa. Trump sabe que, em grande parte, se deve ao conforto político europeu o facto de o líder ucraniano manter um maximalismo de objetivos. Por isso mesmo, a sua irritação com o "desplante" de Zelensky é também um ralhete para quantos apoiam a sua recusa de aceitar uma solução "realista".

Trump entende que a Ucrânia já perdeu a guerra e que ela, no fundo, terá nascido da sua ambição de integrar a NATO. Ainda não foi ao ponto de comprar o argumento de que a expansão da NATO a Leste esteve na origem última desta tensão, mas já não anda longe disso. No essencial, Trump absolve a Rússia nesta guerra.

Ele parece pensar que, se Kiev vier a ceder às ambições territoriais de Moscovo, isso apaziguará a Rússia e permitirá a preservação da independência do país, com um estatuto neutral, uma espécie de protetorado europeu, cuja reconstrução competirá naturalmente aos europeus pagar.

Ao contrário de Zelensky, que quer garantias visíveis de segurança para o caso de ter de ser forçado a ceder solo à Rússia (e o subsolo aos Estados Unidos), Trump acha que a palavra de Putin lhe basta, porque entende - e este é o ponto essencial - que a Rússia só teme os EUA. E que, se Putin lhe prometer algo, ficará preso a esse compromisso para não ter de vir a afrontar o poder americano.

No tocante à Europa, Trump também "confia" em Putin e não parece ser minimamente sensível à doutrina, que hoje faz caminho nos corredores do medo europeu, de que a Rússia é uma ameaça iminente. Mas deixa intuir que, se a Europa persiste nesse temor e quer continuar a dispor do chapéu nuclear americano, deve contribuir bem mais para o "burden sharing" e dotar-se de melhor equipamento militar, dos EUA claro. Só lhe falta dizer: "comprem americano" e não assumam posturas comerciais agressivas quanto a Washington.

Trump não dura sempre, pensarão alguns. Pois não. Pode vir aí J.D. Vance. Gostam mais?

(Artigo publicado a convite do "Público")

domingo, março 02, 2025

Toda a gente?

Nos últimos dias, toda a gente fala do caso Montenegro e das suas repercussões para a estabilidade política do país. Toda a gente? Bom, bem vistas as coisas, nem toda ...

Ai se fosse o PS ...

Sei como funcionam as televisões, em face de um acontecimento como o de ontem. Mas ver todos - repito, todos - os canais de notícias a receberem ministros, a debitar os "eléments de langage" fornecidos por S. Bento, não foi uma coisa muito decente. Tivesse sido com PS e era o bom e o bonito!

Ainda a cena da Sala Oval

Ver aqui.

Com adversários assim...

Em Portugal, a inabilidade da esquerda é tanta que permite que a direita transfira para ela a responsabilidade das suas próprias crises. 

Já agora...

Já agora, para os que andarem distraídos com a Ucrânia, convém lembrar que Israel retomou os ataques na Faixa de Gaza. Não há nada como um comboio para esconder outro.

Há malas que vêm por bem...

A brincar, a brincar, com esta malapata do primeiro-ministro, já ninguém se lembra das malas do Arruda...

Alguém pode explicar ?

É minha impressão ou as regras aplicáveis às bicicletas, isto é, o código da estrada - como a proibição de conduzir contra a mão, a necessidade de terem luz à noite, etc - deixaram de ser obrigatórias? E os motociclos já podem "furar" livremente entre os automóveis? É mesmo assim?

... vê-se o mundo!

 


sábado, março 01, 2025

Trapalhadas


O primeiro-ministro tem toda a razão: o país não quer eleições. Mas ver Luís Montenegro no cenário de São Bento, rodeado do seu elenco lúgubre de prosélitos, trouxe-me à memória uma cena idêntica com Santana Lopes. É que o país, uma vez mais, também não quer "trapalhadas". E estas foi Montenegro quem as criou - só ele e mais ninguém!

... várias famílias


Em outros tempos, os jornais, quando queriam assinalar que tinham feito algo indo ao encontro da vontade expressa por alguns leitores, diziam que o faziam "a pedido de várias famílias".

Não foram várias famílias mas foram diversas vozes que, ao longo dos últimos três meses, me foram solicitando que voltasse a admitir a publicação de comentários. Ao que parece, há algumas pessoas que acham graça àqueles textos. Não sei quantas, dado que, desde que os comentários deixaram de ser publicados, os leitores do blogue aumentaram. Ele há cada mistério!

Mas, pronto, vamos fazer uma nova experiência. Só peço que sejam moderados no tom dos textos, para que isto possa ser um lugar sereno e amigável.

quinta-feira, fevereiro 27, 2025

O alibi


Sabia que o Luís Castro Mendes era um diplomata "de truz". Só não o sabia tão pérfido. Decidou marcar o lançamento do seu último livro para as 19.00 horas de hoje, no Grémio Literário, na rua Ivens, quando ele sabia, de ciência certa, que hoje iria estar um dia infernal de chuva.

Este é um conhecido truque! É assim que o Luís faz a separação das águas (neste caso, da chuva), é deste modo que ele seleciona os (verdadeiros dos falsos) amigos! 

Quem não tem pachorra para arrostar com a intempérie e meter-se no trânsito do Chiado vai argumentar que está com uma constipação "de caixão à cova". Os mais ousados vão dizer que estão com Covid. Outros justificarão a falta porque lhes chegou uma prima de Mirandela, atulhada de alheiras, à gare do Oriente.

O meu argumento para justificar a falta é, infelizmente, bastante mais frágil: disse ao Luís que, como antigo embaixador em França, tinha sido convidado para jantar esta noite com Macron, no palácio da Ajuda. Sendo isto embora pura verdade, ouvi o Luís, céptico, do outro lado da linha, responder: "Ai é?! Dá beijos nossos à Brigitte!" 

Derei, descansa!, Luís! 

Isto está um inferno! Já não há bons alibis!

quarta-feira, fevereiro 26, 2025

Conversa na SIC Notícias


Ver aqui.

Não é fácil explicar...


Há dias para a História. Ver os EUA (e Israel) a votar na ONU ao lado da Rússia, da Bielorrússia, da Guiné-Equatorial e da Coreia do Norte contra a Ucrânia foi um momento único. Se ainda desse aulas de Relações Internacionais, ia ter muito trabalho para explicar isto aos alunos.

terça-feira, fevereiro 25, 2025

A ver a vida passar

A cada dia que passa, com a deriva americana em crescendo, a Europa transforma-se numa impotente espectadora do seu próprio destino.

Centaur Club


Um grupo de fãs das sagas de Blake & Mortimer, a genial banda desenhada de Edgar P. Jacobs, decidiu criar em Lisboa o "Centaur Club", uma tertúlia cujo nome foi inspirado pela agremiação londrina tornada famoso no album "La Marque Jaune".

Por ora, o grupo, cujas futuras admissões passarão por rigorosos critérios de seleção, tem apenas quatro integrantes. As agendas dos respetivos encontros serão pontuadas por aprofundadas reflexões em torno das figuras mais marcantes do mundo de Jacobs. O inesquecível coronel Olrik ocupar-nos-á, naturalmente, a primeira reunião.

