segunda-feira, abril 11, 2022

O partido da raiva


A palavra “enragé” (enraivecido) marcou, historicamente, a memória da revolta do Maio 68, o desafio a De Gaulle que viria a ditar o seu afastamento, um ano mais tarde. A França tem demonstrado ser a democracia europeia onde, à margem dos poderes eleitoralmente consagrados, surgem, com regularidade, formas de expressão reivindicativa que desafiam esses mesmos poderes, frequentemente de modo inorgânico e sempre de difícil controlo. O movimento dos “Gillets Jaunes” (coletes amarelos), que Emmanuel Macron teve de enfrentar durante o quinquenato que agora termina, foi a mais recente expressão desse fervilhar conjuntural de revolta popular. 

Na prática, o que essas movimentações revelam é que há uma parte significativa da população francesa que entende que as resultantes políticas do voto não esgotam a representação da vontade políticaj. Mais do que isso: esses surtos, com expressões por vezes violentas, traduzem a ideia de que há pessoas e camadas da população que se consideram sem voz ou à qual os poderes organizados não conseguem dar a devida expressão. A legitimidade do sistema é, claramente, posta em causa por esta atitude.

Se olharmos para o saldo político da primeira volta das eleições presidenciais francesas, fica patente que esse grande “partido da raiva”, com expressão diferenciada, representa hoje uma percentagem de votos que se aproxima da metade do eleitorado. À direita, Marine Le Pen e Éric Zemmour, tal como, à esquerda, Jean-Luc Mélenchon, somam votos de muitos milhões de cidadãos que atravessam um tempo de desencanto face às políticas moderadas e reformistas, sendo, ao invés, seduzidas por agendas radicais, embora, curiosamente, de sentido político contraditório.

Cinco anos de gestão política da França por Emmanuel Macron não contribuíram para atenuar este crescente sentimento de rejeição, que revela alguma desfuncionalidade do sistema. Se, em 2017, Macron era uma novidade e uma esperança, nos dias de hoje, a sua imagem, desgastada pela desilusão que diluiu muita dessa mesma esperança, tem mais dificuldade em assumir-se como mobilizadora. De certa maneira, foi essa governação sem chama e carisma, em que ao otimismo constante da mensagem não corresponderam resultados que apaziguassem as inquietações de muitos setores, que deu origem ao reforço dos extremismos, que se constata nestas eleições.

Emmanuel Macron pode, de acordo com a maioria das previsões, acabar por renovar o seu mandato, por mais cinco anos, nas eleições de 24 de abril. Mas o “partido da raiva”, essa conjugação negativa de diversas formas de mal-estar social e político, promete não se aquietar. E, de avanço em avanço, poderá, um dia, acabar por consagrar, num país com a dimensão e a importância da França, uma revolução política de inéditas proporções, com consequências no próprio futuro da Europa.

5 comentários:

Miguel disse...

A equivalência sugerida aqui entre os fascistas/pétainistas/xenófobos Zemmour e Le Pen, por um lado, e os insubmissos por outro é bastante infeliz.

carlos cardoso disse...

A equivalência pode ser infeliz mas, infelizmente, é bem real. Ninguém tem dúvidas de que uma grande parte dos que votaram Mélenchon na primeira volta vão votar Le Pen na segunda…

Miguel disse...

As estimativas/sondagens que vi apontam para que 20-30% dos que votaram em Mélenchon poderão efectivamente votar Le Pen. É muito. Mas não é certo, nem provável, que sejam especificamente apoiantes da FI, serão na sua maioria votos de protesto que tendem oscilar de forma errática e irracional. Lembremo-nos que o voto de adesão plena a Mélenchon não deverá ser muito superior a 10-12% dos votos expressos. Creio que a esmagadora maioria dos insubmissos (70-80%) irá dividir-se entre a abstenção e o voto Macron. Eu votaria Mélenchon na primeira volta (sem ser incondicional do candidato; não sou extremista e não sou pela saída da Nato; fá-lo-ia pela componente ecologista e social do seu programa e porque considero que o regime hiper-presidencialista é perigoso, como se está a ver, e que o sistema de contra-pesos é muito menos robusto que nos EUA, onde mesmo assim o Trump fez e está a fazer muita mossa). Na segunda volta, votaria em qualquer candidato que fizesse frente a Le Pen, no caso presente votaria em Macron sem hesitação. Acho que foi um mau presidente, mas é um candidato respeitável. Sublinho que considero uma enorme irresponsabilidade não votar no candidato que defronta Le Pen. Mas isso não faz fascistas aquelas pessoas que se vão abster - serão pouco inteligentes e/ou pouco disciplinados. Há muita confusão e revolta na cabeça das pessoas, ouço à minha volta muitos comentários inquietantes ( complotistas e indigentes) a propósito da eleição como ouvi a propósito da pandemia e das vacinas. É uma situação deprimente e perigosa.

Miguel disse...

Para completar: sou pela pertença plena à UE, considero que esta constitui uma conquista civilizacional valiosa e que a luta política para a fazer evoluir deve ser feita de dentro.

7ze disse...

Profunda se não profética análise. Apesar de nada o apontar no texto e das devidas cautelas que se Vos impõem, presumo que o Senhor Embaixador não descarta em absoluto a hipótese de exactamente a mesma coisa se ir passando em Portugal... se os franceses se queixam de 30% de abstenção nas presidenciais, que aferir dos portugueses?

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