Nesse dia, no início dos anos 90, cruzei-me num dos movimentados corredores com dois diplomatas estrangeiros que, entre si, me pareciam envolvidos num conciliábulo algo segredado. Fiz menção de não interromper, mas fui chamado à conversa. Com a maior naturalidade, um deles perguntou-me: "Francisco. Você, normalmente, usa hotel ou tem "garçonnière"?" A pergunta era muito clara: onde é que eu me acolhia em caso de supostas escapadinhas românticas. A expressão "garçonnière", de origem francesa, foi muito usada em outros tempos do Brasil, antes do motel virar moda.
Comecei a preparar uma inocente resposta quando esse mesmo amigo se adiantou: "É que eu cansei de pagar hotel e estou arrumando uma "garçonnière". Lembrei-me que aqui o Paulo e você podiam querer partilhar comigo um espaço que encontrei, perto de King's Cross, a um preço bastante bom". Isto foi dito com o ar mais natural do mundo, naquela cumplicidade machista que desarma o interlocutor, simultaneanente "flattered" pelo convite, mas embaraçado na organização da resposta.
Olhei o Paulo, por um segundo não entendendo se ele ainda estava a refletir no assunto. Ambos sabíamos que o nosso amigo era muito ativo no registo para o qual nos convocava, pelo que a proposta era a sério. Modesto, guardei para sempre a frase com que reagi: "Agradeço muito o seu convite, mas não tenho tráfego que justifique".
O Paulo deu uma gargalhada e disse qualquer coisa parecida. E o assunto morreu ali. Às vezes, nesses meus anos de Londres, quando passava em King's Cross, onde costumava visitar um alfarrabista, punha-me a olhar para casas e interrogava-me se em alguma delas seria a tal "garçonnière".
Há muito que deixei de ver o terceiro amigo que então organizava o aluguer (aluguel, para ele) da "garçonnière". Sei que a sua vida, sentimental e não só, deu algumas voltas. Com o Paulo, em mais de uma ocasião, recordei a história, entre gargalhadas. Ah! E, claro, fi-lo sempre diante das nossas respetivas mulheres, porque quem não deve não teme.
13 comentários:
Muito boa.
Estas e outras situações que nos vão caindo em cima ao longo da vida sem termos feito nada por isso, só valem a pena contar se forem conhecidas dos cônjuges (porque acontecem aos dois lados, é bom não esquecer, o cômputo geral "fecha" a zeros).
Sendo isto tudo um "penico", como ainda agora me dei conta quando dois filhos meus se encontraram numa estação de Metro de Londres nenhum deles sabendo que o outro por lá andava, nada como "o diz que disse" que se arrisca a chegar ao cônjuge dos abordados já não como comédia mas sim como drama.
Confesso que aqui há uns anos pensei em "montar casa" a uma moça muito bonita, elegante, charmosa, terrivelmente atraente, eu tinha um apartamento vago, ali para os lados de Almada e ponderei. Não o fiz porque a minha cara metade iria descobrir e não iria gostar. Moral da história, fiquei sem a Gabi (a tal rapariga) e divorcei-me da minha cara metade, por outros motivos; agora, penso para comigo: que me montem casa a mim que eu não sou pai de pançudas. :)
Tempos interessantes esses de Londres …. É curioso como a política e a diplomacia estão associadas a episódios onde o poder se cruza com a sedução . Houve mesmo quem dissesse que o poder é o mais sedutor de todos os atributos humanos.
Eu também tenho boas memórias de Londres, vivi lá quase dois anos mas quase uma década depois do Embaixador. As minhas paragens eram mais a Portugal Street a uns passos da BBCWorld Service (Bush House), e o metro de Holborn. Tive o privilégio de assistir a uma das últimas intervenções públicas de Robin Cook e felizmente apanhei o avião de Londres para o Luxemburgo nas vésperas dos atentados em Julho 2005 (como utente regular dos transportes públicos fiquei a pensar que tive bastante sorte)
Não há dúvida que há alturas o que o ser "modesto" dá muito jeito ; ) ; )
A verdade não tem preço.
:-)
Pois a verdade não tem mesmo preço.
Até porque a mentira tem a perna curta.
Em vez de "cumplicidade machista" seria melhor "cumplicidade masculina". Ter amantes não é propriamente machismo...
11:29 ...fiquemos pela cumplicidade.
Luís Lavoura tem razão naquilo do "machismo", por isso pus lá em cima "porque acontecem aos dois lados, é bom não esquecer, o cômputo geral "fecha" a zeros".
Já lá vai o tempo em que nos queriam convencer que havia por aí umas "brigadas femininas" inteiramente dedicadas a desviar do bom caminho os maridos das outras...
Vai aqui pois me parece inadequado este texto fútil como comentário ao seu texto “Gaza”, uma intervenção sua muito especial que bem dispensa o desfile de vaidades.
Com uma folga inesperada acabei por ir parar ao Chiado, ainda estou para perceber como pois não estava no programa.
Visita rápida à FNAC de onde trouxe “Histoire de Gaza” de Jean-Pierre Filiu, numa edição actualizada em 2015 da edição original de 2012 da Arthème Fayard/Pluriel.
Não o conhecia mas o livro está muito bem organizado por capítulos que, sendo introduzidos pela História desde 1530 (Gaza avant la Bande), abarcam depois períodos de 20 anos (“1947-1967: La génération du deuil”, “1967-1987: La génération de l’écrasement”, “1987-2007: La génération des intifadas”), concluindo com “La génération des impasses?: Cinq années de cendres).
Era o único exemplar que estava lá e não o podia lá deixar, sob pena de não o agarrar tão depressa, a sua leitura é decerto bem mais útil que o que anda por aí de avulso.
Estando ali achei oportuno trazer mais um, os “Versículos Satânicos” de Salman Rushdie, ando há anos para o ler, na realidade há 35 anos, com um bocado de sorte estamos aqui todos daqui a 10 anos e eu virei dizer que ando há 45 anos para o ler.
Comecei a ler numa edição da Fundação Calouste Gulbenkian “Infiéis na terra do Islão: os Estados Unidos, o Médio Oriente e o Islão” de Maria do Céu de Pinho Ferreira Pinto, na 2ª edição de 2008 (500 exemplares).
Não sei onde estão os outros 498 pois descobri há dias que tenho dois, um em Lisboa e outro fora de Lisboa, é o que dá ir à FCG para um evento qualquer, andar a fazer horas na livraria, ver um livro que não se tem a certeza de já possuir, na dúvida trazê-lo porque sai mais barato em tempo e dinheiro que lá voltar no dia seguinte.
Comecei a ler numa edição da Fundação Calouste Gulbenkian “Infiéis na terra do Islão: os Estados Unidos, o Médio oriente e o Islão” de Maria do Céu de Pinho Ferreira Pinto, na 2ª edição de 2008 (500 exemplares).
Não sei onde estão os outros 498 pois descobri há dias que tenho dois, um em Lisboa e outro fora de Lisboa, é o que dá ir à FCG para um evento qualquer, andar a fazer horas na livraria, ver um livro que não se tem a certeza de já possuír, na dúvida trazê-lo porque sai mais barato em tempo e dinheiro que lá voltar no dia seguinte.
Errata
Ali onde está "1530" é "-1530".
Uma coisinha de nada.
As minhas desculpas por aquela repetição dos dois últimos parágrafos às 16.43.
Manhosices...
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