A vida é demasiado curta para que a gastemos em torno de coisas excessivamente sérias e graves, como dizia o meu colega Steinbroken, personalidade que também merecia que alguém lhe dedicasse uma tertúlia.

segunda-feira, fevereiro 24, 2025

Repita lá!

Quando ouço alguns políticos, um pouco por todo o mundo, dizer que estarão com a Ucrânia até ao fim, interrogo-me sobre o que isso realmente pode querer significar.

"Deutschland über alles!"


Como as sondagens há muito indicavam, o partido de extrema direita AfD, Alternativa para a Alemanha, obteve um excelente resultado nas eleições legislativas de domingo. Não vai ter possibilidade de entrar no futuro governo, mas o seu peso político está em crescendo, como em crescendo está o receio europeu de ver aproximar-se do poder, na Alemanha, uma força que não esconde a nostalgia por um passado que trouxe a tragédia e a devastação ao continente.

Por estes dias, tenho-me lembrado muito de uma pessoa cujo nome nunca soube, que só vi creio que menos de uma hora, vai já para seis décadas. Alguém que já deve ter morrido há muito, mas que deixou em mim uma imagem impressiva. 

Este é um episódio que creio que já aqui contei, mas que agora me apetece repetir, depois do que passou nestas eleições alemãs.

Nesse final dos anos 60 e nos inícios de 70, passeei algumas vezes à boleia pela Europa, chegando até aos países nórdicos. De uma delas, tendo saído da Bélgica, eu atravessava a Alemanha, dormindo em vários locais. Já não recordo qual era a cidade alemã onde, naquele dia, eu pretendia chegar. 

Sei apenas, de certeza segura, que o nome da localidade estaria escrito, em grossas letras, numa página branca de um grande bloco de argolas, preservado dentro de uma cobertura plástica transparente, para evitar uma eventual chuva. Tenho saudades de quando era assim imensamente organizado...

Eu estaria, ao que recordo, à entrada de uma autoestrada. A certo passo, parou um automóvel, conduzido por um cavalheiro que à época achei ser já bastante idoso. Num inglês algo macarrónico mas suficiente para uma conversa simples, confirmou o meu destino e convidou-me a entrar para o seu carro.

Coloquei a mochila no banco traseiro e sentei-me ao seu lado. Nesse instante, dei-me conta de que era uma pessoa que não utilizava os pedais da viatura, que tinha uma acentuada deficiência física. Vi que tinha manípulos junto do volante, para acionar o acelerador e o travão. 

Terá sido porventura o olhar menos discreto que deitei para tão pouco usuais instrumentos que levou o meu disponível transportador a explicar que havia sido ferido na Segunda Guerra, como soldado da Wehrmacht na frente leste. "Foram os russos que me fizeram isto", disse, com uma voz cortante, para logo acrescentar: "E foram também os russos, durante a invasão do meu país, que mataram a minha mulher". 

Estava feita, dessa forma simultaneamente simples e brutal, a sua apresentação. Não recordo pormenores da minha reação, talvez porque houvesse muito pouco que eu pudesse dizer, em face da tragédia que afetara, de forma tão marcada e definitiva, a vida aquele homem. 

O tempo que então atravessávamos era de plena Guerra Fria, havia ainda o Muro e as duas Alemanhas. Os russos e a sua visível influência estavam por muito perto, a escassas centenas de quilómetros.

Perguntou-me de onde eu vinha. Ao ouvir o nome de Portugal, vi surgir-lhe na cara um esgar feito sorriso, creio que o único que lhe detetei em toda a viagem. "Você é de um país que tem a sorte de ter tido Salazar no governo. Como a Espanha tem, com Franco".

Comecei a perceber "do que a casa gastava". Mantive uma "cara de poker", terei dito umas banalidades factuais e preparei-me para uns minutos de convívio menos fácil. Por mim, a última coisa que me interessava era uma discussão política. Não me apetecia fazer teatro, mas também não queria irritar o homem, que se prontificara a levar-me no seu carro.

Ao ter ali ao lado um cidadão do país de Salazar, uma figura que muito apreciava, sentiu-se estimulado a continuar a falar contra os russos, contra o comunismo, mas também, na sua política interna, contra o executivo da "grande coligação", entre os cristão-democratas da CDU e os social-democratas do SPD, que então governava em Bona. 

Uma sua "bête noire" era o então MNE Willy Brandt, que ele achava "um traidor", um esquerdista "vendido aos vermelhos". Ora eu, à época, até considerava Brandt um excessivo moderado, e a expressão "social-democrata" que o definia melhor do que a ninguém, tinha, no jargão político-radical do país político que eu então frequentava, uma sonoridade muito pouco positiva. Assim, por  proverbial prudência, evitei produzir o mínimo comentário que pudesse potenciar a raiva que jorrava do discurso prolixo e incessante do meu interlocutor.

"Mas isto vai mudar, em breve, você vai ver! Aqui na Alemanha, estamos a organizar um novo partido, o NPD, e vamos dar a volta a isto. Um destes dias, vamos acabar com esses vermelhos e criar um regime novo. A Alemanha é um grande país. Temos de resgatar a nossa memória e deixar de ter complexos quanto ao regime que tivemos durante a guerra, que só foi derrotado pela aliança entre as democracias corruptas do ocidente e os bandidos comunistas. Vou hoje para uma reunião do NPD onde, com alguma gente que combateu na Wehrmacht, mas também já com muitos jovens patriotas, estamos a preparar o futuro. Os Brandts e estes traidores que nos governam vão ter a devida lição".

Importa lembrar, chegado a este ponto, que o NPD foi um partido neonazi criado em 1964, que nunca conseguiu fazer-se eleger para o parlamento federal, mas que chegou a estar representado em assembleias estaduais. A sua influência foi sempre muito diminuta na política alemã e alguma radicalização da conservadora ala bávara dos cristão-democratas, a CSU, de Franz-Josef Strauss, terá contribuído para esse inêxito. A AfD na qual ontem votou um em cada cinco alemães, é o herdeiro do NPD a que o meu companheiro de viagem estava ligado.

Uma viagem que estava a ser-me bastante incómoda. Eu olhava a estrada, mantinha-me o mais silencioso que podia, enterrado no banco do automóvel, desejoso que aquilo acabasse rapidamente, um pouco perturbado por aquele insólito encontro com uma Alemanha que apenas pelos jornais sabia que existia. 

Num certo momento, num cruzamento, numa zona urbana, tive uma inspiração: disse-lhe que, afinal, tinha mudado de ideias e que ficaria por ali, mudando os meus planos de percurso. Parou, eu retirei a mochila do banco de trás, agradeci a amabilidade da boleia e ele desejou-me umas férias felizes no seu país.

Quando fiquei sozinho, antes de repensar o novo trajeto, devo ter matutado que levava daqueles penosos minutos uma boa história para contar à família e aos amigos. Nunca pensei que viria a pô-la numa coisa chamada blogue.

Hoje quase ninguém anda à boleia, mas começa a haver muitos mais neonazis e gente congénere por aí.

domingo, fevereiro 23, 2025

À mesa


Sou produto de duas práticas familiares. 

