O conceito de amigo, na vida diplomática, tem frequentemente um significado um pouco específico. Começamos por conhecer alguém, cidadão de outro país, numa determinada cidade, onde ambos somos estrangeiros. Ali coincidimos por algum tempo, estabelecendo uma relação conjuntural, marcada por alguma convivência, às vezes mesmo com alguma proximidade. Depois, rodamos pelo mundo. Anos mais tarde, se acaso nos voltamos a cruzar com essa pessoa em qualquer outro lugar, é quase certo que cairemos nos braços um do outro, considerando-nos “velhos amigos”, como se aquele primeiro contacto tivesse necessariamente tido alguma intensidade afetiva. Será talvez a “solidão” da condição diplomática, ao voltarmos a encontrar-nos num terreno igualmente estranho a ambos, que leva a essa expressão automática de reaproximação, às vezes um pouco exagerada, mas que pode, ainda assim, acabar por ter laivos de uma verdadeira amizade. Comigo, isso aconteceu algumas vezes.
Quando, em 2002, fui para Viena, chefiar a nossa missão diplomática durante a presidência portuguesa da OSCE, sabia que, para ter sucesso, tinha de me “dar bem”, com os meus colegas americano e russo. Os EUA e a Federação Russa são os “donos” da OSCE! É claro que há também os chamados “major players” - a França, o Reino Unido, a Alemanha, com a União Europeia, depois do Tratado de Lisboa, a querer mostrar que existe. E, depois, existem os “key players”, um grupo com outros parceiros, onde estão sempre a Itália, os Países Baixos e a Turquia. Mas esse é um conjunto que vai variando muito, em função da qualidade pessoal e poder de influência dos respetivos embaixadores. Nesse meu tempo de Viena, os meus colegas da Suíça, da Bulgária, da Roménia e do Lichtenstein (isso mesmo!), só para mencionar alguns, integravam esse grupo de “influentes”. Mas, volto ao princípio: conseguir ter “a bordo” o americano e o russo era a condição “sine qua non” para que as coisas corressem bem na OSCE. Nos dias de hoje, como isso é impossível, tudo corre mal por ali.
Não esperava ter, como não tive, nessa altura, o menor problema com o meu novo colega americano. Mas, com o russo, o primeiro contacto não foi nada fácil. O meu anterior contraparte russo em Nova Iorque, cidade de onde eu vinha, o agora famoso Sergey Lavrov, com quem tinha uma relação de forte cordialidade, mas neste caso algo distante de um registo de amizade, tinha-me dito, quando dele me fui despedir, que o seu colega na OSCE era “excelente pessoa, mas um pouco desconfiado. Vais acabar por te dar bem com ele”.
No meu segundo dia de Viena, fui visitar Alexander Alekseev, assim se chamava o meu novo colega russo. Recebeu-me na sua residência, ao fim da tarde, num ambiente um pouco frio. Era um homem nervoso, de óculos grossos, que não olhava de frente. Tinha um sorriso que era quase um esgar e martelava as palavras. Disse para mim mesmo: “Vai se difícil eu dar-me bem com este tipo. Mas tenho de conseguir”.
A nossa primeira conversa foi quase brutal. Quase sem me deixar apresentar, lançou-se, de imediato, numa litania contra a atitude do mundo ocidental dentro da OSCE, ameaçando com o veto de Moscovo a propostas que carreassem críticas aos seus “protegidos” - e a Rússia protegia todos os países que o ocidente criticasse, em matéria de direitos humanos, de ataques ao Estado de direito, de infringimento das regras democráticas. A Rússia era, na OSCE, o protetor do mundo a que se chamava “a Leste de Viena”, na realidade, dos “trouble makers”: Bielorrússia, Ásia Central, alguns Balcãs.
Encaixei com bonomia o recado, percebia bem a razão de fundo daquele arrazoado e, confesso, não me impressionei minimamente com o tom em que a conversa se processou. Tendo sido antes bem informado, pelo meu antecessor, João Lima Pimentel, sobre o “estado da arte” dentro da organização, estava exatamente à espera daquilo que vim a encontrar. E, até porque vinha da ONU, um terreno bem mais complexo, trazia comigo uma grande autoconfiança. E, por isso, anotei o discurso de Alexander Alekseev, mas dei-lhe o devido “desconto”.
Para o que aqui importa, a minha relação com o meu colega russo, não obstante algumas “escaramuças” de percurso nos tempos seguintes, acabou por ser excelente, fomos criando mesmo, ao longo do tempo, aquilo que pode qualificar-se como uma boa amizade. Ele percebeu que eu era pouco pressionável, que Portugal funcionava como um “honest broker” e que, de mim, não viriam surpresas. Viajámos juntos uma semana na Geórgia, com visitas à Ossétia do Sul e à Abcásia, sempre numa relação franca e divertida. Antes, havíamos passado uns dias no Porto, numa cimeira da OSCE, com uma noite a testar vodkas, no bar do Sheraton. Depois, eu saí de Viena, para embaixador no Brasil. Ele foi para Moscovo, para vice-ministro dos Negócios Estrangeiros. Perdemo-nos de vista.
Passou uma década. Regressei a Portugal, reformei-me do serviço diplomático e, numa outra capacidade de trabalho internacional, no início de 2014, fui a Estrasburgo. Havia-me sido pedido que fizesse uma determinada diligência junto do embaixador russo no Conselho da Europa. (Há semanas, como é sabido, a Rússia abandonou o Conselho da Europa, na iminência de ser suspensa da organização). Quem era o embaixador? Nada mais nada menos que Alexander Alekseev.
O nosso reencontro foi muito agradável. Passámos uma hora à conversa, muito para além da questão que ali me levava. A certo ponto, ele disse-me: “Lembras-te do nosso primeiro encontro, em Viena? Não foi uma conversa fácil…”. Eu “fiz de conta”: “Essa agora! Foi facílima! Tu quiseste assustar-me, ameaçar com o veto russo, mas eu percebi logo que estavas a querer criar uma primeira impressão. E, como viste, tudo acabou por correr muito bem entre nós!” O Alexander deu uma gargalhada, como se o seu anterior “bluff” tivesse sido denunciado e desmontado pelos factos subsequentes. Despedimo-nos com o que interpretei como um sincero abraço.
Que será feito, neste estranhos dias de guerra, do meu amigo Alexander Alekseev, hoje diplomata russo aposentado? Devo dizer que a última coisa que me apetecia seria discutir com ele a invasão russa da Ucrânia. É que imagino que ele talvez pretendesse convencer-me de que aquilo não passa de uma mera “operação militar especial”. Se há coisa que, na vida, há muito aprendi é que não se deve nunca testar uma amizade metendo-lhe a política pelo meio.
2 comentários:
não se deve nunca testar uma amizade metendo-lhe a política pelo meio
Ora bem.
Amigos amigos política á parte!
Enviar um comentário