Tenho na minha memória que o ramo da minha família paterna, de Viana do Castelo, cultivava uma leitura meramente utilitária da mesa. Em casa da minha avó (o meu avô tinha morrido há muito, em 1925), ia-se para a mesa exclusivamente para comer e saía-se dela logo que a refeição estivesse concluída. A conversa era, naqueles minutos, um pano de fundo meramente acessório à função. Imagino que, com o irrequietismo de criança, esse regime me devia agradar bastante: nunca vi um miúdo ter gosto em ficar muito tempo à mesa.

Em casa dos meus avós maternos, o registo era precisamente o oposto. A mesa era o lugar para comer, mas também para ir conversando. O meu avô, figura patriarcal que deixou a sua carreira judicial para poder viver próximo da família, em Trás-os-Montes, era adepto da boa conversa pós-prandial, com o café, parentes e amigos. Lembro-me muito de belas noites de verão na Casa do Pereiro, em Bornes, em que familiares vizinhos iam chegando e se juntavam a quem já estava à mesa. E de outros serões, no inverno, em Vila Real, juntando os filhos à conversa, à mesa de jantar, muito depois deste, com queijo, salpicão, bola de carne e outras vitualhas a adubarem o prolongamento do convívio, com um chá no fim.

O meu pai, tributário da primeira cultura, creio que sobrevivia com algum esforço à segunda. E como, durante bastantes anos, eu e os meus pais vivemos com os meus avós maternos na mesma casa, imagino que ele tivesse de fazer um sacrifício para se adaptar ao ritmo ditado pelo sogro, com o qual, aliás, tinha uma relação excelente. 

Na leitura familiar, vinda de Viana e que a minha mãe partilhava, o meu pai sofria do "nervoso dos Costas", uma espécie de impaciência endémica que a tradição diz caraterizar-nos, uma agitação que, o mais das vezes, nos leva a uma exagerada intolerância ao convívio com figuras que se revelem menos interessantes, um diplomático eufemismo para chatos.

Reconheço que herdei esse último tropismo, mas sou também fruto da escola da conversa à mesa. Estou, assim, no meio das duas tradições familiares. Gosto de ficar à mesa quando a conversa me agrada, estou "em pulgas" para dali zarpar em outras circunstâncias. 

Por que razão falo disto agora? Porque, na noite de ontem, com um casal amigo, estivemos à conversa, à mesa de um restaurante, durante nada menos do que quatro horas. Isso mesmo! E só fomos andando quando percebemos que, nas mesas ao lado, já tinha havido dois turnos de serviço e os empregados começavam a olhar-nos de viés. 

À saída, pensei no meu pai e na expressão que ele sempre me atirava à cara quando me via perder horas em restaurantes, andar quilómetros para fazer uma experiência gastronómica, gastar dinheiro que talvez me fizesse falta para outras coisas em lautas refeições com amigos: "Isso é uma inferioridade". 

Levava sempre essa risonha crítica à conta de ele ser um pisco a comer e um pouco forreta com os gastos. Na noite de ontem, dei comigo a imaginar o que ele teria pensado das horas que gastei a alimentar a conversa e o corpo. E tive muita pena por já não lhe poder ouvir o remoque.

sábado, fevereiro 22, 2025

Francisco


Tem sido um imenso gosto conhecê-lo, caro amigo do mundo.

Adriano Jordão


A imagem é do belo teto do salão nobre da Câmara Municipal de Lisboa. Colhi-a ao final da tarde de ontem, durante a atribuição a Adriano Jordão da medalha de Mérito Cultural, por iniciativa do presidente no município, Carlos Moedas. Achei que ficava aqui bem.

O salão transbordava de amigos e admiradores de Adriano Jordão. Carlos Moedas disse palavras muito justas, Adriano Jordão respondeu com memórias tão detalhadas que justificariam um livro interessantíssimo. Vou tentar convencê-lo.

Durante muitos anos, para mim, Adriano Jordão era apenas o nome de um pianista bastante conhecido. Um dia, no final de 1985, ao descer a Avenida Álvares Cabral, deparei com um cartaz da campanha presidencial de Mário Soares em que figurava a cara de Adriano Jordão, como seu apoiante. Estranhei, dado que o sabia ligado ao PSD. E não estava enganado: Adriano Jordão acabaria expulso do partido por ter feito a opção pública de apoiar Soares, em detrimento de Freitas do Amaral. Com o tempo, vim a perceber que, para ele, as pessoas contam muito mais do que a política.

Quinze anos passaram e, numa noite de 2000, na Roménia, durante uma visita de Jorge Sampaio, conversei pela primeira vez longamente com Adriano Jordão, que havia sido convidado a fazer um concerto na capital romena, integrado nessa deslocação oficial. 

Creio que foi então que concluimos que havíamos feito o serviço militar ao mesmo tempo, com o 25 de Abril pelo meio - um tempo militar que Adriano Jordão ontem recordou como tendo sido um privilégio na sua vida, e eu só posso concordar. Depois dessa noite de Bucareste, fomo-nos encontrando a espaços.

Até que o vim a cruzar de novo, integrado na equipa que, em janeiro de 2005, herdei do meu antecessor, António Franco, na nossa embaixada em Brasília, onde o Adriano era conselheiro cultural.

Nunca fui - dizem as "más línguas" - um chefe fácil. Julgo que o Adriano experimentou, logo no início, a minha exigência, a minha "pressa", o pedido das coisas "para ontem". Mas rapidamente percebi que ia ter no Adriano Jordão, não apenas um colaborador leal, mas um parceiro empenhado, criativo, com uma vontade de fazer coisas, muitas e bem. E com muito "bom feitio" no trabalho, ao contrário de mim.

O Adriano era uma figura popularíssima em Brasília, muito prestigiado como personalidade e operador cultural, integrado na capital brasileira como muito poucos diplomatas o conseguiam ser. Simpático, educado, sociável, a sua residência, onde o piano tinha um lugar central, era uma das "casas abertas" de Brasília. 

A liderança que praticava na delegação local do então Instituto Camões, com meios escassos que ele "multiplicava", refletia-se junto dos nossos consulados. O Brasil é imenso, a nossa capacidade de promover e apoiar iniciativas fica sempre a anos-luz das necessidades. Mas sempre vi o Adriano Jordão ir aos limites do impossível.

No que me tocava, como embaixador, o trabalho desenvolvido pelo Adriano Jordão acabou por ser, em absoluto, fundamental para projetar a imagem cultural da embaixada que eu pretendia fixar. O auge dessa ação terá sido conseguido em 2007, durante o semestre da nossa presidência da União Europeia. A imensidão de iniciativas que conseguimos montar, com grande êxito, só foi possível pela dedicação extrema do Adriano Jordão, pela sua habilidade, pelas portas que conseguia abrir,  pelo método "sopa da pedra" que utilizava - fazer muito com o pouco que tínhamos. Até um "zepellin" ele inventou, com as cores da nossa presidência, para subir no céu de Brasília nos locais onde organizávamos eventos. 

A partir desse período de convivência no trabalho em comum, de um colega na embaixada, o Adriano transformou-se num grande amigo. E é muito bom vermos o mérito dos amigos reconhecido, como ontem aconteceu.

NATO

A NATO está em risco? Não e sim. Não chegámos ao ponto dos EUA desmantelarem a coordenação de forças e é pouco provável que o façam. Mas o valor político-militar da NATO, a certeza do "chapéu" de defesa através do seu artº 5, isso já se desvaneceu imenso. Esse é o grande risco.

quinta-feira, fevereiro 20, 2025

Cinco anos depois...


(19.2.25)

Caso EDP. Investigação a Seixas da Costa foi arquivada por falta de indícios

Ministério Público não encontrou qualquer indício de irregularidade do embaixador na linha de investigação relacionada com a construção da barragem do Foz Tua


O Ministério Público não viu qualquer indício criminal na atuação de Francisco Seixas da Costa no chamado caso EDP e arquivou a investigação aberta contra o antigo embaixador de Portugal em França. Isso foi comunicado pela Procuradoria-Geral da República a Seixas da Costa por carta.

“A acusação proferida no final de outubro de 2024 no referido inquérito 184/12 não respeita a qualquer facto que envolva V.Exa.”, lê-se na missiva a que o Observador teve acesso.

Tal como o Observador noticiou em junho de 2020, os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto tinham aberto uma linha de investigação relacionada com uma alegada intervenção do embaixador junto da Unesco para que não fosse feita em 2012 uma recomendação da suspensão da obra da barragem do Foz Tua.

A investigação que levou ao arquivamento. Seixas da Costa nunca foi ouvido

Num despacho dos procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto, datado de junho de 2020 e então consultado pelo Observador nos autos do caso EDP, era claro que o MP suspeitava dessa alegada intervenção e o facto de Seixas da Costa ter sido nomeado administrador não executivo da EDP Renováveis em 2016 — numa altura em que António Mexia era o presidente daquela subsidiária da EDP e João Manso Neto o vice-presidente.

Certo é que os procuradores nunca sentiram necessidade de ouvir o embaixador sobre esses indícios.

Em declarações ao Observador em junho de 2020, Seixas da Costa refutou qualquer incompatibilidade ou conflito de interesses entre a sua atividade como diplomata e o convite para a administração da EDP Renováveis. Afirmando-se “pronto, e de consciência absolutamente tranquila, para dar todos os esclarecimentos que me vierem a ser pedidos”, o ex-embaixador classificou a suspeita do MP como “uma insinuação inqualificável.”

Por escrito, Seixas da Costa explicou então que apenas foi representante do Estado português junto da Unesco por “escassos meses”, e no contexto da austeridade orçamental imposta do Governo de Passos Coelho que o obrigou a acumular o cargo de embaixador em Paris com a representação de Portugal naquele organismo internacional.

Seixas da Costa pormenorizou ainda que a ministra Assunção Cristas informou-o em 2012 que, caso a Unesco levasse avante a sua recomendação de suspender a obra da barragem do Foz Tua, isso poderia implicar o pagamento “à concessionária, a EDP, uma verba orçada em cerca de 400 milhões de euros. Era-me pedido que tentasse negociar com a Unesco uma fórmula que permitisse a continuidade dos trabalhos, até que uma nova missão pudesse apreciar se os trabalhos de correção eram suficientes para acomodar as preocupações da Unesco.”

Tudo porque esta organização das Nações Unidas poderia, em última instância, retirar o “estatuto do Douro como património mundial” — uma classificação fundamental para a economia da região.

Seixas da Costa diz que se limitou a seguir as ordens do Governo, conseguindo com que a nova missão da Unesco viesse a Portugal, recomendando várias melhorias que foram executadas. “Uma dessas melhorias, recordo-me, foi o ‘enterramento’ da central elétrica, obra que, há pouco tempo, valeu um prémio arquitetónico ao arquiteto Souto Moura”, recorda o ex-embaixador que abandonou a carreira diplomática pouco depois disso.

Por outro lado, o ex-embaixador enfatizou ainda que o convite para administrador não executivo da EDP Renováveis como elemento independente “surgiu anos mais tarde, quando a minha experiência de administração em outras empresas já tinha mais de três anos”, como a Jerónimo Martins e outras sociedades.

Por isso mesmo, acrescentou, “constitui-se uma insinuação inqualificável que tal convite possa estar ligado ao trabalho que, em nome do Estado português e para defesa dos interesses desse mesmo Estado” o então embaixador desenvolveu junto da Unesco.

“Quem isso possa insinuar demonstra não ter o menor respeito pelo percurso profissional de quem dedicou, no seu todo, mais de quatro décadas ao serviço público, a cujo topo profissional chegou por mérito que nunca viu contestado, e que foi reconhecido pela mais elevada condecoração que um servidor público pode ambicionar”, afirma.

(Consultar o link aqui)

quarta-feira, fevereiro 19, 2025

Árabes


Chegou-me agora a notícia de que existe, na Torre do Tombo, uma "informação de serviço" por mim escrita, com 53 páginas (!), historiando as relações económicas entre Portugal e os Países Árabes (1970/1976). Estaria nos documentos de Melo Antunes. Não sabia que este tipo de trabalhos era conservado! Imagino que deva ser um texto chatíssimo! 

Língua portuguesa



Tive muito gosto em aceitar o convite que me foi formulado pelo jornal "Público" para participar, como orador, na conferência internacional "Da minha língua vê-se o mundo", que terá lugar no Centro Cultural de Belém, no próximo dia 5 de março.

terça-feira, fevereiro 18, 2025

Chinesices

É interessante a atitude chinesa ao afirmar que a Europa deve fazer parte das conversas sobre o futuro da Ucrânia. Marca uma distância face aos EUA e faz um gesto simpático para Bruxelas, neste tempo europeu de orfandade estratégica.

UE

A declaração de Moscovo de que não vê inconveniente numa adesão da Ucrânia à União Europeia, desde que excluída a adesão à NATO, é reveladora de que se conforma com uma Ucrânia (o que dela ficar) independente. Lembremos que, há três anos, tentou "bielorussificá-la".

Regra

Em diplomacia, em regra, não se improvisa. Dois líderes não se encontram para negociar, reunem-se para confirmar aquilo que, no essencial, já ficou acordado, a montante dessa reunião, e que cabe a eles anunciar. Toda a regra tem exceções, mas esta é a regra.

Fezadas

A sério que percebo a dimensão emocional da despedida de Pinto da Costa. Mas não percebi aquela cena de um bispo rodeado de taças no meio do relvado. Um pouco mais de contenção não faria mal à nossa igreja. Embora eu saiba que o mercado da fé não anda fácil...

"La Negra"


Vinha meio adormecido no banco de trás do Uber, de regresso a casa, ao final da tarde de ontem, depois de um dia intenso, com um sismo pelo meio. A voz que saía, límpida, da aparelhagem do Tesla, era-me familiar. O motorista, cuidadoso, talvez tendo notado o meu cansaço, tinha posto o som baixo. 

Perguntei-lhe: "Quem está a cantar?" Pelo retrovisor vi surgir-lhe um sorriso, ao dizer: "Es la Negra". O sorriso aumentou de expressão quando retorqui: "Mercedes Sosa?" O homem quase ia largando o volante, ao perguntar: "Conoce usted a Mercedes Sosa?" 

Era um chileno e devo ter subido logo uns pontos na sua consideração quando lhe disse: "Eu vi cantar Mercedes Sosa, "la Negra", há bem mais de trinta anos. Mas não me lembrava dessa canção".

Entretanto, com um pouco de conversa à mistura, cheguei a casa, com o motorista a despedir-se, visivelmente encantado por se ter cruzado com alguém que conhecia e gostava de "La Negra". 

Lembrei-me então do "meu" Chile.

O golpe militar que derrubou o governo de Allende, no Chile, em 11 de setembro de 1973, teve um forte impacto emocional na geração política portuguesa que, por cá, expressava então a sua revolta contra a ditadura. À época, eu fazia serviço militar e recordo bem acesas discussões por ali tidas com colegas conservadores, que se regozijaram com o êxito de Pinochet e dos seus esbirros. Acreditam se lhes disser que um deles me telefonou na manhã de ontem?

O 25 de Abril como que nos vingou e foi com um sentimento de forte solidariedade que, em Lisboa, a partir de 1974, viemos a conhecer alguns chilenos que haviam sido forçados ao exílio. Com eles, partilhámos o sucesso da nossa Revolução. Recordo-me de gente do MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria), com quem passei horas à conversa nas instalações do MES (Movimento de Esquerda Socialista), na avenida dom Carlos.

Seis anos mais tarde, no meu primeiro posto no estrangeiro, na Noruega, vim a cruzar outros chilenos, expatriados nas mesmas condições. Os países nórdicos acolhiam então com generosidade essas pessoas, a quem facilitavam meios para a sua sustentação. A vida dessa gente era muito simples: empregos em fábricas ou serviços, habitações sem o menor luxo e, como pano de fundo de tudo isso, um ambiente de imensa saudade do seu país.

Um dia, em Oslo, fomos assistir a um espetáculo musical da argentina Mercedes Sosa, conhecida por "La Negra", uma cantora que, ao longo da vida, seria uma das vozes mais críticas das ditaduras militares latino-americanas. O seu "Gracias a la vida" marcava-nos então bastante.

Fui ao espetáculo num grupo de diplomatas, que, além de espanhóis e de um brasileiro, integrava um chileno, casado com uma paraguaia, e um casal colombiano. As questões políticas não atravessavam, por regra e por prudência, a conversa de todas aquelas pessoas, jovens profissionais da diplomacia, todos no seu primeiro posto no exterior, que se iam encontrando em agradáveis convívios ao final do dia de trabalho. 

Lembro-me que, à época, eu era, com toda a certeza, a pessoa mais à esquerda de todo aquele grupo, sendo que o chileno, que se chamava Enrique, representava ali o governo de Pinochet. Curiosamente, ambos ficámos amigos para a vida, sem termos tocado alguma vez em temas que pudessem trazer à tona as nossas óbvias divergências. Nas décadas profissionais que se seguiram, vim a apurar esta forma de estar na vida. Ainda hoje tento funcionar assim.

No final do espetáculo, vi os meus amigos latino-americanos a falarem com outras pessoas com a mesma origem geográfica, que ali tinham acabado de conhecer, todos unidos pela voz e pela música de "La Negra". Com o meu "portuñol", meti-me na conversa. E, numa dessas sintonias caídas do acaso, vi-me a trocar impressões com um chileno, que, no passo da conversa, me referiu ser um exilado. 

Era um homem magro, alto, de cabelo comprido, com maneiras suaves. O nome de Allende veio com naturalidade à baila, e ele revelou-me ser irmão da mítica "Payita", secretária de Salvador Allende. Num instante, alguma sintonia ideológica se estabeleceu entre nós. Trocámos telefones e, dias depois, o Fermin, era esse o nome do meu novo amigo chileno, convidou-me, a mim e à minha mulher, para uma almoço simples, num domingo, em sua casa. 

Vivia num modesto apartamento, numa zona menos nobre de Oslo, a que se acedia por uma escada esconsa. Lembro-me bem do aviso que me fez, logo que entrei na casa: "Daqui a pouco, vai chegar, para o almoço, o Enrique, o teu colega da embaixada do Chile. Não te espantes!" Eu espantei-me um pouco, confesso, mas ele logo explicou: "Ele é um chileno como eu e nem imaginas como me fará bem conversar com alguém que também vem do meu país. Temos de adiar a conversa política entre nós os dois para "unas copas", numa outra ocasião". 

E assim aconteceu. Minutos depois, chegaram o Enrique e a Monse. A política, quiçá estranhamente, não passou por aquelas horas em que a saudade dos dois foi atenuada por algumas garrafas de "Casillero del Diablo", um vinho assim-assim trazido pelo Enrique, o único álcool chileno que havia à venda no monopólio estatal de venda de bebidas alcoólicas, Vinmonipolet.

Se hoje tenho uma invejável colecção dos "Rolling Stones", em vinil, devo isso ao Fermin, um amigo magnífico, um revolucionário romântico, cujo partido esqueci, que trabalhava numa fábrica de discos e insistia em me municiar regularmente com exemplares do que ia saindo. Até rock norueguês tenho! Em algumas noites em minha casa, para as quais cuidávamos em não juntar à festa o diplomata chileno, para podermos conversar sobre as nossas afinidades políticas, ouvimos deliciados Violeta Parra e Victor Jara. E, para sempre, guardei a imagem de vê-lo chorar a escutar Zeca Afonso...

Pela vida, com grande pena minha, fui perdendo contacto com imensas pessoas que conheci. Uma delas foi esse meu amigo chileno Fermin, que conheci na Noruega, no final de um concerto de Mercedes Sosa, cuja voz acabei de ouvir, há pouco, num Uber conduzido por um chileno a quem nem sequer tive tempo de perguntar o que pensava do atual presidente Boric. Nem de Allende, claro. Se calhar, foi melhor assim!

Descubra as diferenças

É de facto chocante ver os EUA e a Rússia decidirem o futuro da Ucrânia, na sua ausência. Mas já pensaram bem no modo como o futuro do mundo foi decidido em Ialta, ou nos acordos sobre os outros que América de Reagan negociou com a União Soviética? Foi mesmo muito diferente?

segunda-feira, fevereiro 17, 2025

Papa

Agora, só faltava que nos viesse a faltar o papa Francisco e, numa daquelas rotatividades em que o Vaticano é useiro, saísse na sair na rifa um papa "reaça", mais ou menos a rimar com o poder na América. Já vi esse filme no passado e não gostei.

Ucrânia

É de um mínimo de bom senso que as tropas que possam vir a ser colocadas na Ucrânia, num cenário de pós-conflito, como forças de interposição, sejam oriundas de países que não tenham estado abertamente envolvidos no apoio militar a uma das partes.

Contudo, numa circunstância em que tiver sido acordada a necessidade de dar garantias de segurança ao governo de Kiev, é lógico que essa responsabilidade compita aos países que têm apoiado a Ucrânia. Mas isso não justifica ter tropas de Estados NATO com "boots on the ground".

A uma eventual Ucrânia neutral (como o é a Áustria, que não se fala que tenha ambições de entrar para a NATO) deveria, como garantia do respeito de terceiros por esse seu estatuto, ser fornecida uma proteção militar dissuasória de potenciais agressões externas. 

Aviso aos chatos

Bloquearei qualquer chato que ouse tentar dizer onde estava à hora do sismozito de hoje, como se aquilo fosse o atentado às torres gémeas, o incêndio do Chiado, a morte de Sá Carneiro ou, para os avós, o tiro no Kennedy.

Alguns

A cimeira europeia "de alguns", hoje promovida por Macron para reagir a Trump, vai contar com a extrema-direita de Georgia Meloni, que já foi ao beija-mão a Mar-a-Lago, e com o trabalhismo "ma non troppo" de Keir Starmer, que saltita de lealdades entre ambos os lados do Atlântico.

Lenin revisitado

Ontem, o presidente da Finlândia, Alexander Stubb, um país com uma geografia trágica mas muito sábia, a propósito dos frenéticos dias que o mundo vive, abalado pelas "novidades" que Trump não cessa de nos trazer, relembrou uma frase clássica de Lenin: "Há décadas em que nada acontece e há semanas em que acontecem décadas".

As balas de Tchaikovsky

Ontem, enquanto assistia a uma interpretação de uma obra de Tchaikovsky, lembrei-me da estupidez sectária que, em alguns países, proibiu (e não sei se ainda proibe) a exibição da obra deste e de outros compositores clássicos russos, na sequência da guerra na Ucrânia. Caso idêntico seria se, depois da carnificina ocorrida em Gaza, se viesse a gerar um movimento censório em torno das inúmeras manifestações de genialidade - artísticas, científicas ou outras - com que muitos cidadãos judeus têm contribuido para a cultura universal. O concerto de ontem, com a obra de Tchaikovsky como um prato forte, foi executado pelo pianista Yefim Bronfman, judeu, cidadão israelita e americano, nascido na antiga União Soviética. O bom senso deve acompanhar sempre o bom gosto.

domingo, fevereiro 16, 2025

O tempo dos reféns


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Os difíceis dias da Ucrânia


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Trump, a Europa e a Inteligência Artificial


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O outro concerto


Há interessantes sonoridades repetitivas, quase minimalistas, às vezes com dissonâncias bem imaginativas, roçando um inesperado concretismo, na resultante do trabalho do afinador de pianos, no intervalo do concerto. Sem aplausos, perante um público distraído. Nunca perco.

A União e os "principais"

Macron vai reunir amanhã em Paris "os principais países europeus", para discutir o futuro da segurança europeia, em face das iniciativas de Trump sobre a Ucrânia. Repito: "os principais países europeus". Depois queixem-se que a Europa está pouco unida! Uns decidem pelos outros.

Ainda

Duas mulheres, "late forties", ar cansado do trabalho, a jantar tarde no dia dos namorados, sentindo-se obrigadas, sei lá bem porquê, a dizer ao empregado do restaurante assim-assim: "Nós não somos namoradas!" Já não falta muito, mas este Portugal ainda vai existindo por aí.

Juízo

Se a Europa tivesse juízo estratégico, sugeria que a iniciativa americana se integrasse numa nova arquitetura europeia de segurança, comprometendo a Rússia, dando garantias para a preservação da independência de uma Ucrânia neutral, dotada de um estatuto especial com a UE.

Vistas bem as coisas...

Ao escolher a Rússia como seu único interlocutor no caso ucraniano, a América de Trump parece dar razão ao argumentário de Moscovo de que foram os gestos ocidentais de reforço e aproximação da NATO das suas fronteiras que, em última instância, justificaram a sua ação militar.

Há dez anos...

Há dez anos, escrevi por aqui isto. Descontado aquilo que a conjuntura tornou datado, no essencial concordo com o que à época disse. Sei que isto não me torna mais popular, lado para o qual durmo melhor, mas sossega-me perante mim mesmo, e isso não tem preço, acreditem. Aí fica, este texto de 2014:

A Europa e a Crimeia

Teresa de Sousa é, de há muito, uma sagaz observadora das coisas internacionais. Tenho por ela um grande respeito e leio-a sempre com atenção e proveito. Hoje, no seu habitual artigo no "Público", suscita uma ideia interessante, resumida no próprio título do texto: "A Europa joga o seu destino na Crimeia". A tese central é a de que, face à atual tensão, e perante o grau de implicação que os americanos parece estarem dispostos a assumir, a Europa tem, na crise ucraniana, a oportunidade "da sua vida" para recuperar a sua relevância, a ser feita através de uma atitude comum, em consonância tática com Washington. O tom das conclusões do último Conselho Europeu anima a articulista, que delas também retira virtualidades para a sobrevivência e/ou reanimação da relação transatlântica,

Muitas vezes estou de acordo com Teresa de Sousa, mas não é este o caso. Acho que a avaliação feita daquilo que resultou da reunião dos chefes de Estado e governo da UE peca por "wishful thinking". A retórica unificada que saiu dessa reunião irá - não tenho disso a menor dúvida - esboroar-se a partir do momento em que a passagem a um estádio superior de medidas "punitivas" a Moscovo (que deverão ser propostas, porque tudo indica que a Rússia não vai ceder no essencial) venha a defrontar-se com as previsíveis reações retaliatórias do "outro lado". Nesse momento, os Estados europeus constatarão que, dentre eles, alguns sentirão mais do que outros o preço de uma quebra dos mecanismos de relação político-económica com a Federação Russa. E isso não deixará de ter consequências imediatas na sua unidade decisória, muito para além da conversa bruxelense, à qual Putin colocará a questão posta por Estaline face à condenação da sua política pela Santa Sé: "Quantas divisões tem o Papa?"

Posso estar enganado, mas tenho a sensação de que a Europa comunitária, com a sombra da NATO a ajudar, acabou por meter a Ucrânia numa "grande alhada". Fê-lo por alguma irresponsabilidade induzida essencialmente pelos Estados bálticos e alguns outros países da antiga "cortina de ferro" - a "nova Europa" de Donald Rumsfeld -, como reconhece Teresa de Sousa, ao falar da "obsessão desses países em continuarem a olhar a Rússia como uma ameaça".

Sei que me arrisco a ser visto como um perigoso "realista", mas nunca tive a menor ilusão sobre a possibilidade da Ucrânia poder exercer o seu pleno direito de opção estratégica. Há "soberanias limitadas"? Claro que há, porque a geografia não se improvisa. Que o diga Cuba.

Tenho hoje a firme convicção de que a Europa perdeu um ensejo precioso de desenhar um modelo de relacionamento "possível" com Kiev, porventura menos ambicioso mas bastante mais pragmático. Um modelo à medida do país muito particular, geopoliticamente falando, que a Ucrânia é e continuará a ser. A União Europeia não percebeu, ou não quis perceber, as lições que deveria ter retirado da atitude russa na crise da Geórgia - e, em especial, da "liberdade" então recuperada por Moscovo para reatuar com maior liberdade nas suas próprias "águas territoriais", em face da então mitigada reação de Washington, secundada pelo já então ineficaz gesticular europeu. Se o tivesse feito, não se deixando seduzir por uma agenda marcadamente anti-Moscovo, talvez tivesse ajudado Putin a reconhecer as vantagens de algum reconhecimento de "respeitabilidade" no plano internacional e apostado na sua adesão, pelo menos formal, a uma ordem global mais dialogada. Não o fez, "armou" em potência e agora resta-lhe "bombardear" Moscovo com comunicados e engrossar a voz. 

Com a presente crise, que ameaça alguns dos seus interesses estratégicos essenciais - a alguém passou pela cabeça que Moscovo iria permitir a indução de riscos no seu acesso naval ao Mar Negro? -, a Rússia já mostrou que está disposta a pagar um preço forte na sua imagem. Nada que um poder essencialmente autoritário não possa comportar. Quem pode vir ainda a sofrer, no rescaldo desta crise, são os opositores internos a Putin, que cada vez mais se sentirá desobrigado de ter de fazer "de democrata". Perdido por cem...

Uma nota final. Se Bruxelas conta com a permanência da intransigência de Washington, no início de um tempo presidencial de fim de ciclo, pode muito bem vir a estar enganada: sem a ajuda prática da Rússia, os EUA não conseguirão retirar as suas tropas do Afeganistão no calendário previsto. E esse é um compromisso que Obama não pode falhar, porque é feito perante o único país que os Estados Unidos verdadeiramente respeitam: a América.

Cavaco, a segurança e outras coisas divertidas


Num dia de 1992, a nossa embaixada no Reino Unido foi informada de que Cavaco Silva iria deslocar-se a Londres, para um encontro com o então primeiro-ministro britânico, John Major, sobre temas daquela que era a primeira presidência portuguesa das instituições europeias. Chegaria numa tarde, teria a reunião com Major no dia seguinte e, ainda na mesma data, regressaria a Portugal. 

A embaixada em Londres era então chefiada por António Vaz Pereira, de quem eu era ministro-conselheiro e seu "número dois". Vaz Pereira estava no seu último posto de uma carreira diplomática relevante. Ali chegara ido de embaixador junto da NATO, após ter exercido idênticas funções em Moçambique e na Dinamarca. Fora também diretor político nas Necessidades, o lugar de topo da decisão diplomática. Como personalidade, era um "character", um conhecido "gourmet" e cozinheiro, um reputado pescador. Homem culto e lido, pensava pela sua própria cabeça e tinha opiniões fortes, que não escondia e fazia gala de afirmar. Bastante conservador, mas sem alinhamentos políticos, tinha plena confiança em mim e dava uma grande liberdade ao meu trabalho. Durante quatro anos, tivemos uma relação excelente e ficámos amigos, até à sua morte.

Voltemos à visita. De Lisboa, foi-me transmitido pelo telefone que estavam em contacto direto com Downing Street. Não estava prevista a presença de Vaz Pereira no encontro de Cavaco Silva com Major, por vontade portuguesa.

Cavaco Silva era useiro e vezeiro na atitude de, frequentemente, afastar os embaixadores portugueses de encontros que tinha com os seus homólogos. E, como é óbvio, um chefe de governo que constata que um primeiro-ministro que o visita não leva consigo o embaixador parte do princípio de que este não lhe merece confiança. Daí retirará as necessárias consequências, na importância futura a conceder ao diplomata.

Cavaco Silva foi primeiro-ministro durante uma década. A doutrina dividia-se sobre se era ele próprio quem promovia essa atitude, que colava com o seu temperamento fechado e distante, ou se era instigado a tal por algumas "eminências pardas" (no MNE, alterava-se com frequência a penúltima consoante do adjetivo...) à sua volta. No fundo, era irrelevante: o resultado seria sempre o desprestígio dos embaixadores portugueses.

Na conversa com a pessoa que, de Lisboa, me informou da coreografia da visita, não tive o menor sucesso quando objetei contra a ausência do embaixador no encontro com Major. Nada que me surpreendesse.

Informei de tudo Vaz Pereira que se limitou a comentar, com um sorriso e uma gargalhada galhofeira que era muito sua: "Albarda-se o burro à vontade do freguês." E, como "bofetada de luva branca", pediu-me que informasse o gabinete do primeiro-ministro de que tinha "o maior dos gostos" em convidar Cavaco Silva e a comitiva a irem jantar à residência da embaixada, a cerca de três centenas de metros do hotel onde se instalavam, na noite da chegada. Nova recusa: todos jantariam no próprio hotel. Claro que a Cavaco Silva, bem como à sua corte, não passou pela cabeça ter a delicadeza de convidar o embaixador português no Reino Unido a juntar-se-lhes.

Vaz Pereira era um homem superior. Sentiu o toque, mas decidiu não reagir. Disse-me para eu tratar do que fosse necessário, para que a visita, de que ele fora deliberadamente afastado, corresse pelo melhor. Falei com o "Foreign Office" sobre alguns pormenores, reservei o hotel e tratei dos carros.

Cavaco chegou de Falcon a um aeroporto militar perto de Londres. Vaz Pereira e eu esperávamo-lo. Cumprimentou-nos, recusou o convite que o embaixador lhe fez para ir no belo e histórico Daimler oficial da embaixada, entrou com alguém num dos carros alugados e zarpou para o hotel. Só voltámos a vê-lo à partida, no dia seguinte.

Nessa noite, porém, eu ainda iria ter um divertido episódio com um membro da comitiva de Cavaco. Estava a jantar em casa quando recebi um telefonema do chefe da segurança do primeiro-ministro. 

O anedotário político está cheio de historietas caricatas passadas com essa pequena figura, de que a mais célebre é a desconfiança que, um dia, lhe tinha causado ver uma pomba pousar junto a uma janela, numa sala do edifício da União Europeia, em Bruxelas, em que estava Cavaco Silva. O homem entrou em stresse, desconfiando que a pomba pudesse transportar um engenho explosivo e lançou um alerta, provocando risota e caindo no ridículo dos circunstantes. De todos? Não ficou para a pequena história qualquer reação de Cavaco Silva sobre a pomba.

E chegou o tal telefonema, pelo meu telefone fixo, num tempo em que não tínhamos telemóveis. O homem vinha queixar-se-me de que, na sua perspetiva, a segurança britânica estava a descurar gravemente a proteção a Cavaco Silva, dentro do hotel. Segundo ele, não se viam agentes e isso era uma falha muito grave. Perguntou-me se eu podia intervir, com urgência. 

Comecei por lembrar-lhe, com algum gozo escondido, que à embaixada não fora pedida a menor diligência sobre questões de segurança. Adiantei que estava em absoluto convicto de que os britânicos, que à época tinham uma experiência ímpar em matéria de terrorismo, por virtude das frequentes ações do IRA, teriam feito uma criteriosa avaliação dos riscos potenciais que Cavaco Silva corria, desenhando o dispositivo adequado para esse nível de risco.

O homem, contudo, não se calava - e não me deixava jantar... Prometi-lhe que ligaria ao "liaison officer" britânico, transmitindo a sua preocupação. Não era suficiente: queria um forte "reforço do dispositivo", com agentes em permanência, durante toda a noite, no andar do hotel onde Cavaco Silva iria dormir. Disse-lhe que faria essa sugestão aos britânicos. "E teremos resposta?", atirou-me, ansioso. "A resposta que vai ter será a chegada, ou não, dos agentes. Por isso, logo verá!" 

O chefe da segurança dramatizou: "O senhor doutor parece não entender que o primeiro-ministro Cavaco Silva é, neste momento, o mais importante líder da Europa. É ele quem preside ao Conselho Europeu! Se acaso sofresse um atentado, quem poderia substituí-lo?" Ri-me intimamente.

E foi então que a minha veia irónica não resistiu e, num registo "by the book", me saiu isto: "Se o primeiro-ministro português fosse vítima de um atentado, creio que quem iria presidir ao Conselho Europeu seria o Dr. Fernando Nogueira, na ordem protocolar do governo, não lhe parece?"

Senti, do outro lado da linha, o homem a "trepar pelas paredes". Retorquiu num tom ofendido e, com um "isto não fica assim!", desligou o telefone. Informei o embaixador Vaz Pereira do episódio, o que nos mereceu uns divertidos adjetivos sobre o caráter dos nossos episódicos visitantes, e transmiti ao meu contacto no "Foreign Office" a angústia securitária que atravessava a comitiva cavaquista. E fui jantar, que já se fazia tarde.

Mas não tinha ainda chegado à sobremesa quando recebi nova chamada, agora de uma outra figura, alguém da ala diplomática da comitiva, junto de quem o obcecado chefe da segurança se tinha ido queixar da "impertinência" da minha resposta. Detalhei, com medida paciência, a minha intervenção no assunto, ficando com a sensação de que o meu interlocutor, lá no fundo, entendia bem o que tinha passado. Nunca cheguei a saber se os britânicos tinham ou não "reforçado o dispositivo". A única certeza que o mundo pôde ter foi que Cavaco Silva sobreviveu incólume, depois dessa angustiada noite londrina da sua paranóica segurança.

No dia seguinte, à partida, no aeroporto, ainda me diverti imenso, ao constatar que o tal chefe da segurança, por uma qualquer razão, foi o único membro da comitiva a quem veio a ser feita uma revista pessoal completa e com algum pormenor. Enquanto se descalçava e esvaziava os bolsos, o nosso homem fuzilava-me com a vista, à distância, como se estivesse convencido de que eu fora o culpado desse tratamento discriminatório, aos olhos (que, em alguns casos, me pareceram divertidos) dos seus colegas da delegação. Não, não tive nada a ver com o que lhe aconteceu, mas, posso agora confessar, talvez gostasse de ter tido...

Porque é que conto isto hoje? Porque, há horas, à saída de um espetáculo, pareceu-me vislumbrar o homem. Seria ele? Já pouco importa. Ou melhor, importa: fico a dever-lhe o pretexto para escrevinhar o que acabam de ler.

sábado, fevereiro 15, 2025

Pinto da Costa

Há uns anos, escrevi por aqui isto.

"O FC do Porto deve tudo a Pinto da Costa, desde a dedicação de uma vida até à capacidade de gestão do futebol que fica a anos luz de qualquer outro clube português e só igualada ou superada por poucos outros clubes pelo mundo. Claro que para isso contribuiu o "desequilibrar" do poder da arbitragem para o Norte. Mas o que é que faziam, até então, o Benfica e o Sporting? O Porto não ganhou o que ganhou pelas qualidades nutricionais da "fruta" servida no Pérola Negra ou pelo facto de apitos mais ou menos dourados terem mostrado amarelos intimidatórios no início de muitos jogos ou livres à entrada da área nos últimos minutos. Ganhou-os também por isso mas, essencialmente, porque os "andrades" foram, a uma distância imensa, o clube mais bem dirigido do nosso país."

Relendo isto, e ocorrendo-me muitas outras coisas, desde logo as memórias pessoais que com ele tenho - do Porto a Londres, de Lisboa a Viena -, apetece-me ficar por aqui, na hora da morte de Pinto da Costa.

O dia dos namorados


Levantei-me tarde, privilégio dos reformados. Tinha estado a ler, até às quatro da manhã, umas memórias que tinha encomendado na Wook. Havia recebido o livro pelo correio, ao meio-dia de quinta. Acabei-o nessa madrugada. À uma hora da tarde de sexta, estava a almoçar com um amigo, no Círculo Eça de Queiroz. Pouca gente, comida caseira, vinho da casa, preço módico. Verdade seja que já paguei a quota do clube para 2025, e foi uma boa nota! Acabámos a refeição a beber um Bushmills novo. Há uns tempos, convenci o Francisco, o amável chefe de sala da casa, a ter sempre este "irlandês" para me pontuar o final das sobremesas. Quase parece que ali "tenho garrafa", como antes se dizia nos bares. A minha mulher juntou-se-me no fim da refeição e desafiei-a a aproveitar o sol da tarde. Começamos por reforçar a glicémia com uns doces na Alcoa. Tínhamos lanchado, há uns meses, na "sede", em Alcobaça, e agora apreciámos esta "filial". E uma vez não são vezes! Entrámos depois na FNAC e saí com quatro livros. Aliás, já levava outro debaixo do braço, oferecido pelo amigo com quem almoçara: um livro que eu já tinha pensado comprar e que ele teve a ideia de oferecer-me. É raro haver este feliz "matching". Descemos o resto do Chiado muito devagar. Fotografei a Ulisses, mas já não uso luvas, como às vezes julgo que se nota. Resolvi depois engraxar os sapatos, com um raro engraxador "filósofo", no passeio do Nicola. Vários estrangeiros tiraram fotografias à cena que, para eles, devia ser um pouco insólita, para os tempos que correm. Entre outras coisas, eu e o homem, que já tínhamos idade para isso, recordámos os muitos retornados por ali havia, precisamente há meio século. Ele deu-me conta de que se dividiam em espaços diferentes, consoante as "províncias" de origem. A minha mulher, sentada à minha espera num banco em frente, desesperava com a larguesa da nossa conversa e foi lá dizer-nos isso, para nos apressar. No final, foram quatro euros (em Nova Iorque, há um quarto de século, pagava dois dólares, recordo-me). Dei um pouco mais, grato pela conversa. Zarpámos de seguida para uma ginginha no Eduardino. É que na Ginginha havia gente a mais e filas não é comigo. Do Largo de São Domingos à Praça da Figueira, fomos comendo uma dúzia de castanhas assadas. Por estranhos e pouco conhecidos elevadores (o de Santa Justa é inutilizável, dado o turistame) e escadas rolantes, dentro de lojas, para tentar evitar subidas a pé, regressámos ao Carmo, onde o Smart tinha ficado a lavar. No parque que há por ali, esse serviço é o melhor de Lisboa, anotem. Pensámos que dava tempo, e pensámos bem, porque deu, para ir ver a exposição do Surrealismo, na Sociedade Nacional de Belas Artes. Excelente! Acaba em março, aviso também. De nada! Partimos depois para a Gulbenkian, onde, durante mais de duas horas, nos deliciámos a ouvir "A Criação", de Haydn, pelo coro e orquestra, com solistas admiráveis. O nosso Dia de São Valentim acabou de uma forma muito pouco imaginativa. De manhã, ao acordar, eu tinha à minha espera a simpática oferta de uns chocolates. Depois do espetáculo, nada tendo planeado, só me lembrou retribuir com a ida a uma churrasqueira, à Valenciana, ali em Campolide, comer alguma coisa, com umas cervejolas à ilharga. Reconheço, sem dificuldades, que o meu romantismo anda um pouco pelas ruas da amargura. Chegado a casa, peguei no livro de Helena Vasconcelos, onde conta a vida que teve com Julião Sarmento, um dos volumes que tinha comprado na FNAC. Não me arrependi. O livro é magnífico, está muito bem escrito. Já li quase metade das trezentas e tal páginas. Acabá-lo-ei pela madrugada. Agora, é quase meia noite. E estou a contar-lhes isto. Foi um dia simpático. Como será o dia de amanhã? Prometo não os aborrecer com ele.

11 de Março - 50 anos depois